sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Uma viagem através da Luz


José Carlos Vilhena Mesquita

Com a chancela da prestigiada Papiro Editora acaba de vir a público mais um livro de poesia de José Vieira Calado, poeta consagrado de que o Algarve, especialmente a cidade de Lagos, muito se orgulha. A obra intitula-se Viagem através da Luz, e inscreve-se naquilo a que podemos designar por poesia experimental, uma via mais no recente trajecto do pós-modernismo lírico. O livro é, em si mesmo, uma unidade poética, constituída por um único poema, repartida por vinte e nove fracções, digamos assim, cujo tema principal é a Luz sideral e o universo cósmico, cujos versos pretendem conduzir o leitor numa inebriante viagem através do espaço celeste. Em todo o caso, é bom que se diga, o livro não é uma obra de ciência, mas de poesia, nem é tão pouco um repisar dos caminhos desbravados por António Gedeão, quando transformou a Física e a Química num objecto poético, formando um novo estilo lírico que se poderia designar por poesia-científica. Não, este é um livro muito diferente, tanto na abrangência temática como na extensão unívoca do poema, sendo que apenas existem algumas similitudes na dimensão da mancha poética. Nas suas fraquezas e virtudes, este livro é bastante inovador, não só como peça de arte mas também como peça literária, sendo que na sua formulação diegética até parece mais próxima da primeira do que da segunda. E isto em nada deslustra a qualidade e valor desta obra.
A ninguém hoje assalta a dúvida de que a poesia de Vieira Calado está indubitavelmente ao nível do melhor que neste país se tem dado a público no sublime prelo de Orfeu. Conheço o poeta, e a sua obra, há mais de trinta anos e o que acabo de afirmar não é um exagero de amizade nem de admiração, mas tão só a simples constatação de um processo de vida literária, marcado pelo aperfeiçoamento e depuração das qualidades criativas do seu estro poético. Mas essa viagem de progressiva qualidade tem-se demonstrado não só na sublime concepção estética em que se inflamam os seus poemas como, muito especialmente, na sua idealização lírico-filosófica. Essas qualidades, convenhamos, não estão ao alcance de todos os poetas, mas tão só dos mais qualificados, criativos e inspirados. E nos seus poemas, como aliás na maioria das obras de arte consideradas de superior qualidade, nota-se que a inspiração poética não é repentina nem flamejante; bem pelo contrário, é pensada e exaustivamente reflectida, é ponderada e sopesada nos mais elevados valores e conceitos da estética e da metafísica filosófica.
Esta Viagem através da Luz é a mais recente produção de Vieira Calado, no contexto de uma obra de vasta dimensão, com dezassete títulos de poesia e três de prosa. Pela sua insistência e quantidade, pode afirmar-se que Vieira Calado é acima de tudo um poeta, no mais sublime e exigente que essa qualificação encerra, ainda que como prosador – e aqui relembro o seu belíssimo e enternecedor livro Merdock, sobre um simples cão que personificou os ideais de liberdade e agitou a academia farense nos anos cinquenta – se deva também considerá-lo como um escritor, a quem o ensaio literário e o estudo científico não são igualmente estranhos.
Neste livro vislumbra-se o plectro de Orfeu, mas num patamar muito superior ao que se costuma ver no contexto poético algarvio. Aqui a palavra supera o sentido meramente estético do verso poético, pelo que o parnasianismo da ortodoxia lírica que enforma a maioria dos poetas algarvios contemporâneos, está absolutamente distante, e diria até que totalmente fora dos horizontes poéticos de Vieira Calado. Mesmo se remontarmos aos seus dois primeiros livros, publicados ainda numa poesia “imberbe”, vemos que os seus versos são pujantes gritos de revolta contra a opressão salazarista e a privação das liberdades e garantias, em que se sustentava a obscenidade plutocrata do capitalismo vigente, afinal de contas problemas que hoje absurdamente se repõem num regime de liberdade e de democracia plena.
