sábado, 12 de outubro de 2024

Compromisso Marítimo de Tavira em 1829, desordem e corrupção

A "Meza", isto é, a direção executiva do Compromisso Marítimo de Tavira, eleita a 1-5-1829, quando tomou posse daquela instituição apercebeu-se da caótica situação financeira em que se encontrava a administração dos bens próprios, a falta de meios de pagamento para suster os custos fixos, a ineficácia da tesouraria, enfim, a anarquia e a irresponsabilidade com que os mesários anteriores governaram os destinos do Corpo Santo dos pescadores tavirenses. 
Antigo brasão de Tavira
Numa das primeiras reuniões, e após verificarem os Tombos do Compromisso, isto é, os livros de registo dos bens próprios, 
constataram existir uma enorme confusão contabilística tanto nos rendimentos como nas dívidas. As cifras de entrada e saída estavam lançadas a esmo e sem critério. Por isso, precisavam de saber ou de aquilatar a viabilidade financeira da instituição.  
Assim, sentindo-se impotentes para verificar o estado das contas e a boa gestão da Real Casa do Corpo Santo, vulgo Compromisso Marítimo, decidiram enviar ao Rei um ofício, do género abaixo-assinado, no qual rogavam que lhes concedesse o privilégio de poderem eleger um Juiz Conservador destinado a operar a boa administração e observância dos seus Estatutos, visto que os Tombos de bens e rendas se encontravam em absoluta desordem.
Para se fazer uma ideia da situação vigente, aqui fica um extrato da decisão lavrada pelos juízes do Desembargo do Paço:
Tavira, por José Justiniano Henriques, oferecido ao
 bispo de Beja D. Manuel do Cenáculo, de 1770-1802

«Dizem o Juiz e mais officiaes da Real Caza do Compromisso Maritimo da Cidade de Tavira que havendo tomado posse do Governo e administração da dita Real Caza em o dia 1º de Maio deste prezente anno, no acto da referida posse examinando o inventario dos moveis e alfaias e assim mais o livro da receita e despesa da mesma Caza acharão tudo em huma tão grande confusão e desordem tal que athe ao prezente ainda se não tem podido vir no conhecimento a vista de taes livros e das contas nelles lançadas de quaes sejão os bens que a Caza possue, qual o seu rendimento anual assim como o numero e importancia das dividas tanto activas como passivas, não podendo provir hum tal desarranjo e obscuridade de contas (...) senão da falta de presidencia de hum Ministro de Vossa Magestade a todos os actos de contas (...) pedem a graça de lhes conceder Provisão para poderem elleger qualquer Ministro dos de Vossa Magestade residentes nesta Cidade de Tavira para o fim de assistir na qualidade de Juiz Conservador interino da Real Caza do Compromisso a todos os autos e deliberações dos Mezarios, etc.».
Panorâmica da cidade de Tavira em 1779
Deduz-se claramente, que os membros eleitos para a nova Mesa executiva do Compromisso Marítimo de Tavira se aperceberam da falta de alfaias, isto é, de bens móveis anteriormente existentes na sede da Real Caza, assim como deram falta dos livros da receita e despesa, o que os levou a supor existirem fortes indícios de corrupção, ou pelo menos de locupletação por parte dos anteriores mesários, que teriam sonegado meios de informação sobre registo de propriedades, rendas e bens pecuniários, que pertenciam, por doação, ao Compromisso Marítimo de Tavira.
Todo o processo de averiguações e de auditoria realizados no âmbito desta queixa, podem ser consultados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Desembargo do Paço, Algarve e Alemtejo, Maço 533, n.º 17.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Conflito entre a Câmara de Lagos e o Compromisso Marítimo por causa da venda de carne

Não sei se os mus leitores sabem que os antigos Compromissos Marítimos, como montepios e associações privadas de pescadores, tinham entre outros privilégios o direito de abater gado em açougue e talho próprio, para procederem à venda a retalho da carne aos "irmãos" do Corpo Santo, designação como era conhecida aquela instituição.
Lagos gravura antiga do sec. XVIII
Acontece que esse privilégio concorria com os interesses dos magarefes e retalhistas daquela cidade, que pagavam os seus impostos ao município. O facto dos marítimos poderem comprar animais aos lavradores, geralmente sem pagarem o imposto correspondente, por alegarem ser em troca de peixe, já causava contestação pública, pior ainda era o facto de os poderem abater, retalhar e vender, abaixo do preço de mercado, entre os seus beneficiados. Os amigos e familiares dos pescadores compravam todos a carne no talho do Compromisso, por ser mais barata. Isto causava uma concorrência desleal, a que as autoridades geralmente fechavam os olhos, para não causarem mal estar com a classe marítima, cujos privilégios advinham desde os tempos fundacionais da nacionalidade.
Acontece, porém, que em 1827, sob a regência de D. Isabel Maria, numa situação transitória para a entronização de D. Miguel, e num clima de instabilidade política, o Juiz e oficiais da Real Casa do Compromisso Marítimo da Cidade de Lagos, não estavam em boa sintonia com a autarquia, em cuja vereação mantinham um Procurador com as mesmas regalias e distinções que os edis eleitos. Recrudesceu nessa altura a velha e relha polémica da venda de carne no talho do Compromisso a preços desfavoráveis aos interesses dos talhantes comerciais, que pagavam os impostos regulamentados. 
Costa de Lagos e bateria do Pinhão. George Landmann, 1821

