segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Caracterização dos serrenhos algarvios e retrato psicológico do Remexido


Retrato de D. Miguel como Rei de
Portugal e dos Algarves
No período de acendimento das guerrilhas miguelistas, que decorreu com particular acuidade entre 1836 e 1838, precisamente no período da governação Setembrista, o povo algarvio costumava dizer que esses haviam sido os “anos do barulho”, durante os quais “se abateram palácios e se ergueram monturos”. Queriam com isto dizer, que nesses anos de acesa contestação armada, pelas tropas rebeldes que sustentavam a causa absolutista, arruinaram-se muitas das mais tradicionais famílias nobres, cujos bens patrimoniais foram saqueados de forma atrabiliária, em nome da revolução e das vinganças populares.
Por todo o país se assistiu às mais execráveis violências, sem respeito pelas leis dos homens nem pelos divinos mandamentos da Igreja. O povo desembolado assaltou muitas casas apalaçadas, solares antigos e nobres quintas, saqueando, incendiando e derrubando tudo, para saciar ódios insanáveis, acumulados ao longo de séculos. A velha ordem social morria às mãos da plebe. O antigo regime senhorial, transformara-se em relações de antagónicos interesses, em conflitos sem perdão, em irreconciliáveis relações sociais. A sacralidade do trono, a estanquidade social repartida em ordens, a justiça estatutária e o privilégio foram os coveiros do antigo regime absolutista.
Ainda assim, e mesmo contra a corrente do pensamento e dos ventos políticos da nova Europa, organizou-se a resistência e a contrarrevolução sob a invocação dos “inauferíveis direitos” de D. Miguel ao trono de Portugal. Organizou-se no norte transmontano uma onda de oposição armada, contra o governo e as novas instituições liberais, que teve encarniçado apoio a Sul, com particular relevo para as guerrilhas encabeçadas no Algarve pelo tristemente celebrado Remexido.
O mais conhecido retrato do Remexido
Não vou agora falar nessa problemática histórica, aliás largamente abordada por mim em obras e estudos já tornados públicos. Vou apenas transcrever aqui um pequeno trecho publicado na imprensa da época, em 1837, no qual se faz uma breve, mas muito esclarecida, caracterização dos “serrenhos algarvios”, que se juntaram ao Remexido para sustentarem a causa absolutista no Algarve. Não sendo um retrato muito favorável, é, no entanto muito realista, sobretudo no que toca à capacidade de sacrifício e de sofrimento das gentes da serra algarvia, que por tradição e ignorância associavam à causa miguelista a defesa da Igreja e das sagradas instituições religiosas. Atente-se no curioso facto das mulheres dos guerrilheiros se vestirem de luto, para esconderem a ausência dos mesmos, que, no caso de serem interrogadas pelas autoridades, davam como falecidos durante a calamitosa epidemia do cólera-mórbus, ocorrida no verão de 1833.
Ouçamos, então, a descrição do serrenho algarvio, nos precisos e inalteráveis termos usados na época:
«Os Serranos são na realidade bastante rústicos, e muito sofredores, de modo que nem a fome, nem a intempérie do tempo lhes causa grande receio. Elles professam um indizível afèrro (pela maior parte) a essas devoções, e actos religiosos a que hoje muitos appellidam de fanatismo, e a idéa de que o systema Liberal concorre (segundo lhes fazem crer) para o extermínio do Culto, é só a verdadeira causa de andarem com o Remechido.
A serra fornece-lhes o parco sustento de que usam, e as mulheres que habitam nas poucas Aldêas que são mais transitadas, por uso andam de luto, quando os maridos andam com o Remechido, e dizem a quem as pergunta, que eles morreram da cholera.
A serra póde-se dizer inexpugnável, e a não serem os naturaes ninguém alli se entende.[1]
Nesta mesma fonte, também se insere uma curiosa descrição do carácter e personalidade do próprio Remexido, que, não sendo um retrato muito original daquele célebre guerrilheiro, tem, porém, o interesse de o pintar como um homem comum, nos seus defeitos e virtudes, e não com as cores da fera, que talava a ferro e fogo a serra algarvia derramando o sangue inocente dos seus adversários, sem dó nem piedade.
Já que aqui transcrevemos os termos com que no periódico «O Telégrafo» [2] se descreveu os facinorosos serrenhos algarvios que acompanhavam o Remechido, na defesa do Trono e do Altar, porque não transcrever também os termos com que nesse periódico se traçou o perfil do seu destemido comandante e herói popular da causa miguelista? Pois bem. Aqui fica o seu retrato, esboçado sem rancor nem perfídia, revelando ao público um homem que por ter sido perseguido e acusado das maiores ignomínias, se viu privado da amnistia a que tinha direito, pegando em armas para se defender da sanha dos seus algozes:
«O Remechido é um homem de cincoenta annos, pouco mais ou menos, de mediana estatura, porém muito sagaz, e ainda mais destemido. Possue uma soffrivel casa, que hoje está estragada, mas que n'outro tempo bem satisfazia ás suas precizões. É casado, e tem duas filhas, e um filho; o qual com as lições do Pai parece que desde já o imita.
Este guerrilheiro não desconhece de todo a arte dos beligerantes, e não obstante ter apenas exercido um pequeno posto em corpos arregimentados, com que tudo combina planos, e propõe acções com muita sagacidade. Dizem-nos que na acção que o Cabreira deo em S. Bartholomeu de Missines [sic], a elle só foi devido o resultado della.
Remechido é um homem que nada inculca exteriormente, porque a sua fisionomia e talhe são bastante tristes, mas dizem os que o tem tratado, que é docil para com os amigos. Quando entra em fogo costuma vestir um capote de soldado, e pôr um bonet mui simples, e é com este traje, e sem mais divisa que corre ao logar do perigo. O seu valor é confessado pelos que o combatêram, e a viveza que nestas occasiões se lhe acha atestam o seu sangue frio.
Eis o homem que, como por encanto, tem persistido com um punhado de adherentes, ora na serra, e ora nas povoações que lhe ficam próximas, e contra o qual já alguns corpos tem tentado em vão.» [3]
__________________
[1] Extraído de «O Telégrafo», nº 5, de 21 de Outubro de 1837, pp. 66-67.
[2] Este periódico, com sede em Lisboa, publicou-se em formato de revista, a duas colunas, num tamanho muito semelhante ao do nosso actual A5; dizia-se em subtítulo como periódico noticioso, mas pelos textos publicados percebia-se que tinha uma forte inclinação miguelista, o que deve ter sido a causa próxima da sua precoce extinção, já que apenas saiu à luz do dia entre 12 e 28 de Outubro de 1837.
[3] Idem, ibidem.

