quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Prostitutas constitucionais

«A Severa», aguarela de Roque
Gameiro, no livro de Júlio Dantas

Durante o período da usurpação miguelista, que se prolongou de 1828 a 1834, as perseguições políticas tornaram-se tão comuns que o espírito quotidiano era marcadamente exclusivista e fanatizado. Os obreiros desse odioso facciosismo, vulgarmente designados por “caceteiros”, controlavam a cidade de Lisboa, quase rua a rua, interrogando os transeuntes de forma torpe e violenta sobre a sua fidelidade ao Trono e ao Altar. E na fanatização popular a Igreja, sobretudo o clero menor, desenvolveu um papel crucial, atribuindo aos liberais o epíteto de hereges e maçons, a verdadeira encarnação do anticristo.
A «Odalisca», quadro célebre de Francois Boucher
Por estranho que pareça as ideias constitucionais – leia-se espírito liberal, humanista e democrático – tinham também adeptos e apoio no seio da marginalidade sexual, no chamado bas-fond social lisboeta, especialmente nos bairros mais castiços e de maiores tradições, como por exemplo o do Castelo, Alfama, Santa Isabel, Mouraria e vários outros que o fado e a fadistagem tornaram célebres.
Embora ignorantes, arruaceiros e destemidos no manejo da sarda, pico ou naifa, que tudo quer dizer o mesmo, estes marginais, contrariamente ao que seria de esperar, recusavam submeter-se às impiedosas forças da ordem, não tanto pela sua natural insubmissão, mas principalmente por apoiarem de alma e coração os rebeldes “malhados”, epíteto com que se designavam as hostes liberais e a facção pedrista. Por sua vez a burguesia, mais instruída e progressista mas não adversa ao casticismo da fadistagem, com quem muitas vezes se misturava nos momentos de maior contestação popular, esperavam com a revolução liberal poder vir a estabelecer uma nova ordem social para combater a miséria e o obscurantismo.
«Rolla», a prostituta, célebre quadro de Henri Gervex
Como exemplo da apertada vigilância das autoridades miguelistas e dos seus fanáticos apaniguados, conhecidos popularmente por “caceteiros”, citaremos o caricato episódio, ocorrido em 1830, relativo à detenção de duas prostitutas do bairro da Mouraria acusadas de entoarem o hino constitucional. Segundo os autos de pronúncia contidos no processo judicial, aquelas duas polhas foram vistas e ouvidas à janela dos seus quartos prostibulares a trautearem o hino constitucional.[1]
Curiosamente havia-se registado um caso idêntico, também na Mouraria, mais propriamente no Paço do Benformoso, onde além da escandalosa "frescagem" também era costume circularem folhas volantes contra os inauferíveis direitos de D. Miguel ao trono de Portugal.[2]
«Prostituição», quadro de Georg Grosz
Para terminar, gostaria de acrescentar que este meu breve texto não é mais do que uma simples curiosidade, um ligeiro e despretensioso apontamento, com revelar que o liberalismo ou regime liberal (que hoje se traduz por democracia parlamentar-constitucional) tinha forte apoio popular, mesmo no seio dos excluídos sociais, o que contradiz a ideia de ter como únicos apaniguados a burguesia, possidente e intelectualizada.
A prostituição nos bairros populares de Lisboa, sobretudo na Mouraria, sempre existiu, sendo verdade que muitas inspiraram poetas consagrados, como Bocage, Tolentino de Almeida, Antero de Quental, Guerra Junqueiro e tantos outros. Noutros casos, constituíram-se em personagens literárias, que ficaram candidamente retratadas em obras como «O Fado» de Bento Mântua, na «Rosa Enjeitada» de D. João da Câmara, na «Cidade do Vício» de Fialho de Almeida, no «O Primo Basílio» de Eça de Queirós, e muito especialmente em «A Severa» de Júlio Dantas, um sucesso de vendas, que passou ao teatro e depois se imortalizou como o primeiro filme sonoro da cinematografia nacional.




[1] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Intendência Geral da Polícia, Correspondência dos Ministros dos diferentes bairros de Lisboa, Mouraria, Maço 106; [Elementos de Busca, nº 298. Relação 3 fls. 52-54 – “Relação dos Maços de Correspondência dos Ministros dos bairros da capital dirigidos ao Intendente Geral”].

[2] Cf. Pinto de Carvalho (Tinop), História do Fado, Lisboa, Pub. D. Quixote, 1982, p. 75.

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