quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Deputados pelo Algarve eleitos às Cortes de 1822

Entrada solene, em Lisboa, da Junta Provisória,
emanada da Revolução Vintista, proclamada na
 cidade do Porto no dia 24 de Agosto de 1820.

As primeiras eleições que se realizaram no país, com recurso ao sufrágio livre e representativo, foram as de 1822, no âmbito das quais seriam eleitos deputados de todo o continente e ilhas. Não se pode dizer que tanto a legislação como o processo eleitoral fossem semelhantes aos que regulam hoje a nossa vida democrática. Muito longe disso. Em primeiro lugar, não existiam partidos políticos, pelo que só os cidadãos com meios de fortuna e prestígio social podiam apresentar-se ao sufrágio pelos seus próprios meios. Depois o voto não era universal, isto é, apenas podiam votar os cidadãos activos que pagassem impostos, pelo trabalho, pelo agenciamento de vida ou pela propriedade de bens imóveis. Outra particularidade da lei eleitoral era o voto indirecto, isto é, o eleitor votava na sua paróquia em delegados, que depois na sede do concelho votavam em procuradores, que depois elegiam os deputados. Nestas eleições de 1822, por serem as primeiras, as listas apresentadas a sufrágio tiveram um âmbito nacional, ficando os eleitos regionais como substitutos, em caso dos efectivos não puderem assumir as suas funções no parlamento.
Apoio popular aos revolucionários vintistas que
 implantaram a liberdade em Portugal, clamando:
 Viva a Liberdade, a Constituição e a Regeneração.

Os candidatos a deputados pelo Algarve que obtiveram maior número de votos, foram os seguintes: 
Efectivos – Gregório José de Seixas, 4880 votos. 
Manuel Pedro de Mello, 4417 votos. 
Manuel Aleixo Duarte Machado, 4209 votos. 
Rodrigo de Sousa Castelo Branco, 4154 votos. 

Substitutos – José António Ferreira Braklami, 1761 votos. 
José Bento de Barahona Fragozo, 1477 votos. 
José Diogo Mascarenhas Neto, 1229 votos. 
José Vaz Velho, 1065 votos. 

Aguarela de Roque Gameiro alusiva às Cortes de 1820.
Curiosamente o conhecido historiador algarvio João Baptista da Silva Lopes, cujo prestígio político era inquestionável, por ter sido membro da Maçonaria de Lagos e um dos heróicos sobreviventes das prisões de S. Julião da Barra, apresentou-se a sufrágio nas eleições regionais, mas a sua eleição como substituto foi impugnada devido ao facto de desempenhar as funções de Vice-Cônsul da Espanha, o que, alegadamente, lhe granjearia a simpatia e popularidade junto do eleitorado. Por isso foram-lhe retirados 262 votos, supostamente descarregados nas urnas por eleitores relacionados, por razões de sangue ou interesses económicos, com a nação espanhola. Essa decisão impediu a eleição da mais prestigiada figura intelectual e política do Algarve. 

domingo, 6 de setembro de 2020

Dízima da Pescaria na lota da Fuzeta em 1833

Miniatura da Real Efígie de D. Miguel I, ostentando o 
ceptro Real e a Coroa, depositada em honra de Nª Sª 
da Conceição de Vila Viçosa. Este tipo de iconografia
 real era geralmente usado pela fidalguia provinciana, 
mas também pelos ricos burgueses do comércio,
 pendurado ao pescoço em grosso fio de ouro.

Escasseia a informação sobre os rendimentos fiscais das instituições públicas, nomeadamente das relacionadas com as pescarias algarvias. 
Desde a reestruturação tributária mandada executar pelo Marquês de Pombal, que o rendimento dizimar da pesca no Algarve pertence ao foro das Alfândegas organizadas entre 1770 e 1773, de forma inteligente e fundamentada nas modernas técnicas da contabilidade, pelo superintendeste geral das alfandegas das três províncias do sul, José António de Oliveira Damásio, que desempenhava em simultâneo as funções de inspector das portagens e marinhas, conservador da Companhia das Reais Pescarias, presidente e relator da Real Junta dos foros e censos e juros do Reino do Algarve.[1]
Por isso é que trazemos agora a público a notícia de em 1833 o Superintendente das Alfândegas do Algarve, ter levado à praça a almoeda da dízima das Pescarias da Fuzeta, para ser arrematada pelo lanço mais elevado. Ora, no primeiro leilão público parece que um tal José Pires ofereceu 170 mil réis anuais, ficando por isso detentor da exploração do dízimo sobre as pescarias locais. 
Todavia, dessa arrematação recorreu para as instâncias superiores, uma tal Chatarina Josefa, que na sua qualidade de anterior arrendatária fiscal, ofereceu 200 mil réis. Ainda que esta oferta tenha sido apresentada já fora do prazo legal, entendeu o Superintendente das Alfândegas do Algarve que, a bem do interesse público, deveria dar satisfação à pretensão da anterior arrendatária, exarando por isso um parecer favorável com data de 3-2-1833.
Alfinete de lapela, da Real Efígie de D. Miguel. Repare-se
 na forma tosca do desenho, pintado sobre papel fino,
 que dá a ideia da preocupação iconográfica da época.
Apesar do seu aspecto, tosco e popular, trata-se de uma
 jóia já que o alfinete é de prata, debruado com 16 pérolas
 sobre uma espécie de coração em ouro, com seis pequenos
diamantes. A sua dimensão é de 1,7 cm, e tem de peso apenas 1,6 gramas.

Esta decisão demonstra a inexistência de um Estado de Direito e serve para ilustrar a forma arbitrária como os miguelistas governavam. Reverteram uma decisão legal, em face das urgências financeiras da Coroa. Mas a razão foi outra: a Catharina Josefa era fiel apoiante da usurpação miguelista na aldeia piscatória da Fuzeta, daquelas que em público ostentava com orgulho, junto ao peito, a Real Efígie de D. Miguel.

__________________________
[1] ANTT, Ministério do Reino, Maço 608. Este maço é praticamente constituído por documentação respeitante à administração pombalina no Algarve. Nele encontrei também muitos documentos do século XVII relativos ao Algarve, por exemplo, vários acórdãos e assentos de rendas do cónego D. Francisco Barreto, que herdou foros e censos do seu tio e homónimo que foi Bispo do Algarve. De grande interesse é também o inventário dos bens pessoais do bispo D. Francisco Barreto, datado de 4-9-1671.
Neste mesmo maço 608 encontrei também um importante processo de inquirição relativo aos bens de José António de Sousa Pereira.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Alfandegas de Portimão e Lagos em 1765

Belíssima aguarela da autoria de Joseph Constantine
 Stadler (1780–1822), alemão que viveu em Inglaterra,
 publicada na obra de George Landman,
Historical
 Military, and Picturesque, Observations on Portugal
.