sábado, 28 de dezembro de 2019

A vila de Albufeira – «Baluarte de Fidelidade» ao Liberalismo

Desenho da Guarda Nacional 
(in Picturesque Review of the
Costume of the Portuguese
, 1836)

Em 1820 foi o primeiro concelho no Algarve em que se organizou a Guarda Nacional. Convém, já agora, esclarecer que a Guarda Nacional foi instituída no nosso país em 18-3-1823, para funcionar como milícias armadas, cujo objectivo era salvaguardar o regime liberal, garantir a ordem pública e a defesa militar das pequenas localidades, em caso de ataque, numa situação de guerra.[1]
Em 1826 foi a vila de Albufeira invadida pelos Regimentos de Infantaria 14, Batalhão de Caçadores nº 4 e parte do Regimento de Artilharia nº 2, que haviam clamado D. Miguel, no intuito de obrigar a Câmara e restantes cidadãos a jurarem fidelidade à causa da usurpação. Isso fez com que dali se retirassem para Beja os vereadores, autoridades e melhores cidadãos, acompanhados pelo Coronel José de Mendonça Corte Real e pelo seu Regimento de Milícias de Lagos, que para ali se havia dirigido para defender, em vão, os direitos da Carta Constitucional.
Em 1833, após o desembarque do Duque da Terceira, os albufeirenses acorreram às casas da Câmara para jurarem e firmarem o auto de aclamação e fidelidade a D. Pedro e sua filha D. Maria II. Fizeram-no livremente, julgo que por convicção política dos seus principais cidadãos. Porém, o Remexido ao tomar conhecimento dessa aclamação, cercou e atacou a vila, saqueando-a e incendiando-a. Nesse ataque foram assassinadas várias pessoas, diz-se que às mãos do Remexido pereceram 86 dos mais ilustres cidadãos daquela vila. Na própria igreja foi assassinado, com dois tiros e onze punhaladas, o major Severino José de Sequeira Samora, que com cerca de 80 anos morreu abraçado aos seus familiares.
Durante a guerra-civil chamavam à vila de Albufeira a Gibraltar portuguesa por ali se facilitar refúgio aos constitucionais, que depois dali emigravam para o Reino Unido, e outros portos da Europa. 
Albufeira, pintura de George Landman, 1813
Os albufeirenses alistaram-se voluntariamente nas milícias que combateram e destroçaram a guerrilha do Remexido. Em retribuição desse importante gesto de patriotismo e sacrifício, D. Pedro IV enviou pessoalmente à Câmara de Albufeira uma carta, escrita pelo seu próprio punho, a agradecer os serviços prestados à sua causa, e outorgando-lhe o epiteto de «Baluarte de Fidelidade». Nessa altura, o concelho de Albufeira recebeu, para a sua administração, as freguesias de Pera e Alcantarilha.
Porém, dois anos depois, na vigência política conhecida por “Setembrismo”, tudo se alterou. A vila de Albufeira perdeu a influência que com tanto sacrifício lograra conquistar. A prova disso ficou demonstrada na remodelação do seu património administrativo. As freguesias de Pera e Alcantarilha perdeu-as para o concelho de Silves, e até a pingue aldeia de Boliqueime lhe foi retirada, para enriquecer a administração autárquica de Loulé.

[1] Percebe-se que as origens da Guarda Nacional estão directamente relacionadas com as ideias políticas que inspiraram a Revolução de 1820. Por isso, quando ocorreu a Vilafrancada, em 1823, de inspiração reacionária e absolutista, decretou-se quase de imediato a abolição da Guarda Nacional. Importa dizer que, como tropa de 2.ª linha, tinha as mesmas funções até aí exercidas pelos antigos Regimentos de Milícias do Reino. Após a guerra-civil e a reimplantação do regime liberal, a Guarda Nacional foi recriada em 1834, acabando por ser definitivamente extinta em 1847, no seguimento da guerra da Patuleia.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Prostitutas constitucionais

«A Severa», aguarela de Roque
Gameiro, no livro de Júlio Dantas

Durante o período da usurpação miguelista, que se prolongou de 1828 a 1834, as perseguições políticas tornaram-se tão comuns que o espírito quotidiano era marcadamente exclusivista e fanatizado. Os obreiros desse odioso facciosismo, vulgarmente designados por “caceteiros”, controlavam a cidade de Lisboa, quase rua a rua, interrogando os transeuntes de forma torpe e violenta sobre a sua fidelidade ao Trono e ao Altar. E na fanatização popular a Igreja, sobretudo o clero menor, desenvolveu um papel crucial, atribuindo aos liberais o epíteto de hereges e maçons, a verdadeira encarnação do anticristo.
A «Odalisca», quadro célebre de Francois Boucher
Por estranho que pareça as ideias constitucionais – leia-se espírito liberal, humanista e democrático – tinham também adeptos e apoio no seio da marginalidade sexual, no chamado bas-fond social lisboeta, especialmente nos bairros mais castiços e de maiores tradições, como por exemplo o do Castelo, Alfama, Santa Isabel, Mouraria e vários outros que o fado e a fadistagem tornaram célebres.
Embora ignorantes, arruaceiros e destemidos no manejo da sarda, pico ou naifa, que tudo quer dizer o mesmo, estes marginais, contrariamente ao que seria de esperar, recusavam submeter-se às impiedosas forças da ordem, não tanto pela sua natural insubmissão, mas principalmente por apoiarem de alma e coração os rebeldes “malhados”, epíteto com que se designavam as hostes liberais e a facção pedrista. Por sua vez a burguesia, mais instruída e progressista mas não adversa ao casticismo da fadistagem, com quem muitas vezes se misturava nos momentos de maior contestação popular, esperavam com a revolução liberal poder vir a estabelecer uma nova ordem social para combater a miséria e o obscurantismo.
«Rolla», a prostituta, célebre quadro de Henri Gervex
Como exemplo da apertada vigilância das autoridades miguelistas e dos seus fanáticos apaniguados, conhecidos popularmente por “caceteiros”, citaremos o caricato episódio, ocorrido em 1830, relativo à detenção de duas prostitutas do bairro da Mouraria acusadas de entoarem o hino constitucional. Segundo os autos de pronúncia contidos no processo judicial, aquelas duas polhas foram vistas e ouvidas à janela dos seus quartos prostibulares a trautearem o hino constitucional.[1]
Curiosamente havia-se registado um caso idêntico, também na Mouraria, mais propriamente no Paço do Benformoso, onde além da escandalosa "frescagem" também era costume circularem folhas volantes contra os inauferíveis direitos de D. Miguel ao trono de Portugal.[2]
«Prostituição», quadro de Georg Grosz
Para terminar, gostaria de acrescentar que este meu breve texto não é mais do que uma simples curiosidade, um ligeiro e despretensioso apontamento, com revelar que o liberalismo ou regime liberal (que hoje se traduz por democracia parlamentar-constitucional) tinha forte apoio popular, mesmo no seio dos excluídos sociais, o que contradiz a ideia de ter como únicos apaniguados a burguesia, possidente e intelectualizada.
A prostituição nos bairros populares de Lisboa, sobretudo na Mouraria, sempre existiu, sendo verdade que muitas inspiraram poetas consagrados, como Bocage, Tolentino de Almeida, Antero de Quental, Guerra Junqueiro e tantos outros. Noutros casos, constituíram-se em personagens literárias, que ficaram candidamente retratadas em obras como «O Fado» de Bento Mântua, na «Rosa Enjeitada» de D. João da Câmara, na «Cidade do Vício» de Fialho de Almeida, no «O Primo Basílio» de Eça de Queirós, e muito especialmente em «A Severa» de Júlio Dantas, um sucesso de vendas, que passou ao teatro e depois se imortalizou como o primeiro filme sonoro da cinematografia nacional.