Em todo o caso, e retomando o fio crítico, a poesia de Vieira Calado, desde o seus primeiros vagidos poéticos que se assume nos antípodas estéticos aos cânones ortodoxos da poesia clássica e aos tradicionais figurinos líricos que enformam a nossa poesia desde os heróicos modelos do Romantismo e dos bucólicos tempos do Naturalismo até aos difíceis da anos resistência neo-realista. Foi na alvorada dos anos sessenta que os moldes clássicos da criação poética foram absolutamente implodidos, quando ainda ninguém imaginava possível a eclosão da grande revolução social do Maio de 68, cujos ténues sinais já se vislumbravam, mas que só foram possíveis através dos crescentes sinais de mudança e de contestação juvenil, que uma emergente geração nova fazia desfraldar aos ventos a bandeira da liberdade, cortando as cadeias que manietavam o pensamento e amortalhavam os redentores ideais do Mundo Novo.
Os poemas deste livro giram em torno duma espécie de viagem cósmica impulsionada à velocidade da luz pela força da palavra. A ideia incomensuravel do universo físico está patente neste livro através da persistente alusão aos seus elementosáconstituintes, com particular acinte na luz solar, fonte e gérmen de vida, nos astros que integram o nosso sistema astronómico (estrelas, cometas, planetas, quasares), assim como nas figuras que compõem o nosso universo mítico, como a Fénix, a cobra alada, a pedra filosofal, os grifos das trevas e os cavaleiros do apocalipse, os mitos da Esfinge, de Andrómeda e de Prometeu, enfim toda uma panóplia de aparente fantasia científica, que aqui é tratada e transmitida de forma etérea na volatilidade do verso poético.
Os poemas deste livro giram em torno da palavra filosófica, das imagens metafóricas surrealistas e da estética pós-moderna. Paradoxalmente estes poemas não estão titulados, porque não existe um tema específico para cada um deles. Na verdade são incursões nas profundezas do inconsciente, que se reflectem num encadeamento de ideias e de figurações do irreal, que sensibilizam esteticamente o leitor para novas concepções tropológicas. O poeta não escreve a pensar no leitor ou em que o possa interpretar. Por isso não me parece que estes poemas se possam considerar acessíveis a todos, mas antes, e sem desprimor, só para alguns, certamente para os mais inteligentes e mais aptos, que são os únicos capazes de interpretar e desfrutar das ideias do poeta, algo etéreas mas profundamente ontológicas nesta Viagem através da Luz.
No fundo, todo o livro constitui uma viagem, um trajecto de quadros cenáticos que se sucedem e se engastam de forma lógica para a constituição de um todo. Isso não acontece num livro de poesia, onde cada poema é uma viagem, é um itinerário de ideias e de alegorias que enlevam o pensamento do leitor numa inebriante mensagem de sentimentos, de emoções e de sensações estéticas.
Nesta Viagem através da Luz não acontece isso, porque os 29 poemas que constituem este livro têm uma relação conjunta, uma complementaridade entre si, e uma filiação global que os transformam num corpo, desarticulado é certo, mas consistente do ponto de vista das ideias e dos conceitos estéticos imanentes. Repare-se no simbolismo da Luz que dá o cerne a este livro e que, por isso mesmo, lhe é omnipresente, mas cuja essência não se consegue apreender, porque a luz vê-se, sente-se e invade-nos o espaço físico, mas não se consegue capturar ou impedir o seu curso natural, porque dela provém a fonte criativa da vida. A Luz neste livro é também a permanência da razão, é o estímulo e a sensação que invade o espírito do leitor, numa impressão inequivocamente etérea e volátil. Acima de tudo, o poema quis atribuir à Luz a ambivalência dialéctica do material e do espiritual. Mas, na verdade, a Luz é o símbolo da imaterialidade, da ilustração e da concepção do espírito, como génio criador da percepção das ideias e dos pensamentos superiores. Por isso, mas também por ser fonte de vida, é que se atribuem sentimentos de sacralidade e de divino endeusamento. No entanto, se a luz do Sol significa a vida, é certo que também traduz a visão espiritual e a inspiração criativa. A luz da Lua, por ser reflectida, simboliza uma forma de conhecimento infundido no pensamento racional e discursivo. Nela cabem a certeza, mas também o mistério. Cabe, portanto, ao leitor escolher se prefere a luz do sol, original e divina, ou a luz da Lua, reflectida, aparente e enigmático. Por mim, prefiro esta, e aprece-me que o Vieira Calado também.