Encontrei há anos, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, um belíssimo livro manuscrito do século XVIII, encadernado em veludo vermelho com gravação a das armas reais em ferro quente, inseridas no centro das pastas. É uma fonte de primordial importância para o estudo das alfândegas de Portimão e de Lagos, por nela se conter a transcrição, em caligrafia pombalina, muito limpa e facilmente legível, dos principais documentos que estiveram na origem da reestruturação fiscal das alfândegas do sul.
Essa fonte manuscrita está classificada na secção do Ministério do Reino com a seguinte referência de busca:
Gravura do séc. XVII representativa da cidade de Lagos,
cercada pela sua antiga muralha
.
«Provimentos e Providencias que em falta de Regimento que fez e deixou o Desembargador Antão Bravo de Sousa Castello Branco na Alfandega de Villa Nova de Portimão para o governo interino da mesma. Anno de 1765». 
O livro respeitante à alfândega de Portimão foi fotocopiado e presumo que existe um microfilme de todo o seu conteúdo. Mas, o livro da alfândega de Lagos não estava mexido, e julgo que nunca se fez uma cópia de trabalho que permitisse evitar o seu desgaste pela consulta pública. Acho que o Arquivo Distrital de Faro deveria pedir à Torre do Tombo a digitalização destas fontes de suprema importância para o estudo da época pombalina no Algarve.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

A população do Algarve entre o Cabralismo e a Regeneração (1842-1852)


Ilustração sobre a «Maria da Fonte», revolta popular
contra os «Cabrais»,originou a guerra-civil da Patuleia.
No «Diário do Governo», de 29-3-1842, publicou-se em dois cadernos diferentes (pp. 481-487 e 493-503) uma estatística do número de fogos de todos os concelhos do continente e ilhas. É uma fonte de profícua consulta para o estudo da demografia, mas também para o conhecimento da geografia socioeconómica do nosso país.
Através dessas tabelas demográficas ficamos a saber que o Algarve tinha nesse ano, marcado pela ascensão política do Cabralismo ao poder, um total de 33071 fogos, o que admitindo uma ocupação média de 4 habitantes por fogo, temos uma população algarvia presumivelmente avaliada em 132.284 pessoas.
António Bernardo da Costa Cabral
(1803-1889), popularmente designado
 por Costa Cabral, foi deputado e Par do
 Reino, conselheiro de Estado, ministro
 da Justiça e ministro do Reino,
 presidente do Conselho de Ministros. 
Em 1847, o mesmo «Diário de Governo», nº 192, de 16-8-1847, publicou uma nova relação nacional dos fogos por concelho, através da qual se nota uma ligeira subida da população algarvia. Assim, para o Algarve mencionava-se um total de 34829 fogos, o que, usando a mesma taxa de ocupação por fogo, dá uma hipotética população total de 139.316 pessoas.
Em 1852, o número de fogos registados no Algarve foi de 38643, do que poderá resultar um total aproximado de 154.572 habitantes. A relação do número de fogos atribuídos a cada um dos concelhos algarvios encontra-se publicada no «Diário do Governo», nº 238 de 8-10-1856, a pp. 1459 e seguintes. Não vou agora destacar aqui qualquer concelho em especial, no entanto, em todas as relações demográficas ressalta o concelho de Loulé como o mais populoso do Algarve.
O crescimento populacional no Algarve, foi de aproximadamente doze mil habitantes, na década entre 1842 e 1852, período cronológico que medeia entre o Cabralismo e o início da Regeneração. O progresso demográfico não foi tão significativo quanto desejável por causa das contrariedades políticas que afectaram o desenvolvimento económico do país, nomeadamente a guerra-civil da Patuleia, entre 1846-47, que teve no Algarve um dos seus palcos estratégicos, já que aqui desembarcaram as tropas de Sá da Bandeira, cujo heroísmo militar foi decisivo para o desfecho desse funesto conflito, entre Cartistas e Setembristas.

domingo, 23 de agosto de 2020

O vento Levante na tradição algarvia


Quando na costa algarvia sopra um vento quente, seco e abrasivo, do quadrante nascente, tanto do lado de Espanha como de África, há quem sinta dores de cabeça, os agricultores queixam-se de prejuízos no pomar e na vinha, e, enfim, também há quem se lembre de certas tradições muito curiosas da cultura popular.
Assim, quando sopra o Levante o povo algarvio costuma dizer que não se deve tingir a palma, porque o vento altera as qualidades da tinta. Como sabemos a palma é uma matéria prima muito peculiar do Algarve, extraída pelas mãos delicadas das mulheres das folhas da palmeira anã, uma espécie autóctone desta região. Depois de uma cuidadosa secagem desfiava-se em tiras de fibra, após o que eram molhadas e envolvidas em panos a fim de se manterem húmidas e moldáveis nas mãos hábeis dos artesãos. Se as tiras da palma estivessem secas partiam-se e não se podiam entrelaçar na feitura da “baracinha” com que depois se faziam as seiras, as alcofas os capachos, e os balaios que se utilizavam no embalamento do figo, dos cereais e dos frutos secos, que encima dos burrinhos se levava aos mercados e feiras locais.
Quando soprasse o vento Norte é que se tingia a palma, porque as cores ficavam mais firmes e brilhantes. O vermelho era disso o exemplo máximo, porque só quando o vento soprava do quadrante Norte é que a tinta se agarrava fixamente à palma, e não desbotava, nem com a humidade nem com o sol.
Com a roupa sucedia o mesmo. Não se devia tingir roupas nem tecidos com o vento Levante, mas antes com o vento Norte, para que não houvesse falhas nem prejuízos.
A maioria dos médicos a trabalhar no Algarve constatava que quando o vento soprava do Levante, quase todos os doentes pioravam na sua saúde. É claro que isto resultava da insolação e da falta de meios de refrigeração das habitações, que no verão e com o vento Levante se transformavam em verdadeiras estufas, com temperaturas acima dos trinta graus centígrados. Hoje esse problema já não existe, mas no passado foi um grande problema para a saúde pública. Mas, no tempo em que os médicos, pela manhã, visitavam os doentes nas suas próprias residências, verificavam que todos apresentavam pioras, mais febricitantes e mais abatidos, sem qualquer razão que a ciência médica pudesse justificar. O aumento da temperatura da aragem diurna e a calidez nocturna, estariam certamente por detrás desse mal-estar geral dos doentes.
O sábio José Leite de Vasconcellos escreveu um brilhante artigo sobre os «Nome e epítetos dos ventos» compilado nos seus Opúsculos, vol. III, p. 476 e seguintes, fala de tudo menos do nosso vento Levante.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Superstições algarvias e ditos populares


