quarta-feira, 19 de junho de 2013

O tempo da memória no miradouro da vida

José Carlos Vilhena Mesquita
«Toda a obra de arte é uma personalidade.
O artista vive nela, depois de ela ter vivido
longo tempo dentro dele» J.M.Vargas Vila


A maior interrogação do homem provém da natureza da sua existência. Quem somos, de onde vimos e para onde vamos, não é um esfíngico enigma tebano, nem tão pouco um ancestral mistério da filosofia escolástica grega. É, tão simplesmente, a dúvida fundacional da humanidade, que inspirou credos e religiões, sustentou doutrinas e ideologias, libertou povos e erigiu nações nos mais díspares quadrantes do globo. Mas, no fundo, as dúvidas que infundem esse indecifrável enigma, correspondem tão simplesmente à dimensão natural do tempo, ou seja à sua partição evolutiva em passado, presente e futuro. É essa a dimensão que do nosso Miradouro da Vida conseguimos vislumbrar.
Desde o primeiro frémito de vida até ao último suspiro em que se evola a alma, vemos perpassar pelo mirante da nossa existência o esplendor da criação, o regozijo da posse, o orgulho do saber, a aptidão imaginativa, o talento inventivo, a glória do sucesso, o reconhecimento social e o conforto da velhice. Mas o elo de ligação entre os elementos do tempo e as fases da vida chama-se Saudade. Aos que, no mirante da açoteia da vida, resistiram no vórtice do tempo às Parcas do destino, só lhes resta agora a volúpia de recordar, esse sensual prazer de poder afirmar eu vi, eu estive lá, eu conheci-o, eu sei como tudo aconteceu. O tempo faz a vida e faz o ancião, ambos são sinónimos de experiência e de sabedoria.
A origem da poesia provém etimologicamente do vocábulo grego “poiéw”, que traduz a ideia de fazer e criar. Por conseguinte, desde que os homens se uniram para fazer a civilização e criar o Estado – conceberem a soberania, a liberdade e a cidadania –, coube à poesia a missão de fazer lembrar e transmitir o passado, em palavras encadeadas pela musicalidade da rima, para que fossem facilmente decoradas e repassadas às gerações seguintes. Antes da invenção da escrita e do registo da História, foi a poesia quem uniu os povos e lhes infundiu a dimensão do tempo e a herança do passado, servindo-lhes de arauto e de mentor, para que nunca esquecessem de onde vinham, quem eram e para onde queriam prosseguir o seu caminho.
Daqui se infere que, desde as origens da civilização até ao devir intemporal da humanidade, sempre a poesia marcou indelével presença na transmissão da História e na construção da Cultura. A poesia é, pois, a charneira da Civilização. E mesmo que os povos pereçam e as nações se extingam, ecoará para sempre no Miradouro do Tempo uma voz do passado, como uma prece poética, suplicando aos vindouros que não olvidem os que ficaram para trás, encobertos na bruma da história. Essa voz, impetuosa e arrebatante, é a inconfundível voz dos poetas.
É precisamente essa voz, de lídimo poeta, que tenho a honra de apresentar, nesta progressiva cidade de Albufeira, na pessoa do Dr. Manuel dos Santos Serra, insigne cidadão e figura modelar da medicina algarvia, distinto humanista e incansável defensor dos supremos valores da Liberdade e da Democracia. Poucos serão os que hoje lhe poderão imitar tão profícuo trajeto de vida, porque para tanto lhes faltará não só o génio, como principalmente a humildade, a abnegação e o desprendimento para, em todos e em cada um, ver o irmão que sofre e precisa do seu solidário apoio, nas horas difíceis, em que por vezes, a vida, num segundo, se esvai e a alma se desvanece.
O livro que o Dr. Santos Serra traz hoje a público, tem por título Miradouro do Tempo. É um livro de poemas, que, tal como os anteriores, tem a chancela da Caleidoscópio. Apresenta na capa um belo quadro a óleo, sobre a baía de Sagres, da autoria do notável pintor Samora Barros. Uma opção inteligente e louvável, pois que aquele exímio pintor, e ilustre albufeirense, foi também um admirável cultor das musas.