(texto de apresentação da obra Viagem Através da Luz, da autoria de Vieira Calado, efectuada na livraria «Pátio das Letras», em Faro, a 18-01-2010)

sábado, 13 de fevereiro de 2010

ALBUQUERQUE, Maria José de Mascarenhas Gaivão Mouzinho de


Viúva do grande herói Mouzinho de Albuquerque, que ele próprio considerou como a verdadeira estrela de todas as suas campanhas em África, que o seguiu em todas as incursões pelo vasto e inóspito continente, fiel companheira, colaboradora insubstituível, imprescindível na organização dos materiais científicos e na montagem dos hospitais de campanha, onde prestou preciosos auxílios de enfermagem aos soldados feridos pelos rebeldes inimigos.
Como mulher e esposa encarnou o paradigma da companheira inseparável, tornando-se no modelo da mulher portuguesa, que por todo o país recebeu provas da maior admiração e carinho, o que deixou o Algarve muito orgulhoso.
Aquela a quem o poeta Afonso Lopes Vieira chamou um dia “a primeira senhora portuguesa” era natural de Estombar, concelho de Silves, e faleceu em Lisboa em finais de Agosto de 1950, com 93 anos de idade. Descendia de uma ilustre família algarvia, aparentada com os ilustres Mascarenhas que se bateram heroicamente durante as Lutas Liberais.
Casou-se em 1883, na cidade e Coimbra, com o seu primo Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque, na altura um desconhecido alferes que logo seria mobilizado para a Índia. Partiu o jovem casal num périplo pelo antigo império, durante o qual se haveria de cobrir de glória aquele heróico soldado, cuja carreira militar marcaria de forma indelével a história portuguesa nos finais do século XIX.
Acompanhou o percurso histórico de seu marido, sempre ao seu lado, como um anjo da guarda. Esteve com ele no governo de Lourenço Marques, na campanha contra o famoso Gungunhana, na estrepitosa campanha de Gaza, no violento combate de Macontene, no retorno ao governo de Lourenço Marques e depois no triunfal regresso à metrópole, à atribulada vida de Lisboa, às intrigas na corte e ao trágico episódio do suicídio de seu marido, até nisso um homem de honra que a pátria não soube merecer.
Em todos esses momentos, uns mais nobres e gloriosos, outros menos felizes e memoráveis, esteve D. Maria José Gaivão sempre presente com a postura de uma grande senhora, quase uma rainha a quem enojaria o trono. Os ano que se seguiram à viuvez, que duraram quase meio século, foram de total apagamento, afastando-se da balofa convivência social da nobre elite a que pertencia, para se refugiar numa aura de absoluta humildade, como se fosse um símbolo nacional das mais sublimes virtudes.
O seu funeral constituiu uma das maiores manifestações de patriótica saudade e de luto nacional por aquela que era a última senhora de uma plêiade de heroínas que a proletarização da República quase fizera esquecer.
Deixou parte dos seus bens aos pobres, ficando como herdeiros os seus sobrinhos, a saber, o Dr. João Pedro de Mascarenhas Gaivão, que foi juiz distintíssimo e presidente do Círculo Judicial de Bragança, o eng.º Manuel de Mascarenhas Gaivão, que foi Governador Civil da Horta, e o Dr. Pedro de Mascarenhas Gaivão, famoso advogado em Lisboa.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

LEMOS, Maria da Piedade Aboim Ascensão de Sande


Benemérita local e primeira figura da sociedade farense do seu tempo. Nasceu em Faro, em 1867, e faleceu em 25-3-1944, aos 77 anos de idade, na cidade de Lisboa, onde fixara residência alguns anos antes. Na altura do seu passamento estava ainda de luto pelo falecimento do marido, Coronel José de Sande Lemos, ocorrido em Lisboa a 27-3-1943.
Dotada de excelsas qualidades humanas, dedicou parte da sua vida a cuidar dos pobres e das crianças desvalidas, mercê dos seus avultados bens de fortuna. Foi, por isso, uma grande benemérita local, a quem se ficaram devendo os altíssimos donativos que canalizou ao longo da vida para o Refúgio Aboim Ascensão, hoje denominado por «Emergência Infantil».
Por outro lado, sendo esposa de um oficial do exército e herdeira e uma das mais notáveis casas agrícolas do Algarve, viu-se durante a I Grande Guerra privada da companhia do marido e do filho, o major Manuel Aboim de Sande Lemos, ficando por isso entregue à sua administração todos os meios de sobrevivência da família, que ela geriu com a maior competência e inteligente criatividade, o que em vez de diminuir acabou por resultar no crescimento do seus bens e recursos financeiros.
Esses avultados cabedais económicos soube-os distribuir benemeritamente pelos mais necessitados, nomeadamente a Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, em Faro, para cuja sobrevivência contribuiu por várias vezes com elevados donativos, garantindo assim a manutenção do convento, das suas obras pias e sobretudo da Igreja do Carmo, cujas despesas de restauro e do exercício religioso sempre cobriu com indefectível generosidade.
O funeral de D. Maria da Piedade, realizado no dia 28 de Março de 1944, no cemitério da Esperança em Faro, foi uma das maiores expressões de pesar e de reconhecimento social prestado pelos habitantes da cidade, que reconheciam nela a “mãe dos pobres”, epíteto com que sempre foi conhecida.
Era mãe do Engenheiro Major do exército Manuel Aboim Ascensão de Sande Lemos e do Dr. José Aboim Ascensão de Sande Lemos, tia do Dr. José Aboim Ascensão Contreiras e irmã da igualmente benemérita D. Joaquina Ascensão Davim e do Coronel Aboim Ascensão, fundador do Refúgio das Raparigas em Faro.