[1] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Intendência Geral da Polícia, Correspondência dos Ministros dos diferentes bairros de Lisboa, Mouraria, Maço 106; [Elementos de Busca, nº 298. Relação 3 fls. 52-54 – “Relação dos Maços de Correspondência dos Ministros dos bairros da capital dirigidos ao Intendente Geral”].

[2] Cf. Pinto de Carvalho (Tinop), História do Fado, Lisboa, Pub. D. Quixote, 1982, p. 75.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Soneto do poeta Marcos Algarve, dedicado ao Presidente Manuel Teixeira Gome

Quadro pintado por Columbano, existente
no Museu da Presidência da República
Quando o nosso embaixador em Londres, Manuel Teixeira Gomes - já então um reputado escritor e um intelectual muito apreciado nos mais cultos areópagos europeus - aceitou o convite de Afonso Costa, e o apoio do Partido Democrático, para assumir a presidência da República, em 5 de Outubro de 1923, o país vivia momentos de instabilidade política e de grande indecisão sobre o futuro do próprio regime. O país vivia debaixo de uma enorme insegurança, com greves constantes, com atentados terroristas à bomba nas ruas de Lisboa, levantamentos militares nos quartéis e governos que se sucediam mais rápidos do que as estações do ano. Pior do que isso eram os escândalos políticos de corrupção e de compadrio partidário, que foram desacreditando o regime.
A eleição de Manuel Teixeira Gomes, tornara-se numa réstia de esperança para a sobrevivência da República, que se unia em torno de um "príncipe árabe vestido em Londres". Não foi o último presidente, mas foi o primeiro a profetizar junto do seu Ministro da Guerra, Óscar Carmona e do seu conterrâneo Mendes Cabeçadas, que a moribunda República lhes haveria de cair nas mãos, para mergulhar numa inexorável ditadura.
Teixeira Gomes, ao lado de Afonso Costa, a
bordo do navio inglês que, por ordem de S.M.B,
 o transportou oficialmente a Lisboa

Não vou referir-me a esses factos, mas tão só a um soneto que o poeta Marcos Algarve (pseudónimo de Francisco Marques da Luz, natural de Olhão, jornalista republicano e maçom) escreveu em homenagem a Manuel Teixeira Gomes, no dia 5 de Outubro de 1923, quando este se alcandorou à mais alta magistratura da nação portuguesa.


O Presidente da República
O requintado Artista das viagens,
O Cellini da prosa facetada
O caminheiro da alma enamorada
E de olhos embebidos nas paisagens

Sobe hoje ao Capitólio das miragens
Onde a Arte soberana, enclausurada,
Chama por ele, tímida e magoada,
E pede-lhe o recorte das Imagens!...

A mão, porém, do Chefe e dos Artistas,
No mesmo impulso arrebatado e frio,
Fará que a Pátria aos vendavais resista…

Coragem!... Vão ao leme do Navio
Os glóbulos do sangue fantasista
Dum coração brioso de Algarvio!

Marcos Algarve

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Faleceu a escritora Agustina Bessa Luís, cuja obra é uma indelével referência na literatura portuguesa

Agustina com seu amigo Manuel de Oliveira

Faleceu ontem, dia 4 de Junho de 2019, a escritora Agustina Bessa Luís, cuja obra é por todos os especialistas considerada como das mais representativas da literatura portuguesa contemporânea.
A nossa imortal escritora Agustina Bessa Luís, deixou-nos aos 96 anos de idade, de forma serena, tranquila e recatada, como aliás sempre viveu e escreveu os seus romances. Sem pedir licença, sem pagar favores, e sobretudo sem se submeter aos interesses instalados, quer fossem políticos, religiosos, económicos ou sociais. Agustina foi em todas as suas atitudes uma mulher do Norte - livre, soberana e independente. E isso causava a invídia e o ciúme daqueles que para serem notícia, e verem os seus livros figurarem nas colunas dos suplementos literários, tiveram que se filiar em partidos políticos e noutras maçonarias menos recomendáveis.
Tive o prazer de a conhecer pessoalmente, quando eu era ainda muito jovem, pelo que não me apercebi concretamente da sua importância no seio da nossa literatura. Sempre achei que sendo uma mulher do Norte não deveria ser muito boa escritora, porque me habituei no sinistro tempo do Fascismo a dar mais importância ao que acontecia ou vinha de Lisboa. É curioso que, passados mais de 40 anos do «25 de Abril», nada mudou - ainda hoje o que vem, ou acontece, em Lisboa é muito mais importante e de maior relevância do que aquilo que se passa em qualquer parte do país.
A província não tem valor nenhum. Lisboa é o centro do império, e o resto é paisagem. O meu pai dizia-me que o José Régio e o Aquilino (Mestre Aquilino, como ele o tratava) tinham sido os últimos valores da província. Não imaginava que a Agustina, filha de boas famílias durienses com negócios no Porto, viesse a ser gente, com nome e impacto nacional.
Lembro-me de alguns escritores, jovens talentosos, que apareciam no café «Magestic», no Porto, a tentear caminho, receberem do meu pai este desolador conselho: "vá para Lisboa e faça-se gente".
Proferi idêntico conselho, em público, na Biblioteca de Albufeira, à escritora Luísa Monteiro, minha conterrânea a viver, como eu, no Algarve. E lembro-me de a maioria dos presentes me repreenderem por tão infeliz sugestão. A própria Luísa Monteiro não aceitou o meu alvitre, e fez mal. Se tivesse ido, acredito que, com as amizades certas, teria conseguido penetrar na corte dos literatos, e seria hoje um nome consagrado da moderna literatura portuguesa.
Como grande admirador da sua obra, guardo na memória as imagens do nosso primeiro encontro, e das suas generosas palavras, doces e maternais. Mas do que jamais me poderei esquecer é da oferta de dois livros, que ela própria autografou e escolheu para mim, por começarem pela letra M (de Mesquita), e que guardo religiosamente - os romances «O Manto» e «A Muralha». Vou agora relê-los, em homenagem às gratas recordações da sua memória. 