A obra em si comporta 104 poemas, idealizados de forma livre, sem as peias métricas nem as sonoridades rítmicas, que a ortodoxia lírica impôs nos templos de Orfeu aos adoradores das musas. Uns são curtos e incisivos, enquanto outros são mais alongados nas suas lucubrações filosóficas, nas suas imagens poéticas ou nos seus subterfúgios metafóricos. O livro tem três fases distintas. A primeira é mais lírica, mais artística, mais consentânea com a produção anterior do poeta. Evidencia um espírito sonhador, utópico e idealista, no fundo revela o poeta na sua faceta mais cristalina. Os versos são curtos e os poemas são pequenos, como se fossem medalhões poéticos. Mas o seu embasamento filosófico obriga o leitor a uma reflexão mais atenta e prolongada. O lirismo é omnisciente. Repare-se nos primeiros poemas e na sua ponderação sobre o valor e necessidade da poesia, sobre a conceção poética e as ilusões do poeta. Vê-se que pela escadaria do poema fluem sentimentos de saudade, fantasia e alucinação, recordações de paraísos errantes e de alegrias juvenis, de desilusões, privações e morte. Em alguns poemas constatei recursos estilísticos não verificados em obras anteriores, como é o caso das repetições vocabulares dentro do mesmo verso, o que já não acontece nas fases seguintes do livro. Permita-se-me aqui destacar alguns poemas que se incluem nesta primeira parte: «Magos da Leitura», «Porquê», «Meditando» (verdadeira ode ao Mar), «História» (autobiográfico) e «A magia do verso» (verdadeiro hino à poesia).
A segunda fase do livro começa precisamente com o poema que serve de título a este livro, que merece ser lido, refletido, ponderado, dissecado, anatomizado e vagarosamente comentado. Jorge Luís Borges dizia que bastava um verso para salvar um livro, mas se fosse um poema então salva-se toda a obra do poeta. Neste caso, diria que são muitos os poemas que salvam este livro e dignificam para sempre a memória do poeta Manuel dos Santos Serra.
Esta parte do livro é mais romântica e mais intimista, porque reflete não só as experiências passadas como as vivências privadas do poeta. O prazer de recordar e a nostalgia da memória são muito prementes. Nota-se também nestes poemas uma sincera preocupação ecológica e uma profunda revolta, contra a destruição paisagística e os atropelos ambientais, perpetrados em nome do progresso e da modernidade. O Algarve e suas praias, os lugares históricos e a sua beleza ambiental, são assuntos recorrentes nos seus poemas. O amor e a natureza são nesta fase os temas fulcrais do livro. O amor oscila entre o platónico e o físico, mas o erotismo é a essência e a alma da poesia. A forma velada como se revela a sensualidade do amor é o mais sublime perfume da poesia. Mas é a Natureza que aqui se assume como uma espécie de heroína ou de personagem central, em torno da qual decorre o Tempo, esse invisível espaço pelo qual perpassa a vida e as incontornáveis transformações das mentalidades, das ideologias e das nações. A apologia da natureza é mística e ascética, e os poemas são como preces de exaltação à pureza e virgindade do que é natural, genuíno, íntegro e imaculado. O poeta é fruto da paisagem que lhe iluminou a infância, e lhe moldou a alma na terra perfumada pelas amendoeiras em flor.
O Dr. Santos Serra usando da palavra, ladeado por
Vilhena Mesquita e pela vereadora da cultura da C.M.A.
Por fim, sente-se no poeta o peso da idade, e essa é uma realidade transversal a todo o livro. Alguém disse que recordar é a voluptuosidade dos velhos. Essa é uma realidade constante neste livro. A angústia do tempo que passou e não pode ser revivido, a nostalgia de recordar o que se viu e não mais se vê, causa no poeta uma profunda amargura. A velhice é o desalento do herói. A anciania é o heroísmo de vencer o tempo no desconforto da saudade. Neste livro são vários os poemas sobre o descanso do guerreiro, cuja idade lhe sobrecarrega a memória de recordações que o tempo foi acumulando no cofre da alma. E o tempo está pejado de sombras que a luz da vida já não pode iluminar. O maior castigo da velhice é sem dúvida a saudade da lembrança.