NOGUEIRA, Maria da Conceição Corte-Real Moniz



Senhora das mais fidalgas origens e da elite farense, nasceu em 1914 em Vila Nova de Portimão e faleceu em Faro, onde residia, a 31-12-1953, com apenas 39 anos de idade. Era enteada de D. Maria Luísa Leote do Rego Mendonça Corte-Real e filha do, então já falecido, médico Dr. Francisco Vito de Mendonça Corte Real, que foi uma das figuras de maior relevo na sociedade algarvia dos finais de Oitocentos.
Foi esposa amantíssima do ilustre médico e publicista Dr. João Moniz Nogueira, na altura director da Casa de Saúde, da Aliança Francesa e presidente da Direcção Diocesana da Liga Católica.
Pelas suas qualidades humanas e diamantino carácter desfrutava de grande estima no seio da sociedade farense, sendo presença constante junto das famílias mais carenciadas, levando ajuda material e uma palavra de conforto aos doentes e idosos. As crianças desvalidas, que sobreviviam em lastimável pobreza, eram também objecto da sua extremosa caridade. Pelo seu bondosíssimo coração fazia parte de várias instituições de caridade, de benemerência social e pertencia à direcção da Acção Católica em Faro.
Deixou dois filhos, ainda crianças, que muito sofreram com tão precoce desenlace.
A notícia do seu falecimento deixou a cidade em estado de choque, a ponto de várias festas e bailes de passagem de ano terem sido canceladas em sinal de luto e em respeito à sua memória. O seu funeral, realizado no dia 1 de Janeiro foi uma manifestação do mais sentido pesar, com a presença de centenas de pessoas oriundas de quase todo o Algarve. Por sua determinação ficou soterrada em campa rasa, como símbolo da sua humildade e desdouro pelas glórias terrenas.
Era irmã de D. Francisca Castel-Branco de Mendonça Corte-Real Costa de Azevedo e de Francisco Castel Branco Corte-Real, que foi um dos mais abastados proprietários da cidade de Lagos; era cunhada do major Josino Francisco Costa de Azevedo, que foi professor do Colégio Militar de Lisboa; de Lucília Amália Libreiro de Mascarenhas Corte-Real; e de Joaquim Pedro da Silva Negrão, rico proprietário em Lagos.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Carlos Abreu

