quinta-feira, 31 de maio de 2012

Filomena Valente Bencici, uma diva do «Scala» de Milão no Teatro Lethes, em Faro

Desta vez não trago para esta tribuna uma mulher algarvia, mas antes uma italiana que deixou no Algarve o perfume da sua graça, da sua majestosa beleza e do seu enorme talento. Foi contralto do «Scala» de Milão, e parece que pontificou com a indelével marca do seu génio artístico o histórico proscénio, no qual partiu corações noites a fio, com o seu belo-canto. Dizem que do seu camarim, irradiava um inebriante perfume, exalado por milhares de flores, abraçadas em bouquets das mais vivas cores, com os quais a presenteavam os seus mais fiéis admiradores. No carmesim do seu canapé beijaram-lhe as níveas mãos muitos artistas e escritores, a maioria deles na plenitude das suas juventudes, mesmo até quando a diva Bencici empapava o rosto em caros unguentos para esconder os sulcos da idade. Fez-se amada, e por certo amou também, aquela que ao Scala de Milão, no último quartel de Oitocentos, chamou ao seu camarim alguns velhos Reis e jovens Príncipes.
Dizia-se que a sua beleza lhe advinha do sangue judio que lhe corria nas veias. E terá sido certamente essa, entre os seus incontáveis atributos artísticos, uma das razões que a trouxeram até ao palco do nosso Teatro Lethes, a pedido, senão mesmo sob o patrocínio, da argentária comunidade judaica aqui sediada. Porém, como o Dr. Bernardino da Silva, ilustre médico e musicólogo, se correspondesse com alguns músicos italianos, que frequentavam e atuavam no «Scala» de Milão, conseguiu que a famosa contralto desse em Olhão o seu primeiro concerto, acompanhada ao piano por Luís Augusto César de Sousa Coelho, tendo a seu lado e à flauta o próprio Dr. Bernardino da Silva. O sucesso foi enorme, mas faltou-lhes uma sala apropriada à dignidade artística da atuação, que assim se quedou pela restrita assistência da burguesia dos serviços e pelos empresários da pesca. Não se pense, porém, que era gente simples e ignara, já que nessa altura pontificava em Olhão uma verdadeira plêiade de intelectuais, artistas e políticos, que haveriam de honrar o nome daquela vila piscatória, e de elevar o do próprio Algarve, às alturas da honra e da nobreza dos seus actos de génio artístico ou de grandeza patriótica.
Foi, pois, na noite de 23 de Março de 1889 que Filomena Valente Bencici, a famosa contralto do «Scala» de Milão, pisaria pela primeira e única vez o palco do Teatro Lethes, em Faro, onde foi acompanhada pela orquestra de Francisco Jacobetty, que nessa altura se encontrava em tournée pelo Algarve. A bela Bencici teve uma noite de estrondoso sucesso, no nosso pequeno «Scala», cujos camarotes se encheram com as famílias notáveis da cidade, numa verdadeira e democrática amalgamação das elites urbanas e empresariais com a classe média dos serviços e do funcionalismo público. A família Cúmano, que explorava e dirigia o Teatro Lethes, cobriu-se mais uma vez com a glória da benemerência e da gratidão pública.

BELMARÇO, Adelaide do Rosário

Não deve haver hoje na cidade de Faro quem se lembre desta senhora. E, no entanto, pertenceu à nata da melhor sociedade, à fina flor da burguesia farense. Nasceu em Faro, julgo que em 1884, no seio da família Belmarço, que como se sabe era das mais distintas da cidade. Essa distinção social não lhe advinha do berço, nem das qualidades morais ou intelectuais, mas antes do dinheiro, que um seu distinto antepassado trouxera para a cidade onde assentou âncora, depois de uma vida de atribulados negócios, e zagaiados sucessos, nos brasis.
A senhora Adelaide do Rosário era prima-irmã, como soe dizer-se, do conhecido e muito apreciado professor do Liceu de Faro, Vidal Belmarço, que foi homem da alta-roda, mas que teve uma juventude marcada pelo infortúnio financeiro, apenas suavizada pelo sucesso entre o público feminino. O prof. Vidal era uma mistura de boas maneiras francesas com um vestuário e algum snobismo britânico à mistura. É claro que aqui na parvónia, no trato do gentio ignaro, não passava de um falido com ares de rico. E para ganhar a vida com a honradez que se lhe exigia, foi-se à vida e fez-se professor, valendo-se da esmerada educação e da formação académica que adquirira.
A sua prima, Adelaide Rosário, sendo dotada de fina educação e enorme sensibilidade para as artes, seguiu os passos do primo, e fez-se professora da secção feminina do Liceu, lecionando música durante várias décadas, até ao início da década de cinquenta do século passado. A sua casa era também um verdadeiro templo de Orfeu, onde se ministravam lições particulares de piano, canto e declamação, para as meninas da mais alta sociedade farense. No tempo em que o Ginásio Clube de Faro era o areópago das artes, e o cenáculo intelectual da classe média, a D.ª Adelaide do Rosário Belmarço costumava presentear os seus modestos conterrâneos, nas amenas tardes primaveris, com magníficos concertos de piano. O público não se fazia rogado na estridência dos seus aplausos, sobretudo quando se deixava embevecer pelas sonatas de Haydn, Beethoven, Mozart, Schubert, Chopin e Liszt.
Já septuagenária e algo debilitada rumou à cidade do Porto, onde viveu no conforto dos familiares mais próximos até ao fim da vida, cujo desenlace ocorreu nos fins de Abril, ou princípios de Maio, de 1964, quando tinha precisamente 80 anos de idade. Lá ficou, no cemitério de Agramonte, na Invicta cidade da Liberdade, uma algarvia ilustre de que hoje já ninguém se lembra.