quarta-feira, 29 de maio de 2019

João Mariano, o mago da penumbra e da imponderabilidade - na consagração de um artista algarvio de reputação nacional.

João Mariano, conceituado artista da fotografia

Venho mais uma vez à tribuna das redes sociais para falar de um algarvio, que, por mérito próprio e indubitável talento, logrou conquistar um lugar de destaque na exígua galeria do génio artístico nacional. Estou aqui, para felicitar o artista-fotógrafo, João Mariano, pela sua nomeação para os Prémios da Sociedade Portuguesa de Autores 2019, na categoria de Artes Visuais, com a exposição «Trezentos e sessenta e seis», acerca da qual publicou um belíssimo catálogo. Neste tipo de certames, o que importa é ser reconhecido, porque vencer é apenas uma questão de pormenor na escolha do júri.
Conheço de há muito o João Mariano, cuja obra artística tem sido elogiada pelos mais consagrados críticos da sua especialidade - a Fotografia, também designada como a oitava manifestação artística do Homem.
Em abono da verdade, impõe-se realçar que vincar presença, com independência e integridade moral, num mundo tão exigente e diversificado, como o da Arte, é muito difícil e ingrato, por todas as razões que dizem respeito ao confronto do talento, com a inteligência e o génio. Abstenho-me de falar, por exemplo, nos escolhos e entraves da proverbial inveja de que enferma a cultura lusíada. Num país onde se abatem as árvores para não fazerem sombra aos arbustos, é lógico que o talento de homens como João Mariano ofendem, ferem, a mesquinhez da nossa mediocridade.
A forca da morte espreita a vida do pescador
João Mariano tem feito exposições por todo o país e pelo estrangeiro, onde tem sido muito elogiado pela forma como capta o movimento do imperceptível, como evidencia o risco ou o desafio do perigo, nomeadamente dos mariscadores das pedras do velho Promontório de Sagres, face à brutalidade dos elementos naturais; como sente e transmite a leveza da solidez, até mesmo nas formas mais simples e fugazes da imperceptibilidade humana; como vislumbra a grandiosidade das coisas numa aparente frugalidade das formas; como materializa os fantasmas dos sentidos nos olores e nos sabores das coisas simples e belas da natureza. E todo o seu enorme talento consiste na capacidade de ver o invisível, ou seja, de sentir e tocar o que só o génio divisa. Essa sublime aptidão – ver e sentir o imponderável – define o intelecto de João Mariano, que aliás tem sido revelado à posteridade através de magníficos álbuns artísticos. São oito, no total, dos quais possuo dois, «Guerreiros do Mar» e «Lugares Pouco Comuns», verdadeiros monumentos da arte fotográfica, na difícil expressão do preto e branco, que não só dignificam o seu autor como um artista de eleição, como ainda exponenciam o nome do Algarve e da sua paradisíaca Aljezur no conceito e admiração do turismo à escala mundial.
Monstro do mar, captados pela objectiva do artista
Todas estas razões constituem forte motivo de orgulho para o município de Aljezur, na pessoa do meu amigo José Gonçalves, emérito vereador da cultura, e hoje presidente da edilidade, que sempre pugnou pelo prestígio da sua terra e dos seus munícipes, de entre os quais se tem distinguido os próprios pais do João Mariano. Refiro ao casal Zabel Moita e Ernesto Silva, dois artistas consagrados na difícil arte de esculpir o barro, inseridos na histórica tradição da cerâmica lusa, que deu a conhecer ao mundo os génios de Rosa Ramalho e Júlia Ramalho, José Franco, Herculano Elias, e de outros prestigiados nomes da nossa cerâmica figurativa. O Ernesto Silva, pai do João Mariano, tem uma particularidade muito especial – é um dos melhores poetas do Algarve, reconhecido e elogiado pela crítica da especialidade. Além disso, é detentor de uma memória prodigiosa, que lhe permite recordar, quase como se fosse ontem, alguns dos factos mais marcantes na história recente da vila de Aljezur. Quando vou a Aljezur passo sempre pelo seu atelier, para lhe dar um abraço, para apreciar as suas obras de arte, e, sobretudo, para o ouvir contar as histórias e tradições socioculturais das sacrificadas gentes de Aljezur, tão genialmente narradas pelo escritor algarvio Assis Esperança na sua obra imortal «Pão Incerto».
O apanhador de perceves diluído nas águas do mar
Para terminar, quero expressar aqui o meu regozijo por ver reconhecida pela SPA - Sociedade Portuguesa de Autores, a obra artística de João Mariano, cujo sucesso tem contribuído para o reconhecimento de Aljezur e da Costa Vicentina, como um dos últimos paraísos ambientais da Europa, com forte implicação no desenvolvimento turístico do Algarve e do nosso país.
Quando penso em Domingos Alvão, em Artur Pastor, em Eduardo Gageiro, em Mário Caldeira, ou em Zambrano Gomez - que fotografou a alma do povo algarvio (a pesca) – fico esperançado no futuro da arte fotográfica, e particularmente orgulhoso pelo reconhecimento da obra de João Mariano no contexto nacional.
© José Carlos Vilhena Mesquita

segunda-feira, 27 de maio de 2019

Cartaz Turístico da aldeia de CACHOPO

Este deve ser o mais antigo documento turístico de Cachopo

A antiga comissão municipal de Turismo da cidade de Tavira, constituída por cidadãos locupletados entre os mais ilustres da sociedade local, mandaram imprimir na Tipografia Modelo, a 14-2-1953, um cartaz de propaganda das belezas naturais e turísticas da aldeia de Cachopo, perdida nos recônditos da serra do Caldeirão. O cartaz é simples, mas não é destituído de bom gosto. Tem as dimensões de 45x35cm, emoldurado a vermelho com cinco gravuras impressas a azul e uma belíssima quadra de Virgínio Pires, um dos mais talentosos poetas algarvios, que, tal como a belíssima aldeia de Cachopo, está hoje injustamente esquecido e ignorado. A quadra, ao jeito popular, personifica a aldeia que se dirige ao visitante, revelando-lhe as características revivificantes do seu o ar puro e das águas férreas das suas fontes:

Vivo encravada na serra,
Tenho a pureza do ar,
E a água férrea nas fontes
Noite e dia a murmurar.

