Os pescadores da vila de Olhão da Restauração, representados pelo Juiz e demais oficiais do Compromisso Marítimo, pediram ao Rei, isto é, à Regente Isabel Maria, em 12-2-1828 [dez dias antes da chegada de D, Miguel a Lisboa, e do subsequente período da usurpação do trono], que abolisse a designação de Peixes Reais, constante no Foral outorgado por D. João VI, em 1808, para as Baleias, Baleotes e Roazes, assim como outros peixes de maior porte e elevado peso. Esclareça-se que os Baleotes ou Baleatos, são igualmente cetáceos ou baleias de menor porte, que por vezes se confundem com cachalotes. Os Roazes são igualmente cetáceos, mas da família dos Delfinídeos, mais conhecidos por Golfinhos, que na nossa costa durante a primavera perseguem os atuns e corvinas, espécies muito valiosas capturadas nas artes de cerco, que se lançavam em todo litoral algarvio sob a designação de armações, ou de almadravas, orientadas "de direito", na direção do Mediterrâneo, ou "de revés", no regresso ao Atlântico, conforme as migrações dos tunídeos. Já agora, aproveito para esclarecer que nas armações do atum se capturavam também muitas Toninhas, que são golfinhos mais pequenos com razoável valor de mercado, por causa da sua gordura para fins alimentares e industriais.
O tempo era o mais azado para estas pretensões reivindicativas das autoridades provinciais e dos direitos dos povos, já que nesses dias pairava na Corte, e no país em geral, um clima de grande incerteza e aflitiva insegurança, pois todos previam profundas e sensíveis alterações no paradigma político. Havia pois que aproveitar essa aparente "desordem" governativa para pedir reformas e mudanças significativas, sobretudo no aparelho fiscal e na cobrança tributária dos direitos que impendiam sobre o trabalho e as transações, quer comerciais quer industriais.
O caso correu pela mão do Superintendente das Alfandegas do Algarve, que despachou de modo favorável aos interesses dos pretendentes.
Mas, o Tribunal da Fazenda e o respetivo Conselho concluíram que não podiam abolir as determinações do Foral, por ser uma decisão da responsabilidade exclusiva da Câmara dos Deputados. Pelo que para satisfazer a vontade dos pescadores olhanenses, aquela Câmara teria de aprovar uma Lei que regulasse de forma específica e discriminada todos os peixes que pudessem ser capturados nas águas da jurisdição marítima de Faro e de Olhão.
Olhão levantamento topográfico de J. Pery |
Por outro lado, o Procurador da Fazenda escreveu ao Conselheiro Filipe de Sousa Holstein para que naquela Câmara fizessem aprovar uma lei que fosse de encontro aos interesses dos pescadores do Compromisso Marítimo de Olhão, usando para esse efeito da iniciativa que lhe confere a Carta Constitucional no artigo n.º 46, com o objetivo de revogarem parte do Foral da Portagem de Faro, o capítulo 94 do Regime dos Contadores, e «quaesquer outras Leys, Foraes ou costumes, em virtude dos quaes a propriedade dos chamados peixes reais era privativa da Coroa, e se declare que todos e quaesquer peixes, sem excepção alguma, são propriedade de quem os pesca, ou sendo encontrados mortos, de quem primeiro se apodere d'elles».
O processo arrastou-se durante anos, correu Ceca e Meca, de ministério para ministério, sem obter decisão definitiva que satisfizesse o interesses dos pescadores olhanenses. A única entidade que se comportou de forma séria e célere foi o Conselho da Fazenda, despachando que dentre os "Peixes Reaes" deveriam pertencer aos pescadores do Compromisso de Olhão apenas os Roazes capturados, que era na verdade a única espécie que lhes interessava, já que as baleias e baleotes haviam desaparecido das costas algarvias. Mas, quando tudo parecia resolvido, um decreto datado de 25-2-1831, certamente redigido pelo Ministério do Reino, mandou retornar tudo à posse do ministério da Marinha e Ultramar, visto ser a entidade responsável pelas pescarias.