J. C. Vilhena Mesquita

Engenheiro mecânico e romancista, João Carlos Telo Baptista de Abreu Pimenta, de seu nome completo, que usava o pseudónimo literário de Carlos Abreu. Nasceu em 1926, na freguesia de São Sebastião, concelho de Lagos, no seio de uma abastada família da burguesia industrial, muito conceituada no Algarve, e faleceu em Outubro de 1999.
Fez os estudos secundários no Colégio Infante Sagres, em Lisboa, ingressando depois na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, onde concluiria, em 1951, com distinção a licenciatura em engenharia mecânica. Exerceu o seu múnus profissional em reputadas empresas de âmbito internacional sediadas em Lisboa e em Paris. Foi ao serviço das mesmas que percorreu a África e América Latina, numa odisseia mercantil que lhe permitiu conhecer diferentes culturas e adquirir impensáveis experiências de vida.
Em meados dos anos oitenta, retornou à terra-mãe após o que decidiu concentrar o melhor da sua atenção e do seu esforço na actividade cultural, nomeadamente na criação literária, tornando-se a escrita numa espécie de companheira fiel nos rebates de saudade das suas viagens e dos tempos felizes da sua juventude. Muitos desses momentos e dessas recordações materializou-as em belos quadros literários de um forte e expressivo realismo. Carlos Abreu revelou-se tardiamente como literato. Porém, depressa se tornou num valor seguro da cultura algarvia.
Como colaborador da imprensa algarvia estreou-se, em 1983, nas colunas do «Farol do Sul», passando pois pelas revistas «Nova Costa d’Oiro» e «Cadernos Históricos», e terminando no «Jornal de Lagos». Todos esses órgãos estavam sediados na sua terra-natal. Essa sua desinteressada colaboração na imprensa incidia geralmente em aspectos literários, muito particularmente na publicação de contos e de crónicas de belo recorte estilístico, a maioria das quais inspiradas nos actuais moldes da literatura britânica. Nessas crónicas revelava uma invejável cultura cosmopolita, estribada no conhecimento de diversas línguas e civilizações, nas suas experiências sociais e sobretudo nas viagens que realizou pelos quatro cantos do globo.
Os seus contos evidenciavam uma rara beleza estilística e uma grande versatilidade na construção do discurso literário. Já próximo do fim da vida dedicava-se aos estudos históricos regionais, sobretudo os que respeitassem à Náutica dos Descobrimentos. Não o fazia com grandes pretensões científicas, mas tão só pela simples curiosidade de saber mais sobre o glorioso passado da sua terra-natal. Por outro lado, Carlos Abreu era um inveterado apreciador das coisas marítimas e também um velejador que percorria a costa algarvia com a curiosidade de perscrutar os sentidos dos velhos argonautas seus antepassados.
Como intelectual e escritor foi membro de plenos direitos da Associação Portuguesa de Escritores, da Sociedade Portuguesa de Autores e da Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve. Foi também Presidente da Direcção dos Estudos Marítimos de Lagos e vice-presidente da Academia de Música de Lagos, tendo igualmente pertencido aos corpos directivos do Círculo Cultural Teixeira Gomes e do Centro de Estudos Gil Eanes.
Quem teve o privilégio de privar com o Eng.º João Pimenta ou o escritor Carlos Abreu, sabe o quanto era estimado na sua cidade de Lagos, não só pela sua estampa de “cavalheiro britânico” como sobretudo pelas qualidades intelectuais e bonomia de carácter. Tinha amigos em todos os quadrantes sociais e à sua volta havia sempre quem o escutasse com atenção, admirando a forma como se exprimia, num tom sereno, baixo e pausado, próprio de um homem fino e educado. Pouco tempo antes de falecer tínhamos estado juntos no Centro Cultural de Lagos, onde fiz a apresentação do livro de Vieira Calado, Transparências, no fim da qual falamos dos seus projectos futuros, nomeadamente da preparação de um romance que tinha em mãos. A seu lado estava o também nosso comum amigo José Paula Borba e entre as suas preocupações recordo-me que destacava a centenária Sociedade Filarmónica com a sua notável escola de música, e a Misericórdia de Lagos a cuja benemerência não regateava elogios. A sua esposa, senhora de invejável beleza, segundo creio de origem britânica, subscrevia-lhe as preocupações, sobretudo na “cruzada” da música, cujo ensino entendia de fulcral importância na formação da juventude. Era um casal raro na nossa pequenina e por vezes tão provinciana sociedade.
Apesar de tudo, parecia estar bem de saúde e com vontade de prosseguir os seus projectos literários. Porém uma arreliadora insuficiência respiratória mantinha-o em tratamento médico, creio que em Coimbra e no Porto, onde se deslocava amiudadas vezes também para se actualizar junto das tertúlias literárias que o recebiam com agrado e satisfação. O seu porte elegante e cavalheiresco, o cachimbo inglês e os cigarros Gauloise, conferiam-lhe um semblante especial, a imagem de homem de outro pensar e de outros mundos. Verdadeiramente singular, Carlos Abreu era um estrangeirado, herdeiro da nobre cepa lacobrigense. Da sua estirpe havia poucos no Algarve e nesse alfobre de intelectuais, que é e sempre foi a cidade de Lagos, fica agora uma vaga insubstituível e uma profunda saudade.
A vida de Carlos Abreu foi uma odisseia pelo mundo fora, sobretudo em África e na América Latina, onde trabalhou como engenheiro mecânico na reparação naval ao serviço de uma empresa multinacional sediada em Paris. Dessa vivência e da sua intrínseca apetência para a escrita nasceram os seus romances Concurso Internacional, 1987; Em Busca de Ilusões, 1989; e Tolentino Venâncio, grande industrial, 1998, para além de dois livros de crónicas intitulados Gentes de Lagos, 1994 e Lagos, um certo tempo – Crónicas e reflexões, 1998.
Pouco tempo antes de falecer confidenciou-me que tinha prontos a entrar no prelo um romance intitulado «O Pescador de Sagres» e uma peça de teatro em três actos, «A Casa de Yolanda», cujos originais deverão permanecer em posse dos herdeiros. Projectava também dar a público uma compilação das suas melhores crónicas publicadas nos órgãos regionais acima referidos.