Há certas expressões de uso popular que estão directamente relacionados com o sentimento
supersticioso do nosso povo. Uma das expressões mais curiosas da tradição etnográfica algarvia, embora já caída em desuso, é a de «pôr o pé no meio alqueire». Não conhecia a sua justificação, mas sei que na serra algarvia era de uso comum. Recentemente, na freguesia de Alte, tive a oportunidade de falar com uma idosa aldeã que me explicou a sua origem e fundamento. 
Assim, embora não se saiba ao certo quando essa expressão teve início é possível que remonte ao tempo manuelino, quando o trigo constituía a base alimentar do povo e a principal riqueza dos agricultores. O alqueire era a medida mais comum nas transacções do mercado interno, para abastecimento dos celeiros concelhios. Mas também era a medida usada nas vendas externas, nomeadamente nas nossas exportações para o Brasil. 
Os recém-casados, para terem abundância no lar, deviam na noite de núpcias usar como base de apoio uma medida de meio alqueire para subir para o leito conjugal. Daí que na linguagem popular dos serrenhos algarvios, «pôr o pé no meio alqueire» seja uma forma de dizer que um par de namorados vai finalmente casar. 
Entre as superstições algarvias menos conhecidas, merecem ser aqui lembrados dois exemplos, que julgo relacionados com as tradições criptojudaicas. Assim, dizia-se que quando alguém, estando doente, se sentisse recuperar as forças da convalescença, não deveria levantar-se do leito ao domingo, porque se o fizesse teria de certeza uma forte recaída. O
Estandarte do Tribunal
do Santo Ofício
domingo era um dia sagrado para os cristãos, mas sem importância para os judeus, razão pela qual julgo que se espalhou esta alegada superstição, que mais parece uma advertência aos judeus para evitarem a atenção dos esbirros da Inquisição. 
Outra superstição algarvia, mas que me parece de uso generalizado nas localidades onde houvesse judiarias, era de não se vestir roupa lavada ao sábado, porque isso era o que faziam os judeus quando celebravam o “Shabat”. Aliás essa palavra hebraica, Shabat, da qual deriva o nosso sábado, quer dizer dia de descanso ou da inactividade. Precisamente o que para nós cristãos significa o Domingo. Por isso, vestir roupa lavada era quase uma obrigação para os cristãos ao domingo, por ser o dia destinado à santa missa e ao descanso dos crentes. Mas, se alguém vestisse roupa lavada ao sábado estava a auto-declarar-se como amante da fé hebraica.

Religiosos da Ordem de Santo António de Lagos instigadores de motins anti-liberais


Em maio de 1834, estava já o Algarve sob o controlo e domínio dos liberais, que em 24 de Junho de 1833 aqui desembarcaram as suas tropas, comandadas pelo Duque da Terceira, e em Sagres, numa heróica batalha naval, destroçaram e aprisionaram a armada miguelista, cuja causa política e apoio militar sofreu um colossal revés, que desembocaria na Convenção de Évoramonte e no exílio de D. Miguel, pondo termo ao absolutismo em Portugal. 
Igreja de Stº António em Lagos
Mas, dizia que em maio de 1834 os religiosos do Convento de Santo António de Lagos foram alvo de busca e detenção sob a acusação de incentivarem o povo a pegar em armas e a amotinarem-se nas ruas contra as novas autoridades civis, instituídas pelos liberais logo após a vitoriosa invasão do Algarve. Na verdade, apenas dois frades seriam acusados do crime de instigação à rebeldia e à sedição popular armada, contra o regime constitucional as autoridades instituídas, sendo por isso detidos para serem submetidos a julgamento. É curioso notar que foram detidos por ordem do Governador da praça militar de Lagos, mas como o julgamento teria de ser civil foram enviados à guarda do Prefeito da Estremadura, uma autoridade semelhante à dos nossos já extintos governadores civis. 
O Corregedor da Comarca de Lagos assim o participa ao Ministro dos Negócios Eclesiástico e da Justiça, através do seguinte ofício: 
Interior da Igreja e convento de Stº António, cujas
instalações est
ão ocupadas pelo Museu de Lagos
«Illmº e Exmº Snr – Participo a V. Exª que se achão prezos na Cadeia desta Cidade os Religiosos da Ordem de Stº Antonio – Frei Jronimo da Vedigueira, e o Leigo Fr. João d’Elvas. Estes homens foram mandados prender pelo Governador desta Praça e vão a ser remettidos ao Prefeito da Estremadura, pois me dis o ditto Governador ter ordem para isto mesmo. O que eu posso informar a V. Exª he que segundo as informações que tenho colhido são dois homens muito inimigos do Sagrado Codigo de Nossas Liberdades e de Nossa Augusta Rainha; amotinadores dos Povos, pregando-lhes agora mesmo doutrinas subversivas e induzindo-os a pegarem em armas; o leigo de mais a mais he hum dos grandes facinorosos e flagelador deste Paiz. 
Deos Guarde a V. Exª. Lagos 5 de Maio de 1834. 
Min. Sec. N. E. Justiça – O Corregedor da Commarca, José Manuel Baptista Caldeira».[1]

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[1] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, secção do Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Maço 616, n.º 9, caixa 774.

sábado, 15 de agosto de 2020

Capitão Palermo, das ordenanças de Loulé, julgado por embriaguez


A família Palermo era uma das mais distintas na vila de Loulé no século XIX. A sua origem era certamente italiana, mas quando chegou a terras lusas vinha importada da vizinha Espanha. Um dos seus descendentes, Cláudio Francisco Palermo, era um homem de posses que gozava do prestígio social que os bens de fortuna lhe conferiam.Por isso, quando houve que eleger entre as famílias nobres da vila um capitão para a Companhia de Ordenanças de Loulé, escolheram o Cláudio Palermo que com o decorrer dos anos acabou por desiludir os que nele depositavam a maior confiança para o exercício das funções de defesa dos habitantes da vila, face a um cataclismo natural ou a um ataque militar. Não sei a razão que levou o respeitado capitão Palermo a descurar as suas obrigações, e a refugiar-se no álcool, talvez na aguardente ou “bebidas espirituosas”, enveredando pelo caminho da embriaguez, que lhe arruinou a saúde, a carreira militar e o crédito social. Acabou por ir parar a tribunal militar sob a acusação de desleixo e negligência das funções que lhe foram conferidas.
Panorâmica da vila de Loulé nos finais do século XIX, vendo-se a muralha do castelo e a torre da Matriz
Felizmente, os juízes do tribunal militar, em sessão de julgamento realizada a 11 de Agosto de 1827, acabariam por absolver o capitão Palermo das acusações de relaxe, desalinho por embriaguez e incúria, no exercício das funções inerentes ao comando da Companhia de Ordenanças de Loulé.
Os jornais da capital, nomeadamente a «Gazeta Constitucional», órgão do governo, na sua edição nº 33 de 22-9-1827, publicou o desfecho deste caso através da notícia que extratamos para a posteridade:
LOULÉ - Ponte medieval no Pego dos Cavalos
«Claudio Francisco Palermo, capitão da 5ª companhia do terço das Ordenanças de Loulé, foi accuzado de ter huma desordenada vida pelo mao uzo de bebidas espirituosas, que o reduz a huma embriaguez effectiva, de que tem sido por vezes advertido pelo seo coronel, e corrigido até com prizão; e absolvido por sentença do conselho de guerra regimental, que o de justiça confirmou, em vista das suas respostas, e defeza, e a não ser accuzado de falta alguma de serviço, e por isso não compreendido em algum dos artigos de guerra.»
A solidariedade militar, neste caso, funcionou bem e o capitão Palermo foi absolvido de todas as acusações, principalmente da sua embriaguez crónica.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Atestado de fidelidade miguelista