Por essa razão, e também por antigas dissenções políticas, o Juiz do Compromisso enviou por escrito ao Desembargo do Paço uma súplica, ou seja, uma queixa oficial contra a Câmara de Lagos, por esta se recusar a cumprir a Provisão que ordenava aos Almotacés municipais (fiscais do mercado local), que deixassem prover os suplicantes arbitrariamente da carne do seu açougue e outras providencias. Queixa-se ainda o Juiz do Compromisso de ser aquela Real Casa vexada nas suas prerrogativas especiais, pelo facto do seu Marchante ter sido multado pecuniariamente pelos almotacés municipais.
A Provisão Régia que reconhecia o privilégio do Compromisso Marítimo de Lagos possuir um açougue e talho próprio estava datada de 17-07-1826, apensando-se uma cópia da mesma ao processo enviado ao Desembargo do Paço, que era uma espécie de última instância para os recursos ou súplicas de justiça.
Acresce dizer que o privilégio concernente à venda de carne em talho exclusivo, era comum a outros Compromissos, nomeadamente aos de Tavira e Faro.
Importa, por fim, esclarecer que esta queixa do Compromisso Marítimo de Lagos, foi alvo de apreciação fundamentada pelos juízes do Desembargo, pelo que teve provisão favorável, confirmada em 7 de janeiro de 1828. A Câmara de Lagos teve de baixar a cabeça e ceder aos interesses dos pescadores locais, o que em tempos tão arbitrários como os da usurpação miguelista era muito raro de acontecer.
Este processo encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), núcleo do Desembargo do Paço, na secção Alentejo e Algarve, Maço 825, n.º 112.

sábado, 5 de outubro de 2024

Compromisso Marítimo de Olhão pede ao Rei, em 1828, a abolição dos direitos sobre os chamados "peixes reais"