Termina o apelativo cartaz com a promessa de levar àquele povo o progresso da rede telefónica, isto é, de quebrar o seu isolamento e de o colocar em contacto com o mundo. Está aqui bem expressa a importância das telecomunicações, que justificam a nossa civilização global. Deixo-vos a imagem desse curioso cartaz, que encontrei no meio de alguns dos meus velhos papéis.

domingo, 26 de maio de 2019

Quem foi o padre Francisco José Ferro?

Pagina central do «Povo Algarvio» de Tavira, publicando
em forma de folhetim o folheto do padre Francisco Ferro
Nas minhas actualizações, quase diárias, da Algarviana, do meu saudoso amigo Dr. Mário Lyster Franco, cuja edição ficou interrompida em 1982, tenho-me deparado com certas dificuldades na recolha de informação. A idade e a genica para a investigação já não é a mesma de há 40 anos. Falta-me a paciência para ir a Lisboa à procura disto ou daquilo na Biblioteca Nacional ou na Torre do Tombo, cujos cantos e recantos, fundos e refundos, eu conhecia ao pormenor e sem segredos. Mas hoje tudo mudou, e custa-me ver que tudo mudou para pior. Enfim, não vou falar disso agora. 
Num dos pequenos verbetes, que escrevi em 1980 para actualização da Algarviana, retirado no meio de centenas de outros, que guardo em caixas de sapatos, consta o nome do Padre Francisco José Ferro que passou por Tavira, tendo paroquiado a Igreja de Santa Maria do Castelo desde 1880 até à sua morte, que ocorreu naquela cidade em data que desconheço. Quem me mostrou um folheto da sua autoria foi o saudoso Abílio Gouveia, que sempre considerei como o mais esforçado, o mais competente e sacrificado intelectual do Algarve. Vivia frugalmente em Olhão e em matéria de bibliografia eclesiástica, literatura religiosa e ecuménica não conheci ninguém que o superasse. Sobre a história de Olhão, desde as suas origens arqueológicas até ao fulgor do capitalismo industrial, o Abílio Gouveia era uma das maiores autoridades como historiador e como bibliófilo, já que tinha na sua casa milhares de folhetos raros, manuscritos, jornais antigos, sermões, sentenças dos tribunais, enfim tinha tudo, tudo, tudo, o que pudesse interessar ao conhecimento do passado histórico da sua terra e do Algarve em geral. Infelizmente o Abílio Gouveia morreu em 1985, e até hoje nunca soube o que aconteceu à sua valiosíssima biblioteca, receando que se tenha perdido um dos mais raros e valiosos acervos bibliográficos do Algarve.
Transcrição no «Povo Algarvio» do folheto do Padre Ferro
O folheto que ele me mostrou tinha por título «Protesto contra os Actos de Selvageria praticados em Roma na noite de 12 de junho de 1881, dirigido ao Sanctissimo Padre Leão XIII». Apontei que se tratava da descrição do atentado praticado contra o Papa na noite de 12 para 13 de junho de 1881, em cujo texto o Padre Francisco José Ferro urdia em defesa do Santo Padre uma veemente acusação do acto ignominioso perpetrado pelos agressores do representante de Cristo na terra. Considerava mesmo que com esse acto estariam os seus agressores a recriar as ofensas que o Nazareno já havia sentido a caminho do Calvário. Apontei também que o texto era um arrazoado religioso intragável, palavroso e excessivamente retórico, dando a impressão que o Padre Ferro estaria, através desta publicação, a habilitar-se a um cargo ou sinecura que já trazia em mente poder alcançar junto do Bispo de Faro. Não sei se o conseguiu. O certo é que o folheto foi publicado em Tavira, no ano de 1882.
Há poucos anos atrás, vim a encontrar na minha colecção de jornais do Algarve, a edição nº 611 do «Povo Algarvio», de Tavira, datada de 24-03-1946, na qual se inseria, no rodapé da página 3, em jeito de folhetim – como era costume na época – a notícia da transcrição integral do mencionado folheto do padre Francisco José Ferro. Não resistimos à tentação de aqui transcrever o parágrafo de abertura, por dele ressaltar o facto dos redatores daquele órgão ainda se lembrarem do Padre Ferro, mas desconhecerem a edição anterior daquele folheto:
«Pessoa amiga deu-nos a conhecer o folheto cuja transcrição iniciamos hoje. Foi seu autor um Padre de quem nesta cidade ainda hoje se recorda, com saudade, a sua veneranda figura de Prior que durante tantos anos por aqui viveu e aqui morreu. Ressalta deste folheto, acima de tudo, o profundo fervor religioso do autor e a sua revolta contra os infames ultrajes perante os quais ergue a sua voz de Padre católico e de homem de bem. Por tudo isto e por não ser conhecida, nunca ouvimos falar nesta publicação, quisemos arquiva-la nas colunas do «Povo Algarvio».
Não fiz ainda a entrada do Padre Francisco José Ferro na letra F da Algarviana, porque me faltam os seus principais traços biográficos. Depois falta-me saber se escreveu mais coisas e se foram publicadas em letra de forma. Por fim, falta-me saber se na biblioteca municipal de Tavira ou na biblioteca da Diocese de Faro existe o curioso folheto de «Protesto contra os Actos de Selvageria praticados em Roma na noite de 12 de junho de 1881».