Nos primeiros meses da usurpação miguelista, durante o ano de 1828, houve uma espécie de febre nacional, muito incentivada pela propaganda, de adesão ao regime absolutista. Na «Gazeta de Lisboa», órgão oficial do governo, publicavam-se diariamente dezenas de listas provenientes de toda a parte do país, com nomes de homens e mulheres que pediam a sua Majestade lhes concedesse autorização para ostentarem – os homens nas lapelas da casaca e as mulheres no colo dos seus vestidos de seda – a «Real Efígie de D. Miguel», uma medalha que se vendia em grande sortido (ouro, prata, cobre, e latão policromado) nas ourivesarias e outros estabelecimentos reconhecidos pela Casa Real. 
Real Efígie de D. Miguel, grau ouro
Nunca houve um período como este, de autêntica histeria nacional pela figura política do infante D. Miguel, que em si representava o realismo tradicional, na sua acepção mais conservadora e autocrática. Essa imagem, esse estereótipo do rei amado e desejado pelo povo, foi muito bem explorada pelos áulicos do absolutismo, para espalharem interna e externamente a ideia de um povo amante do Trono e do Altar, uma expressão reveladora da coesão entre o regime e a igreja católica. Outra das mensagens mais divulgadas era a dos «inauferíveis direitos de D. Miguel» ao trono do seu augusto pai, D. João VI, visto que o seu primogénito, D. Pedro, se havia auto-proclamado imperador do Brasil, retirando ao império português a sua mais valiosa jóia colonial. Com esse gesto de rebeldia perdera o direito à herança do trono luso. 
O receio de uma coroa dualista ultrapassado com a abdicação do sucessor legítimo, D. Pedro, na pessoa de sua filha, D. Maria II, criou um conflito de interesses que degenerou num imbróglio político conhecido como a «Questão Portuguesa». Não é essa, porém, a questão que agora nos traz a esta tribuna, pois que a sua abordagem nos levaria mais longe do que o desejado. 
Por agora, o nosso propósito consiste na elaboração de um breve apontamento sobre o refinamento do regime absolutista, que perante a avassaladora onda de adesão de apaniguados, começou a temer o sucesso da sua própria propaganda. Tornou-se então necessário alardear a ideia de que só eram genuinamente portugueses os que provassem ser miguelistas, isto é, realistas católicos e antimaçónicos. 
Real Efígie de D. Miguel, grau ouro, verso
Assim, para obstar ao perigo da penetração interna de pessoas indesejadas pelas suas ideias políticas, passou a exigir-se aos servidores da causa pública uma espécie de atestado do seu próprio fanatismo. Para isso, o governo pediu às autoridades municipais que – em vez das intermináveis listas de homens e mulheres, de famílias e instituições, a pedirem a bênção real para exibirem a “Real Efígie” – aferissem e garantissem, através de documento público, a fidelidade dos seus moradores à causa dos “inauferíveis direitos” de D. Miguel ao trono pátrio. 
Foi então elaborado pela Coroa um documento oficial, para ser distribuído impresso pelas câmaras municipais, com espaço em branco para ser devidamente firmado, não só pelas autoridades como sobretudo pelos aderentes. Significa que esta espécie de atestado de fidelidade comprometia as autoridades locais a serem mais selectivas e cuidadosas na escolha das pessoas que poderiam assinar esses certificados de lealdade. Talvez por isso é que estes atestados de fidelidade miguelista e de puridade antimaçónica não tiveram tanto sucesso quanto seria espectável, porque raros foram os que se deram a público nas páginas da ‘«Gazeta de Lisboa» com a identidade dos seus subscritores. A maior parte dos exemplos reportam-se aos elencos camarários, a alguns funcionários e procuradores das instituições representadas na autarquia. 
Para os mais curiosos, sobretudo para os interessados na matéria, aqui deixamos transcrita apenas a parte inicial do referido documento de atestação de fidelidade ao trono e ao altar: 
«Nós os abaixo assignados Nobreza, Clero e Povo, attestamos que… [espaço em branco para os subscritores] … suas demonstraçoens d’Amor a Augusta e Real Caza de Bragança e por consequencia ao Serenissimo Senhor Dom Miguel ….[espaço em branco] … sempre conhecido oposto aos Inimigos do Altar e do Trono, e a sua detestação e horror a essas tenebrosas e occultas Associacoens aonde em Silencio se aluem os alicerces do mesmo Altar e Trono». 
Este tipo de palavreado introduzia o pedido de fidelidade ao regime absolutista, num atestado subscrito por vários cidadãos para comprovar ou afiançar a dedicação e submissão ao regime absolutista. 

terça-feira, 11 de agosto de 2020

A guerrilha do Remexido recebia ajuda de Espanha

O correio assistente de Vila Real de Santo António – na conformidade do despacho ministerial de 21-2-1838, no qual exigia que os funcionários «participem as ocorrências que houver nos seus districtos» relativas à situação das facções Carlistas na fronteira espanhola – enviou ao Subinspector dos Correios uma carta a relatar o clima político que se vivia na foz do Guadiana. Por sua vez, o subinspector resumiu as informações recebidas e remeteu-as ao ministro Sá da Bandeira nos seguintes termos: 
Trinidad Nieto Carlier. Ayamonte, 1880
«O Correio Assistente de Villa Real de Santo António (…) me convencia por participações Officiaes vindas de Genova se sabe em Ayamonte que naquele Porto embarcarão 3600 armas para serem introduzidas nas costas do Algarvecom destino para o Remechido; sendo o maior numero dellas para Hespanha; e que contra o seu desembarque já estavão tomadas as devidas providencias».[1]
Estas informações prestadas pelo correio assistente de Vila Real de Santo António, durante o período de vigência do governo Setembrvista, aceleraram a decisão de acabar de vez com as guerrilhas do sul. É claro que a sobreviência do miguelismo, na pessoa do Remexido, e os seus constantes ataques às aldeias e vilas da serra algarvia e interior alentejano, causavam um certo desconforto ao governo, derivado das críticas que a oposição cartista, conservadora e tradicionalista, apresentava em sede parlamentar. Os setembristas, que sustentavam ideias progressistas e tinham um projecto reformista muito mais abrangente do que os cartistas de Palmela e do Duque da Terceira (vencedores e principais caudilhos da guerra-civil), adiaram as suas decisões de extermínio da guerrilha por falta de financiamento para sustentar uma força de combate no sul do país, suficientemente numerosa e bem equipada, capaz de vencer as guerrilhas miguelistas. Por isso recorreu do estratagema de lançar um empréstimo público, no valor de 25 contos de réis, cuja subscrição seria integralmente satisfeita pelos principais proprietários e empresários sediados no distrito, conforme atesta o próprio governador civil de Faro: 
Vila Real de Stº António, Porto Comercial
vendo-se à direito a silhueta de Ayamonte
«Em 28 [de Janeiro de 1838] ordenou o Chefe Superior, que se convocasse hum Conselho das Authoridades e Capitalistas desta Cidade e Districto para deliberarem sobre o modo de realizar por meio de hum emprestimo, a quantia de 25.000$000 rs. para o pagamento das tropas, cujo resultado tive a honra de comunicar a V. Excª em o meu Officio nº 53 de 3 de Fevereiro corrente. Eis aqui qual o uso dos poderes extraordinarios conferidos pela citada Ley aos Delegados do Governo de S.M. neste Districto Administrativo em todo o periodo acima marcado».[2]
Remexido, numa gravura da época
Julgo que a principal razão desta decisão, tão célere quanto radical, para acabar com as guerrilhas do Remexido, vem na razão directa da informação prestada pelo correio assistente de Vila Real de Santo António, dando conta de que se encontrava no porto fronteiriço de Ayamonte um grande número de armas, parte das quais, cerca de 3600, destinadas às guerrilhas miguelistas, e o restante para equipamento dos rebeldes cartistas espanhóis que se acoitavam junto à fronteira. A proveniência das armas, vindas do porto de Génova, prende-se com o exílio de D. Miguel e com os seus financiadores internacionais, cujo fulcro diplomático se encontrava sediado naquela cidade italiana. 
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[1] Arquivo Histórico dos CTT, Documentos do Correio Geral, 1838, vol. I, fols. 189. 