Os pescadores da vila de Olhão da Restauração, representados pelo Juiz e demais oficiais do Compromisso Marítimo, pediram ao Rei, isto é, à Regente Isabel Maria, em 12-2-1828 [dez dias antes da chegada de D, Miguel a Lisboa, e do subsequente período da usurpação do trono], que abolisse a designação de Peixes Reais, constante no Foral outorgado por D. João VI, em 1808, para as Baleias, Baleotes e Roazes, assim como outros peixes de maior porte e elevado peso. Esclareça-se que os Baleotes ou Baleatos, são igualmente cetáceos ou baleias de menor porte, que por vezes se confundem com cachalotes. Os Roazes são igualmente  cetáceos, mas da família dos Delfinídeos, mais conhecidos por Golfinhos, que na nossa costa durante a primavera perseguem os atuns e corvinas, espécies muito valiosas capturadas nas artes de cerco, que se lançavam em todo litoral algarvio sob a designação de armações, ou de almadravas, orientadas "de direito", na direção do Mediterrâneo, ou "de revés", no regresso ao Atlântico, conforme as migrações dos tunídeos. Já agora, aproveito para esclarecer que nas armações do atum se capturavam também muitas Toninhas, que são golfinhos mais pequenos com razoável valor de mercado, por causa da sua gordura para fins alimentares e industriais.
Igreja e sede do Compromisso Marítimo de Olhão
O tempo era o mais azado para estas pretensões reivindicativas das autoridades provinciais e dos direitos dos povos, já que nesses dias pairava na Corte, e no país em geral, um clima de grande incerteza e aflitiva insegurança, pois todos previam profundas e sensíveis alterações no paradigma político. Havia pois que aproveitar essa aparente "desordem" governativa para pedir reformas e mudanças significativas, sobretudo no aparelho fiscal e na cobrança tributária dos direitos que impendiam sobre o trabalho e as transações, quer comerciais quer industriais.
O caso correu pela mão do Superintendente das Alfandegas do Algarve, que despachou de modo favorável aos interesses dos pretendentes. 
Mas, o Tribunal da Fazenda e o respetivo Conselho concluíram que não podiam abolir as determinações do Foral, por ser uma decisão da responsabilidade exclusiva da Câmara dos Deputados. Pelo que para satisfazer a vontade dos pescadores olhanenses, aquela Câmara teria de aprovar uma Lei que regulasse de forma específica e discriminada todos os peixes que pudessem ser capturados nas águas da jurisdição marítima de Faro e de Olhão.
Olhão levantamento topográfico de J. Pery 
Por outro lado, o Procurador da Fazenda escreveu ao Conselheiro Filipe de Sousa Holstein para que naquela Câmara fizessem aprovar uma lei que fosse de encontro aos interesses dos pescadores do Compromisso Marítimo de Olhão, usando para esse efeito da iniciativa que lhe confere a Carta Constitucional no artigo n.º 46, com o objetivo de revogarem parte do Foral da Portagem de Faro, o capítulo 94 do Regime dos Contadores, e «quaesquer outras Leys, Foraes ou costumes, em virtude dos quaes a propriedade dos chamados peixes reais era privativa da Coroa, e se declare que todos e quaesquer peixes, sem excepção alguma, são propriedade de quem os pesca, ou sendo encontrados mortos, de quem primeiro se apodere d'elles».
O processo arrastou-se durante anos, correu Ceca e Meca, de ministério para ministério, sem obter decisão definitiva que satisfizesse o interesses dos pescadores olhanenses. A única entidade que se comportou de forma séria e célere foi o Conselho da Fazenda, despachando que dentre os "Peixes Reaes" deveriam pertencer aos pescadores do Compromisso de Olhão apenas os Roazes capturados, que era na verdade a única espécie que  lhes interessava, já que as baleias e baleotes haviam desaparecido das costas algarvias. Mas, quando tudo parecia resolvido, um decreto datado de 25-2-1831, certamente redigido pelo Ministério do Reino, mandou retornar tudo à posse do ministério da Marinha e Ultramar, visto ser a entidade responsável pelas pescarias.
Quando o processo chegou às mãos do probo Ministro da Fazenda (designado Secretário de Estado), o 3.º Conde da Lousã, D. Diogo José Ferreira de Eça Meneses (1772-1862), que também desempenhava as honrosas funções de Presidente do Tesouro Público (cargos que ocupou até 1-8-1833), teve a dignidade de enviar, a 29-3-1831, ao 6.º Duque de Cadaval, D. Nuno Caetano Álvares Pereira de Melo, Ministro Assistente ao Despacho, isto é, chefe do governo de D. Miguel, o seguinte ofício, que vai desencalhar todo o processo:
«Illm.º e Exmº Sr. - Quando estava próximo apresentar a El Rey Nosso Senhor, para obterem a sua regia confirmação, os ultimos trabalhos sobre a propriedade dos Peixes chamados =Reaes= que os pescadores da Villa de Olhão da Restauração pertendem lhes seja concedida, acerca do que havia consultado o Conselho da Fazenda, em 12 de Fevereiro de 1828, reformando esta consulta em 27 de Agosto de 1929; a favor dos quaes já o mesmo Augusto Senhor Havia defferido permittindo que lhes pertencessem os Roazes que pescassem pagando por elles os competentes direitos; tive prezente o Real Decreto de 25 de Fevereiro proximo passado que declara serem da competencia da Secretaria d'Estado dos Negocios da Marinha e Ultramar todas as dependencias relativas a Pescarias: nestes termos tenho a honra de passar às mãos de V.Excª na sobredita conformidade, as duas consultas pertencentes ao assumpto referido e hum Requerimento dos Supplicantes; assim como outros papeis que o Conselho da Fazenda juntou às ditas consultas sobre igual questão dos Pescadores da Povos de Varzim, a fim de que V. Excª se sirva de os apresentar de novo a S. Magestade para resolver como for do seu Real Agrado a similhante respeito.
Deus guarde a V. Ex Sec.Estado dos Negocios da Fazenda, 29 de Março de 1831 - Exmº Sr, Duque do Cadaval - Conde da Louzaa, D. Diogo». [ANTT, Ministério do Reino, Maço 421, cx. 527, nº(1831).
Até que, o governo miguelista aprovou a lei de 5-9-1831 que satisfazia os interesses de ambas as partes, isto é, atribuía um terço da venda das baleias e baleatos aos pescadores que as capturassem, deixando a venda dos Roazes e outras espécies designados por "Peixes Reais" reduzidas aos direitos legais (que eram mínimos ou nulos), exceptuando-se os casos em que sejam capturados nas praias situadas a cinco léguas da residência régia, o que seria também muito improvável de acontecer. 
Extratamos da «Gazeta de Lisboa», nº 238, de 8-10-1831, p. 987, a publicação da referida lei:
«Tendo sido presente a ElRei Nosso Senhor em Consulta do Tribunal do Conselho da Sua Real Fazenda de 12 de Fevereiro de 1828, reformada em 27 de Agosto de 1829, o Requerimento dos Pescadores da Villa d'Olhão, supplicando que lhes fosse considerada como propriedade sua todo o Peixe, que elles pescassem, sem excepção dos chamados Reaes, não obstante a disposição do Foral em contrario, pagando eles do mesmo Peixe sómente os devidos Direitos: Houve o Mesmo Augusto Senhor por bem tomar na dita Consulta a Real Resolução do theor seguinte:
Sou Servido Resolver, e Declarar: Que as Baléas, e-Baleatos, que os Pescadores apanharem no Mar, ou trouxerem mortos ás Praias de Meus Reinos, se arrematem para Nós, deduzindo-se do seu valor a terça parte para os Pescadores, que as epresentarem nas Praias. Os Peixes porém denominados Reaes, como Roazes, e outros, que são denominados com este titulo pelos Pescadores, serão conduzidos á Minha Ucharia, se Eu residir dentro de cinco legoas contadas da costa para a terra, ou lateralmente, em que aportar a Embarcação, que os conduzir; mas não residindo Eu dentro das cinco leguas, pagar-se-hão tão somente os Direitos, que se deverem pagar, sem mais Inposição; ficando assim livre o Peixe, 'a quem o pescou. – Palacio de Queluz, 5 de Setembro de 1831. – Com a Rubrica d’ELREI NOSSO SENHOR.»
Pela leitura do diploma oficial fiquei com mais dúvidas do que certezas, porque não resulta claro nem a percentagem nem o valor a pagar pelo resultado absoluto do pescado. Penso que a pesca da baleia estava há muito em decadência, senão mesmo desativada no Algarve, e as capturas tanto de baleotes como de roazes eram muito esporádicas, ocorrendo alguns casos na época do lançamento das armações do atum, ou seja, na primavera, quando os cetáceos se aproximavam da costa em busca dos tunídeos, e por isso ameaçavam causar estragos nas labirínticas redes das velhas almadravas.
O porto e alfândega de Olhão, com vários caíques
Só após a implantação do Liberalismo é que se revogaram todas as alcavalas e tributos que impendiam sobre as pescas, não só no Algarve como em todo o país, cessando os privilégios sociais como os direitos fiscais da Coroa, abolindo-se definitivamente os direitos fiscais sobre os chamados "peixes reais", que mais não eram do que os antigos tributos da baleação.
A petição dos pescadores do Compromisso Marítimo de Olhão, assim como todo o processo judicial que se foi construindo até à decisão final do governo, encontra-se à leitura pública no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, núcleo do Ministério do Reino, secção das Consultas da Fazenda, Maço 306, caixa 410.