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Edifício Rádio Algarve - Antena Sul, vai ser vendido para especulação imobiliária

Edifício histórico da Rádio Algarve, oferta do Estado Novo
É pena que a Rádio Televisão Portuguesa, como entidade proprietária deste imóvel, já o tenha vendido, em Lisboa, e à socapa do Algarve, mas não dos políticos nem dos autarcas algarvios interesses. Parece que foi vendido a uma empresa imobiliária francesa, para no seu lugar construir um condomínio de luxo. É verdadeiramente criminosa a demolição deste edifício, que foi construído de raiz para nele se instalar a antiga Rádio Algarve, ao tempo o mais moderno meio de comunicação, que difundiu a cultura e a voz dos algarvios por todo o mundo. Foi uma generosa oferta do Estado Novo ao Algarve. Bem sei que a maioria dirá que se deve deitar abaixo, porque foi obra dos fascistas. Ainda assim acho lamentável que se destrua um dos poucos monumentos da História da Rádio ainda existentes no nosso país. Estive lá no verão passado com um radialista estrangeiro, que após breve visita às instalações considerou os estúdios de gravação de uma qualidade inexcedível, afirmando que seria impossível nos dias de hoje construir algo igual. Porque para além de ser imensamente dispendioso, também já não temos hoje materiais com a mesma qualidade de insonorização.
Neste estilo arquitectónico, que alguns ironicamente chamam «Português Suave», só temos em Faro o antigo Dispensário (hoje ocupado pelo centro médico), a escola Tomás Cabreira, o Liceu, as escolas do Carmo e da Sé, e, enfim, pouco mais.
Esta antiga sede da Rádio Algarve, possui alguns trabalhos de decoração artística muito valiosos, em azulejaria e baixos relevos de massa e cerâmica vidrada, que antes do edifício ser demolido devem ser retirados por técnicos especializados, a fim de ficarem preservados no Museu de Faro.
O pouco que ainda resta do antigo património decorativo da Rádio Algarve, continua a ser bastante valioso e cobiçado. Os trabalhos estão assinados por artistas de reputação nacional. Por isso sugiro que sejam retirados antes de demolirem o edifício. Devido à localização privilegiada do edifício, é óbvio que não irá resistir à cobiça dos empreiteiros.
Para terminar, faço lembrar que o terreno adjacente, e que pertencia à RDP Algarve, foi o primeiro estádio de futebol do Sporting Clube Farense. É claro que o primeiro recinto onde se iniciou o futebol no Algarve, foi no largo de S. Francisco. Mas onde o Farense começou a jogar oficialmente foi ali, no campo da Senhora da Saúde, em cujo topo norte se construiu um posto emissor de rádio. Se olharem para o terreno onde se implantou o edifício da RDP, vão perceber claramente, pelo seu nivelamento e dimensão, que foi um campo de futebol.

terça-feira, 21 de maio de 2019

O Perfume da Esteva – elegia poética da serra algarvia


Quem pesquisar no velho «Dicionário de Morais» a palavra Poesia, verificará que o seu significado, e sentido lexical, se traduz na «descripção ou pintura da Natureza, em estilo harmónico e métrico, diverso do prosaico». Quer isto dizer que poeta é aquele que sabe descrever a natureza com as tintas da harmonia, captando a beleza natural das coisas que compõem a vida, através da forma sensível como distribui as palavras. O poema constrói-se através da euritmia entre as imagens e as metáforas, na cadência musical da métrica rimática. Convenhamos então que a poesia é muito distinta da prosa, diria mesmo que é muito mais difícil e exigente, por ser toda ela imaginação, fantasia e sensibilidade, na dosagem certa para alcançar na autenticidade de um verso o êxtase da vida. Como disse Florbela Espanca, ser poeta «é ter de mil desejos o esplendor, e não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, é ter garras e asas de condor!»
 Pois bem, a questão primacial que aqui se coloca é exactamente a de saber se estamos perante um poeta, cujo livro, que agora se apresenta a público, deve ou não considerar-se com valor e merecimento, para figurar no galarim da literatura algarvia. Essa é uma questão a que só o tempo e a opinião pública poderão dar satisfatória resposta. Pela minha parte, e mercê da minha experiência, posso afiançar que O Perfume da Esteva é um livro de poesia, que vale a pena ler. Ora, sendo o Algarve uma nação de poetas, poder-se-á pensar que este é mais um livro de versos. Não, nada disso. Este é um livro para ficar, por se tratar de uma poesia inspirada na vida real, não das pessoas, mas dos animais, que tal como nós têm inteligência e sagacidade, têm personalidade, hábitos e sentimentos, a que chamamos instintos, por alegado cientismo.
Este livro, até pela eloquência do seu autor, está longe da poesia popular. Mas como também não obedece aos cânones formais da poesia clássica, não pode considerar-se como poesia lírica nem parnasiana. Está também muito longe daquelas versalhadas intimistas e obscuras, opacas e surreais, que deixam o leitor sem perceber nada do que o autor quer dizer.
No fundo, talvez se possa designar O Perfume da Esteva como um livro de poesia naturalista. Em todos os sentidos da estética lírica, parece inspirada num ecologismo realista, num sentimento de preservação ambiental, cuja mensagem incide no conhecimento e divulgação da diversidade cinegética do Algarve. O objectivo subjacente à mensagem poética é, tão simplesmente, o da protecção da natureza e da preservação da vida selvagem na serra algarvia.
O escritor António Venda fazendo o meu escorço biográfico

Advogado, professor, caçador… e poeta

O autor, Paulo Rosa, é um homem de leis, com banca de advocacia e militância no foro da «Trindade Maravilhosa» do nosso turismo, que se triangula entre Monchique (o pulmão do Algarve), a Praia da Rocha (embrião do turismo algarvio) e Lagos (base naval dos Descobrimentos Portugueses).
Mas, Paulo Rosa, também é professor por paixão, e jornalista por dedicação, vontade e talento. Por isso, tem responsabilidades na direcção do «Jornal de Monchique», um dos poucos órgãos de imprensa que ainda resistem no Algarve, e preside desde há um quarto de século à «Rádio Fóia». Quem o conhece, sabe que é um homem que a tudo mete ombros e que com todos colabora, de forma voluntária e fraterna. Por isso, cargos não lhe faltam. Todos graciosos, como é próprio dos homens que servem, sem o interesse de se servirem. Talvez por causa desse espírito de dar sem cuidar de receber, é que Camilo Castelo Branco disse a certa altura: «os poetas são capazes de povoar um céu devoluto, mas não têm iguais faculdades criadoras para algibeiras vazias».
Associativista e ambientalista, são os atributos que melhor caracterizam o espírito e o carácter de Paulo Rosa. E na vila de Monchique todos os têm por amigo sincero, afável e disponível, quer seja para esclarecer dúvidas burocráticas, preencher papéis, sugerir soluções, ou simplesmente para o convívio de uma boa e amena cavaqueira.
O livro, em si, é surpreendente, não só pela temática cinegética, como ainda pela eloquência com que analisa o ambiente e descreve a fauna - felizmente ainda subsistente na serra algarvia. A nomeação desses animais (que eu nem sabia que ainda existiam), as suas características e personalidade, os seus comportamentos e hábitos alimentares, os seus instintos de sobrevivência, são pormenores de suprema importância, descritos neste livro com o brilho e o realismo, que nem sempre as metáforas líricas permitem retratar.
São belíssimos poemas, onde a natureza ganha o brilho resplandecente da vida. Escreveu-os o Paulo Rosa, ao ritmo da inspiração, sem a preocupação de os repartir ou ordenar numa estrutura taxionómica da espécie, género, família, ordem e classe. O fulcro poético incide na natureza, sobretudo na forma como os animais silvestres subsistem no ambiente fragoso e agreste da serra algarvia. No equilíbrio sempre periclitante da conservação ambiental, não raras vezes devastado pelos infernais incêndios da serra algarvia, cabe-nos a todos a responsabilidade de contribuir com o nosso esforço, dedicação e inteligência, para a sua preservação e desenvolvimento. Este livro, O Perfume da Esteva é um exemplo de esforço, dedicação e eloquência, de quem conhece a fauna e a flora que inunda de vida, de cor e de inebriantes odores, esta inigualável serra de Monchique. A poesia, neste caso, é um pretexto, uma estratégia, ou melhor, um subterfúgio para dizer em poucas palavras e de uma forma acessível a todos, essa enormíssima mensagem de que os animais também têm uma vida, também têm direitos, também merecem respeito, porque, afinal, animais somos todos.
O filho do autor lendo um poema do livro