[2] Arquivo Distrital de Faro, Governo Civil, Livro da Correspondência com os Ministros, 1838-1839, cota 355-A, registo n.º 73, fl. 31 v.º

sábado, 25 de julho de 2020

LEAL, Agostinho Ferreira Chaves


Proprietário e político, nasceu em Faro, em 1855, e nesta cidade viria a falecer a 15-11-1921, com 66 anos de idade, acometido por uma síncope cardíaca quando dirigia trabalhos agrícolas numa das suas propriedades nos subúrbios da cidade.
Foi uma das figuras de maior prestígio da sociedade farense do princípio do século XX, não só pelos seus avultadíssimos meios de fortuna como também pelo exercício de diversos cargos políticos e de administração pública.
Estudou em Faro e depois na Universidade de Coimbra, onde ainda concluiu o 1.º ano de Direito, pertencendo a um dos mais famosos cursos daquele tempo, no qual pontificavam figuras como Guerra Junqueiro, João Penha, Gonçalves Crespo, etc. Aliás foi um dos mais íntimos amigos de Gonçalves Crespo e de Carlos Relvas, dos quais guardava gratas recordações de boémia e estúrdia política.
Desempenhou no Algarve diversos cargos políticos e de administração pública, nomeadamente o de Governador Civil substituto, vereador da Câmara Municipal de Faro, juiz substituto, membro da Junta Geral do Distrito, etc.
Acima de tudo foi uma figura de grande prestígio social, com uma integridade moral e cívica a toda a prova, a que acrescia o seu bondosíssimo carácter. Os seus avultados meios de fortuna permitiam-lhe zelar pela caridade e amenizar a infelicidade de muitos dos seus concidadãos.
Foi casado com Gertrudes Avelina Palermo Leal, oriunda das mais nobres famílias de Faro e era pai de João Chaves Leal, que foi um dos mais ricos proprietários do Algarve

domingo, 21 de junho de 2020

CLEMENTINA, Maria

A actriz algarvia Maria Clementina
Actriz de teatro, Maria Clementina Borges de Sá, de seu nome completo, nasceu em Faro a 28-1-1897, e faleceu em Lisboa nos últimos dias de Dezembro de 1947, com 50 anos de idade. Era filha de D. Clementina Rato Borges de Sá e de João Bernardino Cardoso Sequeira Borges de Sá, que foi oficial do exército. Era, também, sobrinha-neta de Duarte de Sá, notável figura de intelectual e homem das artes, que foi o primeiro director do Conservatório de Lisboa.
Depois dos estudos primários frequentou a Escola de Arte de Representar, onde se distinguiu quase de imediato pelas suas qualidades para o canto, desenvolvendo muito as suas naturais aptidões com D. Eugénia Mantelli de quem foi dileta discípula.
As artes do palco, sobretudo o teatro, atraíam a sua curiosidade e natural ambição de sentir na alma os aplausos do público. Estreou-se então a 17-11-1919, no Teatro da Trindade, numa opereta, ou teatro musicado, muito na moda nesse tempo, intitulada «A Bela Risette», integrada na famosa companhia de Afonso Taveira.
Pouco depois integrou-se na companhia de Luz Veloso, que tinha como palco o famoso «Chiado Terrasse» (onde, a 18-12-1921, se realizou o célebre «Comício dos Novos», com Almada Negreiros a proclamar o Futurismo contra os modelos dominantes da arte), estreando-se no teatro declamado. Curiosamente tonou-se pouco depois em escriturada de Nascimento Fernandes, distinto artista algarvio e um dos mais prestigiados nos proscénios portugueses.
Estúdios da «Invicta Film», no Porto, pioneira do cinema luso
Quando se constituiu a «Companhia de Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro» entrou para o seu elenco, nele se mantendo até ao precoce cair do pano no teatro da sua vida. Na culminância da sua carreira artística passou ainda pelo Teatro Nacional D. Maria II, onde alcançou a simpatia da crítica, e também do público, sem, todavia, ter conseguido atingir o patamar a que outras divas do palco lograram ascender.
Não quis o destino, infelizmente, que a sua carreira fosse longa. Talvez por essa razão não tivesse tempo para provar o seu verdadeiro talento e lograr alcançar os grandes êxitos da ribalta. Pode dizer-se, sem melindrar a sua memória, que embora Maria Clementina fosse uma artista bastante popular, faltou-lhe, porém, o sucesso estrondoso, a endeusante fama e a paixão do público, para se tornar numa diva da Arte de Talma. Em todo o caso, a sua carreira fez-se de forma ascensional, com a crítica a render-lhe rasgados elogios e até, por vezes, a render-se ao seu talento. As suas preferências interpretativas incidiam nas figuras de recorte cómico, caricaturando de forma maliciosa, histriónica e satírica certos estereótipos da sociedade portuguesa
Georges Pallu, realizador francês da Invicta Film
grande impulsionador do cinema português
Maria Clementina foi acima de tudo uma actriz do teatro cómico, distinguindo-se em várias comédias (talvez o género mais do agrado nacional) com figuras da sua própria concepção, representando quadros de um memorável humor, entre o brejeirismo popular e o sardónico afrancesado. Para isso valia-se da sua inteligência, perspicácia e esmerada educação literária. A sua invejável cultura geral, associada aos dotes de criação literária, levaram-na para os caminhos da escrita, preparando por vezes com os colegas os textos de peças cómicas, revistas e quadros hilariantes que integrava, por vezes, em peças de cariz erudito ou de raiz clássica.
Talvez poucos saibam que Maria Clementina foi uma das actrizes pioneiras do cinema português, ainda no tempo do “mudo”, participando em dois filmes produzidos pela «Invicta Films», do Porto, e realizados pelo cineasta francês Georges Pallu, que foi o grande impulsionador da cinematografia portuguesa. A primeira fita é de 1922, e intitulava-se «O Destino»; a segunda é de 1925, e designava-se «A Tormenta». Devo acrescentar que o cineasta Georges Pallu foi contratado a 17-2-1918, pelo portuense Alfredo Nunes de Matos, dono da «Invicta Film», à célebre empresa cinematográfica «Pathé Frères» de Paris. Quando chegou a Portugal, a 12-3-1918, deu início ao cinema moderno, artístico e profissional, sem perder de vista as raízes históricas da cultura lusíada. Pode dizer-se que o Algarve ficou de algum modo ligado ao arranque da 7ª Arte no nosso país, já que o primeiro filme produzido, «Frei Bonifácio», foi escrito por Júlio Dantas, o mais célebre de todos os escritores algarvios do século XX.
Em 1924, o artista António Pinheiro, algarvio dos quatro costados, e leal amigo de Maria Clementina, realizou com a ajuda de Georges Pallu, que também escreveu o argumento e até participou como actor de uma fita, hoje totalmente ignorada, intitulada «Tinoco em Bolandas», na qual a Maria Clementina desempenhava a baronesa de Sandomil, um dos papéis principais.
Cena do filme «Tinoco em Bolandas», de António Pinheiro
Já no tempo do cinema sonoro, e no estertor da II Guerra Mundial, em 1945, quando o cinema luso estava em grande pujança, a cineasta Maria de Lurdes Dias Costa, que como atriz e locutora de rádio, usava o pseudónimo Bárbara Virgínia, convidou a Maria Clementina para um insignificante papel no filme «Três Dias Sem Deus», que não obteve a simpatia da crítica, nem do público. O argumento deste filme era uma adaptação da obra «Mundo Perdido», da autoria do algarvio adoptivo Gentil Marques, que conheci muito bem nos anos oitenta como grande impulsionador da imprensa turística no Algarve. A título de curiosidade se acrescenta que o filme, produzido como todos os anteriormente citados pela «Invicta Film», era do género drama, e chegou a ser exibido no Festival de Cannes, a 5-10-1946, sob o título de «Trois jours sans Dieu». A estreia no nosso país ocorreu 30 de A
gosto de 1946, mas não teve a adesão do público, e o sucesso tão aguardado resultaria em breve num inesperado fracasso.
Maria Clementina sendo aparentada, pelo lado paterno, com o Conde de Farrobo herdara-lhe os genes artísticos, que elevou até aos píncaros das suas possibilidades, com honra, rigor e competência profissional.
Descendente, pelo lado materno, de uma importante família de Lagos, era também sobrinha do tenente-coronel do Estado Maior do Exército Raul Frederico Rato e do Dr. Jerónimo Cabrita Rato, sendo prima do Dr. Afonso Eduardo Martins Zuquete, que foi Governador Civil de Leiria.