Permita-se-me que destaque desta fase, entre muitos outros possíveis, apenas os seguintes poemas: «Algarve» (ode regionalista), «Ritual do Amor» (erotismo profundo), «Reencontro» (erótico-sensual), «Fatalismo» (sobre a vida e a morte) e «Decadência» (apostasia religiosa).
A terceira e última parte é aquela que faz da poesia o predestinado arauto da história. Fala dos tenebrosos mitos que dominavam os mares tumultuosos, e dos lusos argonautas que divisaram horizontes de esperança em terras longínquas, onde nunca chegara a promessa da civilização. Exalta o nome de um povo que foi de Gamas, Cabrais, Magalhães e Albuquerques, mas que agora nem desse passado se pode orgulhar, porque de mão estendida se deixou submeter à força bárbara da gente alheia. «Fomos jovens, rebeldes, musculados, / O que havia e não havia fomos ver, / O mundo quis saber o nosso nome / E registou-o em lendas, / Em papiro de aço / Fomos… / Fomos… / Fomos… / Hoje, a Pátria que nos resta, / Tem um ramo de rosas secas no regaço».
A par da poesia de temática histórica sucede-lhe a fase do Realismo Poético, um estilo raramente visto na moderna poesia portuguesa. Por isso considero que esta é a melhor parte do livro, por ser a mais fiel ao espírito revolucionário da poesia e também a mais consentânea com a personalidade do Dr. Manuel dos Santos Serra, um indómito defensor da liberdade e um intransigente protetor dos direitos humanos. Infelizmente são já raros os homens, que como ele se apaixonam pela nobreza dum ideal e pela soberania da justiça, lutando com todos as suas forças pela defesa da verdade e pela proteção dos mais fracos. Por isso é que os seus poemas não se eximem de retratar os dias negros que o nosso país tem vivido ultimamente, acusando sem temor os nossos governantes de serem os algozes duma pátria que civilizou o mundo. «Agora este pobre e velho povo / Como um deus doente, / Ultrajado, andrajoso, mal-amado / Pelos filhos infiéis / Cisma, cisma no milagre a inventar, / De fazer deste fraco povo, forte gente!»
A crise económica em que vivemos tem causado grande instabilidade social, gerando insegurança, desconforto e sobressalto na vida de todos os cidadãos. Um angustioso clima de egoísmo e de nefasto individualismo, uma exacerbação material da vida tomou conta dos destinos do mundo e derrubou os supremos valores do espírito, da moral e da ética. Vivemos hoje tempos de dependência e de subalternidade aos desígnios alheios, semelhantes aos que viram Camões perecer numa infame enxerga de hospício. A esperança perde-se a cada instante e o futuro reserva-nos dias sombrios de angústia e sofrimento. Resta-nos talvez a poesia e a leitura de livros como este para cuidarmos de resistir e de sobreviver o melhor que pudermos, contra este pacto de agressão internacional a que a pátria e o povo português se acha submetido.
O Dr. Santos Serra agradecendo ao declamador João Pires e a
Vilhena Mesquita a colaboração prestada na apresentação do livro
 

Em suma…

A centúria de poemas que compõem este Miradouro do Tempo percorre uma panóplia temática muito diversificada. Numa rápida súmula posso afirmar que os temas principais, ou seja os que consegui padronizar, são de carácter ambiental, cósmico, religioso e sentimentais. Não obstante, é na oclusão da vida e no mistério que envolve a face obscura da morte, que se focaliza o núcleo lírico desta obra.