Quando o processo chegou às mãos do probo Ministro da Fazenda (designado Secretário de Estado), o 3.º Conde da Lousã, D. Diogo José Ferreira de Eça Meneses (1772-1862), que também desempenhava as honrosas funções de Presidente do Tesouro Público (cargos que ocupou até 1-8-1833), teve a dignidade de enviar, a 29-3-1831, ao 6.º Duque de Cadaval, D. Nuno Caetano Álvares Pereira de Melo, Ministro Assistente ao Despacho, isto é, chefe do governo de D. Miguel, o seguinte ofício, que vai desencalhar todo o processo:
«Illm.º e Exmº Sr. - Quando estava próximo apresentar a El Rey Nosso Senhor, para obterem a sua regia confirmação, os ultimos trabalhos sobre a propriedade dos Peixes chamados =Reaes= que os pescadores da Villa de Olhão da Restauração pertendem lhes seja concedida, acerca do que havia consultado o Conselho da Fazenda, em 12 de Fevereiro de 1828, reformando esta consulta em 27 de Agosto de 1929; a favor dos quaes já o mesmo Augusto Senhor Havia defferido permittindo que lhes pertencessem os Roazes que pescassem pagando por elles os competentes direitos; tive prezente o Real Decreto de 25 de Fevereiro proximo passado que declara serem da competencia da Secretaria d'Estado dos Negocios da Marinha e Ultramar todas as dependencias relativas a Pescarias: nestes termos tenho a honra de passar às mãos de V.Excª na sobredita conformidade, as duas consultas pertencentes ao assumpto referido e hum Requerimento dos Supplicantes; assim como outros papeis que o Conselho da Fazenda juntou às ditas consultas sobre igual questão dos Pescadores da Povos de Varzim, a fim de que V. Excª se sirva de os apresentar de novo a S. Magestade para resolver como for do seu Real Agrado a similhante respeito.
Deus guarde a V. Ex Sec.Estado dos Negocios da Fazenda, 29 de Março de 1831 - Exmº Sr, Duque do Cadaval - Conde da Louzaa, D. Diogo». [ANTT, Ministério do Reino, Maço 421, cx. 527, nº(1831).
Até que, o governo miguelista aprovou a lei de 5-9-1831 que satisfazia os interesses de ambas as partes, isto é, atribuía um terço da venda das baleias e baleatos aos pescadores que as capturassem, deixando a venda dos Roazes e outras espécies designados por "Peixes Reais" reduzidas aos direitos legais (que eram mínimos ou nulos), exceptuando-se os casos em que sejam capturados nas praias situadas a cinco léguas da residência régia, o que seria também muito improvável de acontecer.
Extratamos da «Gazeta de Lisboa», nº 238, de 8-10-1831, p. 987, a publicação da referida lei:
«Tendo sido presente a ElRei Nosso Senhor em Consulta do
Tribunal do Conselho da Sua Real Fazenda de 12 de Fevereiro de 1828, reformada
em 27 de Agosto de 1829, o Requerimento dos Pescadores da Villa d'Olhão,
supplicando que lhes fosse considerada como propriedade sua todo o Peixe, que
elles pescassem, sem excepção dos chamados Reaes, não obstante a disposição do
Foral em contrario, pagando eles do mesmo Peixe sómente os devidos Direitos: Houve
o Mesmo Augusto Senhor por bem tomar na dita Consulta a Real Resolução do theor
seguinte:
Sou Servido Resolver, e Declarar: Que as Baléas, e-Baleatos,
que os Pescadores apanharem no Mar, ou trouxerem mortos ás Praias de Meus
Reinos, se arrematem para Nós, deduzindo-se do seu valor a terça parte para os
Pescadores, que as epresentarem nas Praias. Os Peixes porém denominados Reaes,
como Roazes, e outros, que são denominados com este titulo pelos Pescadores,
serão conduzidos á Minha Ucharia, se Eu residir dentro de cinco legoas contadas
da costa para a terra, ou lateralmente, em que aportar a Embarcação, que os
conduzir; mas não residindo Eu dentro das cinco leguas, pagar-se-hão tão somente
os Direitos, que se deverem pagar, sem mais Inposição; ficando assim livre o
Peixe, 'a quem o pescou. – Palacio de Queluz, 5 de Setembro de 1831. – Com a
Rubrica d’ELREI NOSSO SENHOR.»
Pela leitura do diploma oficial fiquei com mais dúvidas do que certezas, porque não resulta claro nem a percentagem nem o valor a pagar pelo resultado absoluto do pescado. Penso que a pesca da baleia estava há muito em decadência, senão mesmo desativada no Algarve, e as capturas tanto de baleotes como de roazes eram muito esporádicas, ocorrendo alguns casos na época do lançamento das armações do atum, ou seja, na primavera, quando os cetáceos se aproximavam da costa em busca dos tunídeos, e por isso ameaçavam causar estragos nas labirínticas redes das velhas almadravas.
O porto e alfândega de Olhão, com vários caíques |
Só após a implantação do Liberalismo é que se revogaram todas as alcavalas e tributos que impendiam sobre as pescas, não só no Algarve como em todo o país, cessando os privilégios sociais como os direitos fiscais da Coroa, abolindo-se definitivamente os direitos fiscais sobre os chamados "peixes reais", que mais não eram do que os antigos tributos da baleação.
A petição dos pescadores do Compromisso Marítimo de Olhão, assim como todo o processo judicial que se foi construindo até à decisão final do governo, encontra-se à leitura pública no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, núcleo do Ministério do Reino, secção das Consultas da Fazenda, Maço 306, caixa 410.
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