sábado, 20 de junho de 2020

CABRITA, Francisco Neto


Médico e autarca, nasceu em S. Bartolomeu de Messines, a 20-12-1899, onde também viria a falecer em 30-12-1949, com apenas 49 anos de idade. Era filho de D. Conceição Neto Cabrita e do abastado proprietário local Domingos Sequeira Cabrita, cujo espírito empreendedor lhe permitiu reunir significativos meios de fortuna.
Busto do Dr. Francisco Cabrita,
erigido frente ao Centro de Saúde
da freguesia de S. B. de Messines
Frequentou o Liceu de Faro e formou-se em Medicina, pela Universidade de Coimbra, em 15-12-1926, fixando-se logo a seguir como clínico na sua aldeia natal. Aqui desenvolveu o seu múnus clínico e aqui soube granjear vastíssimo prestígio entre a população local. O povo simples e carente, amava-o com absoluta sinceridade, a ponto de o cognominarem como “o pai dos pobres”. Este honroso epíteto, deveu-se não só ao exercício do seu múnus de forma gratuita, como ainda à forma como protegia os mais desfavorecidos, pagando os medicamentos do seu bolso e, não raras vezes, saldando as dívidas das famílias mais pobres nas mercearias locais. Naquela bonita terra, que também serviu de berço a João de Deus, o maior poeta algarvio de sempre, era o Dr. Francisco Cabrita a figura mais querida e popular, pela forma desinteressada com que serviu o bem comum, e muito particularmente pela forma altruísta como protegeu os mais carenciados.
No inicio da década de trinta, assistiu-se à consolidação do Estado Novo e à consagração de Salazar como Primeiro Ministro. O país mergulhou numa onda reorganizativa da vida social, com base na regulamentação legislativa das novas instituições. As Casas do Povo foram um exemplo flagrante do engajamento sociocultural das populações rurais. Imbuído desse espírito e fazendo parte dessa onda nacional, se posicionava o Dr. Francisco Cabrita que, em 1934, promoveu a criação da Casa do Povo de Messines, da qual seria logicamente o seu primeiro presidente.
Fervoroso adepto das ideias nacionalistas, tornou-se pela sua bondade e dedicação aos pobres, numa espécie de cacique local, razão pela qual assumiu, em 1935, e durante alguns anos, sem remuneração, a presidência da Câmara Municipal de Silves. Quando o ministro Duarte Pacheco pensou no incremento do turismo (que se encontrava desde 1933 sob a alçada do SPN - Secretariado da Propaganda Nacional), para cujo impulso inicial contou com a decisiva ajuda de António Ferro, avançou-se em todo o país, na esteira das Comemorações Centenárias de 1940, para a criação das comissões de iniciativa municipal de Arte e Turismo. Na zona litoral, em particular nas praias de maior potencial turístico, de que era paradigma emergente a Praia da Rocha, Quarteira e Monte Gordo, no Algarve, evolui-se para a criação local das Juntas de Turismo, tendo o Dr. Francisco Cabrita fundado e presidido à da Praia de Armação de Pêra, devendo-se à sua enérgica iniciativa a construção da Avenida Marginal, que ainda hoje é o local mais aprazível daquela estância turística.
Tratando-se de uma figura muito conhecida e respeitada em todo o Algarve, não admira que fosse convidado a aceitar o exercício, em simultâneo, das funções de médico da Casa do Povo, da Federação das Caixas de Previdência e da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. Na visita aos seus doentes deslocava-se a cavalo pelos campos adentro, munido dos apetrechos médicos, fazendo todo o tipo de assistência médica, desde partos a fraturas ósseas, de pequenas cirurgias até ao tratamento de tuberculosos em adiantado estado de doença. E raras foram as vezes em que perdeu um paciente. A tuberculose e as doenças infecto-contagiosas, sobretudo nas camadas infantis, eram na época um flagelo, a que o Dr. Cabrita deu o melhor do seu esforço, num combate permanente entre a vida e a morte.
Busto do Dr.Francisco Cabrita, autoria do escultor José Carlos
O pedestal, em grés de Silves, é um trabalho de Bruno Matos.
Por outro lado, em face das suas convicções políticas, de nacionalista e entusiasta admirador do Doutor Oliveira Salazar, tornou-se no comandante de lança da Legião Portuguesa no Algarve. Faço lembrar que o único benefício que usufruía desse cargo era o de figurar nos lugares cimeiros das celebrações políticas e religiosas, sobretudo nas procissões pascais. Embora a Legião fosse uma espécie de milícia militar, de pouco lhe serviria o Dr. Francisco Cabrita que não fora soldado nem sabia disparar uma arma.
A determinada altura sentiu-se doente e caiu no leito durante largos meses, num cruciante sofrimento de que resultaria a sua morte prematura. Uma doença cancerosa vitimou-o precocemente, numa altura em que acalentava realizar vários projectos locais, para o desenvolvimento da indústria na sua aldeia natal, e para a saúde pública no concelho de Silves.
Em face de todas as iniciativas que promoveu, quer como médico quer como político local, o Dr. Francisco Cabral era certamente a figura pública mais conhecida do barlavento algarvio, razão pela qual o seu funeral, com mais de seis mil pessoas presentes, foi uma das maiores manifestações de pesar alguma vez presenciadas no Algarve.
Era casado com D. Inácia Nobre Figueira Neto Cabrita e pai de Domingos Manuel Figueira Neto Cabrita.
Por decisão da Junta de Freguesia de S. Bartolomeu de Messines foi dado o seu nome à rua onde sempre viveu e faleceu.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