sábado, 25 de maio de 2024

A ermida de S. Sebastião, em Tavira, uma joia do património artístico do Algarve

A pequena ermida de S. Sebastião em Tavira

Estive há pouco na cidade de Tavira, a deslumbrante Veneza do Algarve, num dia irisado pelo brilho das águas do Gilão, debaixo de um sol radioso que entorpece os corpos e acalma os nervos. No parapeito da ponte romana, lembrei-me dos emblemáticos versos de João Lúcio: «Oh meu ardente Algarve impressionista e mole, meu lindo preguiçoso adormecido ao sol». Os turistas enxameavam pela cidade numa azáfama de “selfies”, de souvenires e sorvetes, os modernos três Ss do atual turismo consumista, descaracterizado e ignorante, que nada tem que ver com os Ss de antigamente: Sun, Sea, Sand – sol, mar e areia. Os mais galãs trocavam o último S num outro sentido, que não vem agora a propósito.

Parede lateral da sacristia, decorada por Diogo Magina
Porém, o que de mais importante sobreveio da minha ida a Tavira, foi a feliz oportunidade de estacionar a viatura junto à Ermida de São Sebastião, que se encontrava aberta, num feliz e fresco refúgio da soalheira canícula. Como anfitrião encontrei uma figura típica da cidade, um santo homem que fez questão de me dizer que aquele era o mais belo templo sebastiânico do país. E, com efeito, também me pareceu, devido ao seu invulgar figurino decorativo, forrado integralmente em madeira pintada, ao estilo “tromp l’oeil” [engano de vista], naquilo a que se convencionou chamar pintura ilusionista, por dar a sensação de um revestimento marmoreado num requinte de pedra lavrada em aparatoso baixo-relevo, que não passa de um equívoco do olhar. Por outro lado, as paredes atapetadas de madeira num harmonioso primor artístico, além de reduzirem a frialdade da alvenaria também aumentam o conforto, no corpo e na alma, sendo esse o objetivo primacial do estilo barroco, isto é, dar à Igreja o bem-estar e a beleza da própria doutrina cristã.
O casamento de Maria e José
A ermida de S. Sebastião, em Tavira, julgo que remonta aos tempos medievais, embora das suas vetustas silharias já pouco reste, além dos caboucos alicerçais. A sua invocação ao mártir São Sebastião deve ter relação com os antigos surtos epidémicos, sezões palustres e contágios pestíferos, de que aquele santo era divino protetor. Nada mais natural numa cidade a cujo porto atracavam embarcações mercantis de todo o mundo, trazendo consigo os benefícios da prosperidade económica, acoplados aos malefícios virulentos da peste. É curioso que em Faro o nosso advogado da pestilência é o São Tomás de Aquino, que no séc. XVII, por causa da Grande Peste recebeu a invocação da própria cidade. Daí que, convém esclarecer, o S. Tomás seja o santo protetor de Faro e o S. Vicente o do Algarve. O São Gonçalo, que é o único algarvio, é o padroeiro de Torres Vedras, naquela asserção, tão popular quanto verdadeira, de que os santos da casa não fazem milagres.
O martírio de S, Sebastião
O estado atual da ermida de S. Sebastião é originário do séc. XVIII, datando de 1745 a sua reconstrução, pela mão dos mestres e artistas locais, que a reergueram em nave única, muito simples e humilde, com capela-mor para o santo e a sacristia para o padre, na qual resta ainda um belo arcaz de bom carvalho português e um metro de rodapé em azulejo azul e branco. A cúpula, sobre a capela-mor, e o frontão, sobre a porta de entrada, denunciam a época do Barroco.
Como se tratava de uma ermida, era sustentada por uma Confraria sob a invocação do santo mártir, cujos rendimentos se estribavam na feira anual de São Francisco, instituída por Filipe I em 1622, que durava três meses, a qual o povo sempre designou por Feira de Outubro. Era, por isso, o mercado mais importante daquela cidade por suceder à quadra do S. Miguel, pelo qual se pagavam todos os tributos.
Apresentação de Jesus aos doutores
O recheio da ermida é deveras surpreendente, até pela função narrativa dos painéis, três de cada lado, em avantajadas dimensões. A observação pictográfica dos painéis deve fazer-se como um exercício de leitura, ou seja, da esquerda para a direita. Os seis painéis talvez sejam da autoria de Simão da Fonseca Franco, por rondarem o ano de 1775. Mas, as madeiras que recobrem as paredes, assim como as almofadas em tela sobre a vida do santo, já são da autoria do célebre Diogo Magina, um dos maiores pintores de arte sacra do seu tempo, cujo ars facit data de 1759.
Anjo tocheiro de Diogo Magina
Assim, o painel de abertura, situado à esquerda de quem entra, representa a «Adoração dos Pastores», em óleo sobre tela, a que se segue, à direita, a «Apresentação de Jesus no Templo»; seguem-se na mesma sequência a «Visitação», o «Jesus entre os Doutores», a «Anunciação» e, o último à direita, «Casamento da Virgem», que me parece o mais original e inocente de todos, com o José a anelar o dedo de Maria, num ritual apócrifo, eivado pela diacronia da criação artística. Não conheço em parte alguma do país qualquer outra representação alusiva ao casamento de José com Maria.
Merecem especial destaque os dois tocheiros colocados no arco triunfal do altar-mor, que são, a par do santo, as únicas peças escultóricas ali existentes, marcadas pela sua belíssima expressão cenográfica, igualmente da autoria de Diogo Magina, que foi quem também pintou as dez telas, emolduradas em forma de janelão e óvulo barroco, ilustrativas da vida do santo.
Em suma, uma visita surpreendente e deveras proveitosa, que constitui caso único no nosso país, pela riqueza e valor do seu espólio artístico. Aconselho a todos os meus amigos, não só os residentes no Algarve, como os que porventura aqui venham passar as suas férias de verão, a fazerem uma visita à Ermida de São Sebastião, em Tavira, que se encontra aberta ao público toda a semana, no horário do costume, com entrada gratuita.