sábado, 15 de agosto de 2009

A justiça que tarda e não funciona


José Carlos Vilhena Mesquita

Um dos aspectos mais tormentosos do nosso mediatizado quotidiano político-socioeconómico é a feição despreocupada e leviana como (não) funciona a Justiça. Confrange ver a forma vagarosa, madraça e ronceira como evolucionam os processos judiciais, cuja indolência tem vindo a contagiar inexoravelmente a vida económica, o ritmo da produtividade e o desenvolvimento social do país. A Justiça é o palco da vida, mas a forma arrogante como o aparelho forense e a magistratura usa e abusa das suas prerrogativas de imunidade e de privilégio, suscitaram em surdina uma crescente revolta contra a Soberania da Toga, desacreditando o próprio exercício judiciário.
Em boa verdade, a Justiça é um serviço de primeira necessidade e um bem essencial ao ordenamento cívico das sociedades modernas. Acima de tudo a Justiça constitui a primacial referência da honradez nacional. O foro e toda a sua envolvência humana, deveria reflectir para a sociedade uma imagem de isenção, de idoneidade e de verticalidade moral. Porém, o que vemos diariamente é o Tribunal da Boa-Hora transformado no palco mais conhecido do país, com mais exposição mediática do que o próprio Teatro Nacional de D. Maria II, ou do que a ópera de São Carlos.
A Justiça é o esteio da civilização, o arquétipo da cultura ocidental, o barro em que se modelou o Estado moderno e no qual se gizaram os direitos de cidadania. A Justiça é o sagrado bordão em que se amparam os mais fracos contra a opressão dos mais fortes. Em suma, a Justiça é a vara que padroniza a austeridade do poder judicial e o estro pelo qual medimos a sombra da verdade.
Porém, no decurso dos últimos trinta anos foi-se degradando numa progressiva desacreditação aos olhos do público. O foro parece ter-se transformado num palco onde a justiça se desenrola num espectáculo de intriga, traição, corrupção e sangue, à volta do qual se reúne o povo, apupando os criminosos e não raras vezes aclamando em triunfo certas figuras públicas (autarcas e políticos) acusadas de cometerem, ou não, os chamados crimes de “colarinho branco”.
O segredo de justiça, outrora um instrumento fulcral para o apuramento da verdade e, sobretudo, para o harmonioso desenrolar do processo judicial, é hoje constantemente desvelado e inoportunamente publicitado, fruto das espúrias relações da imprensa com o Ministério Público. Face à sociedade mediatizada e informacional em que vivemos, é lógico que os arguidos assim revelados se transformam em réus na praça pública, acusados e condenados pelas viperinas línguas e vituperiosas opiniões daqueles que, nada sabendo de justiça, querem à viva força enforcar no laço da sua maledicência muitos cidadãos inocentes, cuja honra e estirpe ficará, desse modo, para sempre conspurcada.
Pior ainda é quando os média de baixa índole e de rasteira deontologia profissional (especialmente os jornais sensacionalistas e as revistas cor-de-rosa), se divertem a devassar a vida privada dos supostos arguidos judiciais, fazendo-os perseguir por detectives privados e por “paparazis” sem escrúpulos, publicando fotos dos seus familiares e das suas relações mais íntimas, numa vasculheira sem limites que só emporcalha a nossa imprensa e putrifica a nossa, já de si paupérrima, opinião pública. A privacidade dos cidadãos vale cada vez menos, como igualmente perdeu todo o valor a noção de honra e de elevação moral daqueles que, por obra do seu génio e talento criativo, se distinguem da vil mediocridade em que vivemos. Esses têm sido, aliás, as vítimas preferencialmente devassadas pela nossa imprensa sensacionalista, tantas vezes auxiliada pela especulação boateira ou pelo esburgado segredo de justiça. Este crescente “voyeurismo” da nossa provinciana opinião pública tem sido incentivado pelos canais televisivos, através duma programação estupidificante que visa controlar e indolentar mentalmente as suas audiências. Atente-se, como exemplo, no ressuscitar do «Big-Brother», agora em moldes ainda mais aberrantes para a saúde pública mental, no qual se pretende dar a entender que as mulheres são estúpidas, ainda que bonitas, e os homens são-lhes superiores pela inteligência e pela força da erudição. Este programa é um hino ao machismo que provocará negativas influências no carácter dos mais jovens.
Retomando o fio à meada, parece-me que a vida forense tem vindo a arrastar-se placidamente, ciosa dos seus pergaminhos de privilégio e de superioridade social, num emaranhado jogo de interesses carreiristas, que não são por vezes imunes a certas influências político-partidárias. Quem vem de fora e assiste a tudo isto fica com a ideia que neste país se trabalha pouco e, por isso, tudo funciona mal, porque é quase dessa forma que funciona também a Justiça. E um país onde a Justiça é tardia, muito dispendiosa e, ainda por cima, bastante falível, perde toda a sua credibilidade.
A figura imaculada do magistrado de outrora – discreto, incógnito e reservado – que na minha juventude idealizava como a mais próxima da perfeição divina, tornou-se hoje numa vulgaríssima figura pública. Diria mesmo que os magistrados do nosso mediatismo quotidiano se expõem a um displicente e excessivo protagonismo, quase sempre desgastante e negativista para a imagem pública que lhes assiste, e que devem preservar, como fautores dum certo paradigma de justiça, embasado na ponderação da verdade, na apreciação criminal e na administração penal.
Recordo, com certa melancolia, a imagem, que ainda preservo da minha infância, da casa-do-juiz, uma moradia envolta na penumbra de frondosas árvores, em cuja misteriosa quietude nunca vislumbrei qualquer indício de vida. Ficava próxima da minha escola primária. Por ali passei milhares de vezes com os meus companheiros, na traquina garrulice da nossa meninice, que logo serenávamos, guardando respeitoso silêncio na presença das graníticas silharias daquela misteriosa mansão. Na inocência da minha infância, aquela casa era para mim como um templo, onde vivia um ermitão envolto no obscuro mistério da sua invisibilidade. A casa-do-Juiz distava do Tribunal escassas dezenas de metros, e no percurso dessa curta distância, em que também se desenrolou grande parte da minha vida, confesso que nunca vi ou conheci pessoalmente o homem-Juiz, que diziam ter fama de sábio, justo e generoso. E à distância do tempo que hoje me separam destas nostálgicas recordações, sou o primeiro a reconhecer que não obstante as qualidades que na fímbria da sua imaculada toga lhe ornavam o estro, ele era acima de tudo um homem profundamente humilde, talvez conformado com a solitária existência dum anacoreta, verdadeiro guardião do sagrado templo da Justiça.
Como vão longe esses tempos... que saudades nos deixam esses homens de sisuda honradez, que se envolviam no diáfano manto da obscuridade para não trivializarem, apoucarem ou conspurcarem a suprema, e quase sagrada, magistratura da justiça. O poder da Toga era, nesses tempos de outrora, símbolo de humildade, de recolhimento e de austero apagamento social. Que saudades...

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