CAIRES, Luthgarda de

Poetisa, escritora e publicista, Luthgarda Guimarães de Caires, de seu nome completo, nasceu em Vila Real de St.º António, a 15-11-1871, e faleceu em Lisboa, a 30-3-1935, com 63 anos de idade.
Fez a escolaridade básica na sua terra-natal, mas o falecimento da mãe não lhe permitiu prosseguir os estudos. Casou-se muito jovem, mais por necessidade do que por amor, e teve uma filha, Clotilde, cuja morte prematura a deixou destroçada para o resto da vida. Partiu para Faro, onde também não foi muito feliz, seguindo depois para Lisboa. Na capital conheceu o advogado João de Caires, um homem fino, delicado e com razoáveis posses financeiras. Casaram, tiveram um filho e pode dizer-se que foram felizes. Pelo menos proporcionou à jovem Luthgarda os meios necessários para dar azo ao seu talento, podendo a partir de então dedicar-se em exclusivo ao culto de Orfeu. A música e as Belas Letras, eram notoriamente a sua verdadeira paixão.
Tocava razoavelmente bem alguns instrumentos de cordas, como harpa, cítara e violino. Mas era no piano e no órgão que se entretinha a compor as melodias para as quais escrevia os seus poemas. Não sendo cantora lírica, pois que para isso não recebera instrução, possuía, porém, uma voz de cristalino timbre que fazia as delícias do marido e do filho, seus principais admiradores. Mas a sua negra sina depressa lhe ensombrou mais esse pormenor de felicidade. Sentindo fortes dores de garganta, supostamente resultantes de pólipos nas cordas vocais, foi, por conselho médico, submetida a uma desastrosa intervenção cirúrgica, que a impediria de voltar a cantar. Esse triste episódio da sua vida retratou-o com pungente realismo no seu romance O Doutor Vampiro, publicado em 1921, no qual a classe médica e a sua vontade de explorar os doentes constituíam o centro da trama romanesca. A imprensa e a crítica especializada teceram-lhe rasgados elogios, concordando com a maioria das críticas endossadas aos clínicos, que de forma pouco correcta encaravam a medicina como um negócio.
Passou então a dedicar-se exclusivamente às letras e às obras de caridade, que aliás constituíram o lenitivo da sua vida. Creio que a sua estreia literária se terá efectuado por volta de 1905 nas colunas de vários jornais lisboetas, não se sabendo ao certo qual o primeiro, mas sei, com toda a certeza, que foram «O Século», e quase em simultâneo o «Diário de Notícias», os alvos preferenciais da sua prestimosa colaboração. Como desde logo revelasse um estilo de prosa muito fino e elegante, só ao alcance dos grandes escritores, tornou-se objecto de comentário nos meios intelectuais da época. Os jornais brasileiros, que então mantinham acesa cooperação intelectual com o nosso país, foram igualmente contemplados com a generosa colaboração dessa tão precoce quanto misteriosa musa das letras.
Como mulher culta e ilustrada, mostrou-se interessada pelos grandes temas sociais do seu tempo, nomeadamente pela luta sufragista e emancipadora das mulheres, nitidamente imbuída do espírito que moviam outras figuras notáveis, como Ana de Castro Osório ou a sua comprovinciana Maria Veleda. Sabendo, através das suas correspondentes francesas, mulheres instruídas e modernas, do que se estava a passar na pátria de Rousseau e Voltaire, decidiu escrever para os jornais portugueses e estrangeiros entusiásticos artigos a defender os direitos e os interesses femininos, desde há séculos depreciados e até vilipendiados por uma sociedade masculinizada, a que os poderes públicos e a própria constituição davam legitimidade e protecção legal. Aliás, no decorre da sua vida, iniciou nas colunas da imprensa lisboeta verdadeiras batalha cívicas contra o analfabetismo que assolava preferencialmente o sexo feminino; contra a falta de direitos das mulheres, que se agravavam quando adquiriam o estatuto de esposas, passando quase a ser encaradas como objectos ou bens de propriedade dos maridos; contra o desvalimento das mulheres solteiras, das viúvas e abandonadas; contra a falta de protecção das mães solteiras, que por falta de meios de subsistência se viam muitas vezes compelidas a enjeitar os filhos ou a condená-los à mendicidade.
Luthgarda, gravura de Manuel Cabanas
Apesar do seu nome ser muito conhecido e respeitado na imprensa da capital, sendo aliás apontado como sinónimo de mulher culta e intelectualizada, o certo é que só em 1910 faria a sua verdadeira estreia em livro, publicando uma compilação de versos intitulada Glicínias, que teve estrondoso acolhimento nos meios literários da especialidade. Animada pelo sucesso obtido e motivada pela implantação da República, publicou logo em seguida o poemeto A Bandeira Portuguesa, através do qual se colocava ao lado do poeta Guerra Junqueiro, defendendo de forma empolgada e entusiástica a conservação das cores azul e branca no pendão nacional. Isto deu uma certa polémica com Teófilo Braga, que sustentava o verde e vermelho para a nova bandeira republicana, o que aliás veio a prevalecer. Acresce esclarecer que Luthgarda de Caires nunca foi republicana, mas também nunca se imiscuiu em quaisquer campanhas a favor do regresso à monarquia. Tornou-se politicamente independente, nunca aplaudindo a política partidária que arruinaria o regime republicano. Manteve-se pela vida fora à parte da política, e nem mesmo a acalmia do Estado Novo a demoveu a mudar de opinião e muito menos a simpatizar com a ditadura.
Em 1911 publicou o seu primeiro volume de prosa, uma colectânea de contos intitulada Dança do Destino, igualmente muito bem recebida pela crítica. Mas no ano seguinte voltou à poesia, dando à estampa um novo livro, As Papoilas, mais romântico e pueril do que os anteriores. Em 1916 dedicou à mãe e à sua filha Clotilde, tão prematuramente falecida, uma bela obra de poesia a que deu o título de Sombras e Cinzas. Continuaria depois a publicar novos livros de versos, que tal como os anteriores foram sempre muito aplaudidos pela crítica, como foi o caso de Pombas Feridas, Nossa Senhoras de Lourdes, e O Vagabundo. Por fim, em 1922, publicou nova colectânea de perfumados versos, a que deu o sugestivo título de Violetas, e no qual se insere o poema “Florinha das Ruas”, com que Luthgarda havia recebido o 1.º prémio dos Jogos Florais de Ceuta. Esse poema, tornou-se aliás bastante popular, a ponto de raras serem as senhoras, e até as crianças das escolas, que não o soubessem declamar.
Vem a propósito lembrar que a Condessa de Ribas e Madalena Brion, duas ilustres senhoras da primeira sociedade lisboeta, sugestionadas pela ética social do poema, e sobretudo pela popularidade que o mesmo atingira nos meios mais carenciadas, decidiram fundar uma instituição para a protecção de meninas pobres, à qual deram precisamente a designação de «Florinha das Ruas». Esse estabelecimento, criado à imagem das suas beneméritas instituidoras, esteve sediada num prédio no Campo de Santana, em Lisboa, que o tempo se encarregou de arruinar, e de assim fazer esquecer tão importante fundação.
Em prosa publicou ainda A Lenda de Guiomar, Árvores Benditas, Águas Passadas... (novelas), e dois livros de contos para crianças, intitulados Cavalinho Branco e o Palácio das Três Estrelas.
Acima de tudo, Luthgarda de Caires deixou uma obra de incontestável valor literário, norteada pelos altos princípios morais que modelaram a sua vida como cidadã e como mulher. Porém o seu nome será para sempre lembrado pela sua grande dedicação a variadíssimas obras de caridade, tendo-se principalmente à protecção das crianças e ao acompanhamento moral e conforto social dos presos. Assim, não podemos esquecer que em 1914 foi ela quem promoveu o auxílio às crianças doentes no Hospital da Estefânia, em cujo seguimento criou em 1924 o Natal do Hospitais, com o apoio logístico e financeiro do «Diário de Notícias». Tudo começou quando, por sua iniciativa, o «Diário de Notícias» abriu uma subscrição para comprar brinquedos para as crianças doentes nos hospitais. Foi uma bola de neve, que anualmente crescia de sucesso, a tal ponto que os artistas de circo e do teatro infantil se disponibilizaram para ir aos hospitais confortar as crianças. A partir daí nunca mais parou de crescer esta brilhante iniciativa, que hoje é transmitida pela televisão para o país, e por cabo para o mundo inteiro.
Também pugnou na imprensa pela abolição do uso de capuz, e às vezes de máscara, a que obrigatoriamente estavam sujeitos os presos da penitenciária de Lisboa. Essa prática foi efectivamente abolida quando o Dr. Rodrigo Rodrigues dirigiu o referido estabelecimento penal, por concordar com as objecções tecidas na imprensa pela poetisa Luthgarda de Caires. Também viu satisfeitas as suas críticas tecidas às vexatórias grades que defendiam as janelas do Aljube, então destinado ao internamento das mulheres condenadas por crimes públicos. Parecia-lhe que seria suficiente reduzir para apenas uma, em vez de três, as grades com que se pretendia impedir a fuga das prisioneiras, o que só muito raramente havia acontecido.
Na imprensa nacional, Luthgarda de Caires colaborou assiduamente no «Diário de Notícias», «O Século», «A Capital», «Correio da Manhã», «Ecos da Avenida», nas revistas «Brasil e Portugal», «Enciclopédia do Lar», etc., etc...
Monumento erigido a Luthgarda de
Caires no Jardim de V.R.Stº António
 
