sábado, 25 de maio de 2024

A ermida de S. Sebastião, em Tavira, uma joia do património artístico do Algarve

A pequena ermida de S. Sebastião em Tavira

Estive há pouco na cidade de Tavira, a deslumbrante Veneza do Algarve, num dia irisado pelo brilho das águas do Gilão, debaixo de um sol radioso que entorpece os corpos e acalma os nervos. No parapeito da ponte romana, lembrei-me dos emblemáticos versos de João Lúcio: «Oh meu ardente Algarve impressionista e mole, meu lindo preguiçoso adormecido ao sol». Os turistas enxameavam pela cidade numa azáfama de “selfies”, de souvenires e sorvetes, os modernos três Ss do atual turismo consumista, descaracterizado e ignorante, que nada tem que ver com os Ss de antigamente: Sun, Sea, Sand – sol, mar e areia. Os mais galãs trocavam o último S num outro sentido, que não vem agora a propósito.

Parede lateral da sacristia, decorada por Diogo Magina
Porém, o que de mais importante sobreveio da minha ida a Tavira, foi a feliz oportunidade de estacionar a viatura junto à Ermida de São Sebastião, que se encontrava aberta, num feliz e fresco refúgio da soalheira canícula. Como anfitrião encontrei uma figura típica da cidade, um santo homem que fez questão de me dizer que aquele era o mais belo templo sebastiânico do país. E, com efeito, também me pareceu, devido ao seu invulgar figurino decorativo, forrado integralmente em madeira pintada, ao estilo “tromp l’oeil” [engano de vista], naquilo a que se convencionou chamar pintura ilusionista, por dar a sensação de um revestimento marmoreado num requinte de pedra lavrada em aparatoso baixo-relevo, que não passa de um equívoco do olhar. Por outro lado, as paredes atapetadas de madeira num harmonioso primor artístico, além de reduzirem a frialdade da alvenaria também aumentam o conforto, no corpo e na alma, sendo esse o objetivo primacial do estilo barroco, isto é, dar à Igreja o bem-estar e a beleza da própria doutrina cristã.
O casamento de Maria e José
A ermida de S. Sebastião, em Tavira, julgo que remonta aos tempos medievais, embora das suas vetustas silharias já pouco reste, além dos caboucos alicerçais. A sua invocação ao mártir São Sebastião deve ter relação com os antigos surtos epidémicos, sezões palustres e contágios pestíferos, de que aquele santo era divino protetor. Nada mais natural numa cidade a cujo porto atracavam embarcações mercantis de todo o mundo, trazendo consigo os benefícios da prosperidade económica, acoplados aos malefícios virulentos da peste. É curioso que em Faro o nosso advogado da pestilência é o São Tomás de Aquino, que no séc. XVII, por causa da Grande Peste recebeu a invocação da própria cidade. Daí que, convém esclarecer, o S. Tomás seja o santo protetor de Faro e o S. Vicente o do Algarve. O São Gonçalo, que é o único algarvio, é o padroeiro de Torres Vedras, naquela asserção, tão popular quanto verdadeira, de que os santos da casa não fazem milagres.
O martírio de S, Sebastião
O estado atual da ermida de S. Sebastião é originário do séc. XVIII, datando de 1745 a sua reconstrução, pela mão dos mestres e artistas locais, que a reergueram em nave única, muito simples e humilde, com capela-mor para o santo e a sacristia para o padre, na qual resta ainda um belo arcaz de bom carvalho português e um metro de rodapé em azulejo azul e branco. A cúpula, sobre a capela-mor, e o frontão, sobre a porta de entrada, denunciam a época do Barroco.
Como se tratava de uma ermida, era sustentada por uma Confraria sob a invocação do santo mártir, cujos rendimentos se estribavam na feira anual de São Francisco, instituída por Filipe I em 1622, que durava três meses, a qual o povo sempre designou por Feira de Outubro. Era, por isso, o mercado mais importante daquela cidade por suceder à quadra do S. Miguel, pelo qual se pagavam todos os tributos.
Apresentação de Jesus aos doutores
O recheio da ermida é deveras surpreendente, até pela função narrativa dos painéis, três de cada lado, em avantajadas dimensões. A observação pictográfica dos painéis deve fazer-se como um exercício de leitura, ou seja, da esquerda para a direita. Os seis painéis talvez sejam da autoria de Simão da Fonseca Franco, por rondarem o ano de 1775. Mas, as madeiras que recobrem as paredes, assim como as almofadas em tela sobre a vida do santo, já são da autoria do célebre Diogo Magina, um dos maiores pintores de arte sacra do seu tempo, cujo ars facit data de 1759.
Anjo tocheiro de Diogo Magina
Assim, o painel de abertura, situado à esquerda de quem entra, representa a «Adoração dos Pastores», em óleo sobre tela, a que se segue, à direita, a «Apresentação de Jesus no Templo»; seguem-se na mesma sequência a «Visitação», o «Jesus entre os Doutores», a «Anunciação» e, o último à direita, «Casamento da Virgem», que me parece o mais original e inocente de todos, com o José a anelar o dedo de Maria, num ritual apócrifo, eivado pela diacronia da criação artística. Não conheço em parte alguma do país qualquer outra representação alusiva ao casamento de José com Maria.
Merecem especial destaque os dois tocheiros colocados no arco triunfal do altar-mor, que são, a par do santo, as únicas peças escultóricas ali existentes, marcadas pela sua belíssima expressão cenográfica, igualmente da autoria de Diogo Magina, que foi quem também pintou as dez telas, emolduradas em forma de janelão e óvulo barroco, ilustrativas da vida do santo.
Em suma, uma visita surpreendente e deveras proveitosa, que constitui caso único no nosso país, pela riqueza e valor do seu espólio artístico. Aconselho a todos os meus amigos, não só os residentes no Algarve, como os que porventura aqui venham passar as suas férias de verão, a fazerem uma visita à Ermida de São Sebastião, em Tavira, que se encontra aberta ao público toda a semana, no horário do costume, com entrada gratuita.