Animais de caça, numa ligação poética de vida

Aqui e ali, por entre os degraus do poema, corre e salta a lebre, numa fuga desenfreada. Mais além, é a perdiz que voa sobre as estrofes, deixando atónito o caçador, sem tempo para premir o gatilho. Lá no alto vê-se o pato-real, que no seu roteiro migratório vem pousar nas águas calmas das charcas agrícolas, para aqui fazer o ninho e criar a prole. Num voo estonteante, ziguezagueia e arrulha a rola brava, no anil dos céus. À espera da sua entrada estão os caçadores, mas só os mais exímios e experimentados conseguem um tiro certeiro. Os outros, os inábeis só gastam chumbo – mas não o tio Torrinha, que de tão cioso e avaro não desperdiçava um tiro, e assim “trazia o chumbo todo para casa”.
No domínio dos ares desfila o tordo e a galinhola, ecoa o silvo da águia-de-bonelli, despenha-se como um míssil sobre a presa o falcão-peregrino, a que não escapa o pombo torcaz, para desprezo do magro pisco. O guincho-da-tainha é uma ave falconiforme de perscrutante visão, para a qual tudo o que rasteja é alimento. Não há serpente que lhe escape. A cantar loas à vida, ouve-se ao longe, mas não se vê, o cuco canoro, que de visita aos ninhos alheios, vai dando a prole para adopção. No seu libré de cores garridas, esvoaça o gaio traiçoeiro de olhar perscrutante e assassino, à cata de infante em ninho alheio. Desde o lusco-fusco até ao dealbar da madrugada, impera “em domínios a olho e garra conquistados” o tenebroso e perscrutante bufo-real.
Fazendo a apresentação e apreciação crítica da obra
Nos domínios rasteiros, por entre os matos da serra, serpenteia a víbora-cornuda de picada fatal para o rato do campo. Este peçonhento ofídio, também designado por víbora das pedras, cuja cabeça triangular serve de talismã aos crentes no mau olhado, também se converte em cobiçado pitéu – quem diria – para o meigo ouriço cacheiro, para o intrépido saca-rabos (escalavardo na gíria popular), e até para o voraz javali. Mas, entre os pedernais da serra, também por ali vagueia a esquiva raposa, que persegue e mata o coelho, devora quando pode o lebrão, afinfa o dente no rato e lambe os beiços só de ver a capoeira do lavrador. Com o lince ibérico tudo o que mexe é refeição, só não se sabe quando nos dá a honra da sua visita, porque na serra algarvia o lince já foi mito e agora é uma fugaz realidade. Com o javali (navalheiro) é preciso ter muito cuidado, por ser o mais vadio da serra. Não é esquisito na dieta, que prefere satisfazer à noite, camuflado no mato, percorrendo quilómetros no encalce das suas presas. É o mais voraz da fauna algarvia, não lhe escapando a víbora e o licranço, a centopeia e a minhoca, o ninho da perdiz incauta, e, à falta de melhor, não desdenha ter por refeição a carocha e a formiga. Rabisca no chão a amêndoa, a castanha, o pinhão, e até mesmo a cevada, o centeio e o milho, mas quando vislumbra no horizonte a macieira corre lampeiro para abocanhar os frutos caídos, quando não investe pelo tronco acima como os felinos da selva.

O caçador e o cão, um laço de amizade eterna

Todavia, que seria do caçador sem o auxílio do cão, que fareja a presa, que a persegue e faz levantar para o tiro certeiro do seu amo. Sim, além de ser o melhor amigo do homem, o cão é o complemento indispensável do caçador. E, nesse aspecto, o Paulo Rosa não se esqueceu de evocar neste livro o perdigueiro português, por muitos considerado o melhor cão de caça para a perdiz, capaz de superar todos os obstáculos, em terra, nos rios, charcos e pântanos, para abocanhar a presa abatida e trazê-la, como troféu, às mãos do caçador. E se nos densos matagais é capaz de rastejar, silencioso e prudente, para fazer levantar a esquiva perdiz, o mesmo acontece quando tem de se lançar à água para inquietar o pato-bravo até ao voo fatal. O cão para o caçador depressa se torna no seu braço-direito, até que de tão imprescindível convívio ascende ao conceito de pessoa humana, e mais do que isso, ao amor de um irmão. Quando a morte, os separa a ambos, desencadeia-se o drama da perda, a saudade que não se apaga. É assim para o caçador, mas também é igual para o cão, que não consegue esquecer o seu amo até ao fim da vida. A cadela Pitucha, consagrada neste livro com um belo poema, é o exemplo maior dessa afeição, quase sanguínea, entre o homem e o animal, deixando com a sua morte um vazio de saudade na perda duma amizade insubstituível: “Foste mas ficaste em mim porém, que o laço do afecto, não desata a morte”.
O Dr. Paulo Rosa, autor do livro, na sua breve alocução pública, 
explicando as razões que motivaram a publicação desta obra