No âmbito da imprensa algarvia, Luthgarda de Caires colaborou sobretudo em poesia, em «Districto de Faro» (1911), «O Heraldo» (1912), «Correio Teatral» (1923), «Correio do Sul» (1924) e «O Algarve», todos de Faro; «A Província do Algarve» (1914) de Tavira e a revista «Nossa Terra» fundada em Maio de 1931 em Vila Real de St.º António. Mas a b em dizer foi o «Correio do Sul» que após a morte de Luthgarda se tornou no principal divulgador da sua nobre actividade social em prol das crianças, assim como da sua talentosa obra poética.
Moderna estátua de Luthgarda de
 Caires, erigida no cais de VRSA 
A relevância da sua obra literária e da sua acção cívica em prol das crianças, justificaram que por parte do governo fosse condecorada com as comendas de Santiago e da Ordem da Benemerência. Curiosamente, foi o ditador Oliveira Salazar quem, em 1931, lhe atribuiu o Oficialato da Benemerência. Também no Brasil havia sido há muito homenageada com a medalha de prata, pela excelsa magnitude da sua obra literária, aquando das comemorações do Centenário da Independência, realizadas em 1922.
Em 20-5-1936, um ano após a sua morte, a autarquia vilarealense aprovou por unanimidade uma proposta apresentada pelo presidente Matias Sanches, na qual atribuiu o nome da poetisa sua conterrânea ao antigo Largo da Fonte, junto do qual se situava aliás a casa onde nascera. Mais tarde, em Abril de 1966, voltou a autarquia a homenagem a sua memória, descerrando um busto, da autoria do consagrado escultor Raul Xavier, na pequena praça que tem o seu nome.
Existe actualmente uma estátua a corpo inteiro na poetisa, num recanto do jardim que se estende ao longo da bela marginal do seu “Rio Encantado”, em Vila Real de Santo António.
Para terminar, devemos acrescentar que foi casada com o Dr. João de Caires e era mãe do distinto médico Dr. Álvaro Guimarães de Caires, que foi um notável investigador e crítico de arte.
Acima de tudo Luthgarda de Caires foi uma mulher de campanhas nacionais. E como já aqui dissemos ficará para sempre lembrada como a criadora do Natal dos Hospitais, que actualmente já não se confina a Lisboa mas a todo o país, continuando o «Diário de Notícias», tal como na sua origem, a promover aquela que foi, e continua a ser, a mais louvável das suas iniciativas.
Em resumo, a obra literária de Luthgarda de Caires compõe-se dos seguintes títulos: Glycinias, 1910; A bandeira portuguesa, 1910; Papoulas, 1912; A dança do destino, contos e narrativas, 1913; A revolta, da autoria de Nelly Roussel, adaptação em verso de Luthgarda de Caires, 1914; Sombras e cinzas, 1916, (2.ª ed. 195?) O Doutor Vampiro, romance, 1923 Violetas, 1925 O palácio das três estrelas, novela infantil, 1931.