Não sei se os mus leitores sabem que os antigos Compromissos Marítimos, como montepios e associações privadas de pescadores, tinham entre outros privilégios o direito de abater gado em açougue e talho próprio, para procederem à venda a retalho da carne aos "irmãos" do Corpo Santo, designação como era conhecida aquela instituição.
Lagos gravura antiga do sec. XVIII |
Acontece que esse privilégio concorria com os interesses dos magarefes e retalhistas daquela cidade, que pagavam os seus impostos ao município. O facto dos marítimos poderem comprar animais aos lavradores, geralmente sem pagarem o imposto correspondente, por alegarem ser em troca de peixe, já causava contestação pública, pior ainda era o facto de os poderem abater, retalhar e vender, abaixo do preço de mercado, entre os seus beneficiados. Os amigos e familiares dos pescadores compravam todos a carne no talho do Compromisso, por ser mais barata. Isto causava uma concorrência desleal, a que as autoridades geralmente fechavam os olhos, para não causarem mal estar com a classe marítima, cujos privilégios advinham desde os tempos fundacionais da nacionalidade.
Acontece, porém, que em 1827, sob a regência de D. Isabel Maria, numa situação transitória para a entronização de D. Miguel, e num clima de instabilidade política, o Juiz e oficiais da Real Casa do Compromisso Marítimo da Cidade de Lagos, não estavam em boa sintonia com a autarquia, em cuja vereação mantinham um Procurador com as mesmas regalias e distinções que os edis eleitos. Recrudesceu nessa altura a velha e relha polémica da venda de carne no talho do Compromisso a preços desfavoráveis aos interesses dos talhantes comerciais, que pagavam os impostos regulamentados.
Costa de Lagos e bateria do Pinhão. George Landmann, 1821 |
Por essa razão, e também por antigas dissenções políticas, o Juiz do Compromisso enviou por escrito ao Desembargo do Paço uma súplica, ou seja, uma queixa oficial contra a Câmara de Lagos, por esta se recusar a cumprir a Provisão que ordenava aos Almotacés municipais (fiscais do mercado local), que deixassem prover os suplicantes arbitrariamente da carne do seu açougue e outras providencias. Queixa-se ainda o Juiz do Compromisso de ser aquela Real Casa vexada nas suas prerrogativas especiais, pelo facto do seu Marchante ter sido multado pecuniariamente pelos almotacés municipais.
A Provisão Régia que reconhecia o privilégio do Compromisso Marítimo de Lagos possuir um açougue e talho próprio estava datada de 17-07-1826, apensando-se uma cópia da mesma ao processo enviado ao Desembargo do Paço, que era uma espécie de última instância para os recursos ou súplicas de justiça.
Acresce dizer que o privilégio concernente à venda de carne em talho exclusivo, era comum a outros Compromissos, nomeadamente aos de Tavira e Faro.
Importa, por fim, esclarecer que esta queixa do Compromisso Marítimo de Lagos, foi alvo de apreciação fundamentada pelos juízes do Desembargo, pelo que teve provisão favorável, confirmada em 7 de janeiro de 1828. A Câmara de Lagos teve de baixar a cabeça e ceder aos interesses dos pescadores locais, o que em tempos tão arbitrários como os da usurpação miguelista era muito raro de acontecer.
Este processo encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), núcleo do Desembargo do Paço, na secção Alentejo e Algarve, Maço 825, n.º 112.
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