O latim, na erudição e na ciência

Nestes belos e sensíveis poemas, Paulo Rosa recorre por vezes à mitologia e aos autores clássicos, para estabelecer pontes e urdir comparações, entre civilizações e culturas aparentemente distantes. O latim, a língua de Séneca, é também a expressão clássica dos jurisconsultos. Mas, neste caso, usa-a com parcimónia e apenas para seguir a nomenclatura binomial de Carlos Lineu. É de uso imprescindível para identificar os animais, que descreve nos seus poemas. Como exemplo, atente-se na “Cyanopica cyanus”, designação latina do popular “charneco”, isto é, da pega azul que julgo ter sido importada da Ásia. Para ser mais preciso, a nossa pega azul tem a designação de “Cyanopica cooki”, por ser uma sub-espécie daquela.
Mas, dizia eu, que o uso do latim demonstra também que o Paulo Rocha é um homem culto, que não faz das leis e dos códigos o seu exclusivo lenitivo de vida, sentindo que o foro é um convencional ajuste de normas, regras e preceitos, no ordenamento estrutural dessa inquietante dimensão que é a existência humana. Mas o espírito precisa da dúvida para construir a verdade.

O melhor reserva-se para o fim

Para mim os três últimos poemas, só por si, justificam a edição deste livro. Diria até, como o Jorge Luís Borges, que valem pelo livro todo, porque são a prova da existência de talento poético em Paulo Rosa. Têm tudo o que a poesia necessita de ter para ser considerada como arte, e constituir em si aquilo a que se convencionou designar por “Belas Letras”. Permitam-me que destaque, de entre os três, o poema «A caçada dos escritores», no qual o autor imaginou, como num quadro teatral, uma reunião entre homens de letras, que em comum têm a paixão pela caça. O poema tem a imaginação dos grandes poetas. A cena desenrola-se no céu, “num serão do eterno descanso a recordar aventuras, jornadas, festarolas”. Em palco estão Aquilino Ribeiro, Ramalho Ortigão, Bulhão Pato, Miguel Torga, e outros, “exímios no manejo da escopeta, do tacho e da pena”.
O poeta retrata toda a cena, com o brilho da ilustração e da vaidade, inerente às grandes celebridades: “Em tertúlia de lembranças e de relatos, salpimentadas de excesso quanto baste e com dose de vaidade posta a gosto”. A descrição tem a graça da ironia queirosiana, apimentada pelo chiste sardónico. Tem vivacidade narrativa através do requinte do pormenor, quer seja no aprumo da indumentária, quer seja no primor das armas. Tem movimento na forma como dialogam e como impõem a sua presença aos demais. Tem ritmo na sequência das interlocuções, nos dichotes e interpelações. Por exemplo, o Bulhão Pato que conhecemos como notável gastrónomo, demanda o Torga, exímio caçador de perdizes, para asseverar que: “as perdizes glorifico eu «à castelhana» e à minha moda tratarei de a sublimar, e um «arroz opulento» endeusarei se vindimos paspalhões se levantarem”. O auge da hilaridade e do picaresco chega na voz do Ramalho, que como bom portuense aproveitou logo para farpear os lisboetas, acusando-os de devorarem os perdigotos, ainda mal saídos do ninho, impedindo que as perdizes cresçam e a natureza progrida: “E vejam lá que em Lisboa até os servem que nem piscos, de alhada, nas tabernas”. E depois daquela truculenta cavaqueira, é mestre Aquilino Ribeiro quem organiza a linha e o rumo da caçada num marcial grito: «atenção avante em frente, e o resto é quimera, sonho e poesia».
O outro poema, intitulado «Um olhar de Ortega y Gasset», é uma composição lírica, séria, compacta e segura, uma espécie de homenagem à integridade moral e à honradez, daquele que foi o maior filósofo espanhol do século XX. Nesta composição o Paulo Rosa faz uma alusão ao perspectivismo e à teoria da razão vital, que enformou o pensamento filosófico de Gasset, cujo objectivo final era o de encontrar o “ser fundamental”. Ora, a resposta oferece-a o poeta nas palavras simples dos seus versos: «Muito estimável é a preocupação pelo que dever / mas só após esgotar o respeito pelo que é / pois um homem pode envilecer até com a sublimidade».
Por fim, o poema «A caça à mesa» é a recriação poética de uma caçada real, principal distração lúdica da nobreza cortesã. O poema constitui uma ode à rica gastronomia com que se deleitavam o rei e a sua vasta corte, após extenuante caçada em correrias de cães e cavalos, por entre serranias, campinas e moitedos. Tudo ali é fantasia e criação, num frémito de exaltação lírica, em que o coração ofegante do poeta, sente, recria e revive, o prazer da mesa e do convívio no lauto repasto das viandas cinegéticas. O poema que encerra o livro ilustra a forma como terminam todas as caçadas, isto é, num alegre convívio gastronómico, em que se consolidam amizades para o resto da vida.

O poeta Américo Telo proferindo a intervenção de encerramento da sessão
Concluindo com a outro grande poeta e caçador

Acima de tudo, estamos perante um livro que é uma elegia à natureza, e à biodiversidade ambiental do nosso Algarve. Nunca tinha lido nada igual ou até semelhante na poesia portuguesa. De tantos poetas famosos, que viveram de forma apaixonada o prazer da caça, raros foram, porém, os que escreveram com tanto entusiasmo, como o fez neste livro o Paulo Rosa. O caso mais recente, e o mais conhecido, é o livro de poemas de Manuel Alegre, um exímio caçador, dedicado ao seu cão de caça, um “Spaniel Bretão”, que de tanto conviver com a família, e por ter sido criado dentro de portas, se transformou num humano de quatro patas, que “ladrava quando queria falar”. Teve uma vida longa e feliz, com dezenas de prodigiosas caçadas, em que demonstrou o seu decisivo contributo para o sucesso final. Quando morreu toda a família ficou com a alma a sangrar de desgosto. É que tinham perdido um membro da família, que por acaso era cão. Daí que o poeta Manuel Alegre tenha escrito em 2002, um livro fabuloso, intitulado «Cão como nós» que é uma das mais primorosas obras poéticas do nosso tempo, inspirada num profundo e genuíno sentimento de amizade. O facto de ter este livro como único protagonista um cão, e ter como único homenageado um cão, faz desta obra um exemplo singular, que julgo ninguém mais irá imitar.
Para terminar, em nome da cultura, da preservação do ambiente, da natureza e da biodiversidade, faço aqui uma viva recomendação para a leitura deste livro de Paulo Rosa, O Perfume da Esteva, publicado pela editora «On y va», na primavera de 2019.
© José Carlos Vilhena Mesquita