No que concerne à temática ambiental são constantes as evocações relacionadas substancialmente com a Água, enquanto fonte da vida, mas também com as chuvas e os rios, contrastando com os seus opostos, o sol, as secas e os incêndios, a luz, o brilho e a cor, tudo isto estrategicamente ordenado numa poesia de contrastes e de recordações. Mas não nos deixemos iludir nesta imbricada teia naturalista, porque é nela que o Mar se assume como elemento agregador e difusionista da mensagem poética deste livro. Diria mesmo que o mar é o tema fundacional na poesia de Santos Serra.
Mas, no âmbito dos elementos cósmicos o tema principal é o Tempo, não só na sua dimensão de passado como também na sua interpretação metafórica, sendo por vezes evidente a sua personificação, quer como sujeito quer como agente proactivo na execução poemática. Além do mais figura na composição do título da obra. Na conjugação poética do tempo recorre-se a elementos mais comuns como o vento e a tempestade, a primavera das flores ou as trovoadas do inverno, o azul do céu e o brilho das estrelas no ebúrneo firmamento algarvio.
Os elementos religiosos, embora escassos e, por vezes, dissimulados, estão latentes na poesia de Santos Serra. Deus é uma entidade omnisciente, mas só abstratamente revelada, enquanto a alma é um recurso funcional na construção diegética do poema. Aparecem fugazmente outros conceitos como o milagre, o paraíso, a igreja e até mesmo o Olimpo, numa alusão ao paganismo clássico.
Mais prementes e abundantes são os elementos sentimentais, de entre os quais impera o amor, platónico e físico, sendo neste caso de realçar o profundo erotismo que ressuma em dois poemas, que por serem muito belos, quase extasiantes, não resisto à tentação de aqui lhes citar os títulos: «Ritual de Amor» e «Reencontro». A par do amor seguem-se os afetos e enamoramentos, o ardor da paixão, o prazer do sexo, a liberdade de amar, mas também a fidelidade no contraste com a perfídia e o adultério. A saudade é, no caso do amor e da paixão, um sentimento avassalador, a que se juntam, como reforço poemático, as lágrimas e a dor da separação, a desilusão e a depressão, a doença e a morte.
Sem grande esforço analítico poderia afirmar que existe ao longo deste livro um fio condutor. É arrojado dizê-lo quando se trata de uma obra de poesia, mas não há dúvida que o tempo é o elo de ligação, mas a memória é o cerne e a alma de todo o livro. Mais curioso, ainda, é notar que a dimensão tempo, sendo o cadinho em que se fundem a generalidade dos poemas, assume-se aqui como um nostálgico sentimento de perda, e de privação, de algo que ficou no passado e já não volta nem se recupera. Essa nostalgia não é saudosista. É antes, e tão só, o puro sentimento lusíada da saudade, não de quem parte mas de quem vê partir.
Panorâmica do auditório durante a apresentação do livro
Se o que caracteriza o género poético é a harmoniosa beleza da palavra esculpida nos interstícios do poema, capaz de despertar no leitor sentimentos e emoções, de agitar sensibilidades e inspirar comoções, então sim, podemos afirmar que este é verdadeiramente um livro de poesia, cuja leitura nos elevará até aos sagrados altares da arte e da estética literária. Porque, na verdade, um poema é uma espécie de tela pintada com palavras, em cuja têmpera o poeta terá de selecionar as mais finas cores. Mas se quisermos ser mais abrangentes então podemos afirmar que toda a Arte é Poesia, porque ambas personificam o Belo e a Verdade.
Antes de ser Arte e Literatura, a poesia é essencialmente a voz sublime da Natureza. É claro que quando falo em Natureza estou a referir-me a tudo o que rodeia e consubstancia a vida. As correntes literárias vanguardistas tentaram alterar a função primacial da poesia, como expressão natural da vida, mas não só foram mal sucedidas como ainda tiveram uma efémera existência. A razão desse insucesso prende-se com a falta de sinceridade, porque só permanece e resiste tudo aquilo que é sincero e natural. A imitação do talento poético é a contrafação da arte, pelo que rapidamente se transforma em caricatura e tédio.
Em boa verdade, não é fácil tocar violino num rabecão.