terça-feira, 27 de outubro de 2009

A inocência dos justos no inferno de Camarate


José Carlos Vilhena Mesquita

Na história política do recém encerrado séculos vinte ocorreram, pelo menos, três crimes políticos que cobrem de opróbrio a nossa memória colectiva. Refiro-me aos assassinatos do rei D. Carlos, do general Humberto Delgado e do Primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro. Passarei em revista os dois primeiros, para estanciar depois no último, o mais próximo no tempo, e talvez o mais infamante de todos, visto que ainda permanece irresoluto.
Em primeiro lugar o assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro, Luís Filipe, perpetrado a 1-2-1908, no Terreiro do Paço, em Lisboa. Foi uma execução pública da mais hedionda barbaridade, que deixou o país envergonhado perante o mundo civilizado. Ainda hoje custa a acreditar como foi possível que se tivesse chegado a tamanho extremo e a tão vil procedimento. Não me recordo de ter ouvido falar num pedido de desculpas à Família Real por parte da República ou do Estado que a representa, nem muito menos da Maçonaria, como autora material do crime e como entidade política responsável por muitas outras atrocidades. Atente-se no bom exemplo da Igreja Católica, ao reconhecer que cometeu graves erros no passado, nomeadamente através da Inquisição, pelos quais teve a honradez e a dignidade de pedir perdão à Humanidade.
O segundo crime político, que aguilhoou as nossas consciências, ocorreu em 1965, quando a PIDE assassinou o general Humberto Delgado, na raia espanhola, próximo de Badajoz. No conceito internacional o país perdeu toda a credibilidade política, sobretudo no Reino Unido e nos EUA, dissipando-se a condescendência de que Salazar usufruíra durante décadas com o seu “fascismo de cátedra” – como lhe chamou Unamuno. Quando o regime caiu, em 25 Abril de 1974, o país exigiu que os culpados fossem julgados. E o certo é que os autores materiais desse hediondo crime foram acusados e condenados em tribunal.
Por fim, o crime que mais enxovalhou o país foi a morte, em 4-12-1980, do então Primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, juntamente com mais seis acompanhantes, entre eles o Ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa. Toda a gente percebeu nessa precisa noite que se tratou de um crime político. Porém, os seus camaradas da política entenderam que tudo não passou de um infeliz acidente. Perante a leitura dos relatórios exarados por peritos internacionais, pelas autoridades policiais e comissões de inquérito, que compulsaram provas e testemunhos indiciários de atentado bombista, parece incrível que durante todos estes anos os políticos se tivessem abroquelado por detrás da tese dum infeliz acidente. E a justiça passou ao lado da verdade.
O processo judicial prescreveu há cerca de três meses atrás. Veja-se o despudor com que se anunciou, urbi et orbi, que um caso de lesa história perdera o seu prazo de validade na justiça portuguesa. Isto é não só ridículo, como é, sobretudo, uma vergonha nacional. Significa tão-somente que a morte ou, mais presumivelmente, o assassinato de várias figuras públicas, sendo uma delas o chefe do poder executivo, tivesse passado impune aos olhos da justiça.
A verdade é unicamente esta: decorreram 26 anos sobre a trágica morte desses justos e inocentes portugueses, sem que nunca se lhes tivesse feito justiça, levando os culpados à barra dos tribunais. E não digam que não sabiam quem eram os autores do crime. Todas as provas indiciavam Sinan Lee Rodrigues e José Santos Esteves como autores materiais do atentado. Ainda há dias este último, que se tornou na figura pública do “Sô Zé”, declarou à revista «Focus» que fora o autor da bomba que matou Sá Carneiro. Mas como não convinha “desenterrar” o assunto, trataram logo de agitar o fantasma do “Apito Dourado” para desviarem a atenção da opinião pública. E o certo é que o caso foi imediatamente “abafado” para dar lugar aos mexericos duma Carolina, artista de alterne, que o país transformou na Maria Madalena do nosso pacóvio provincianismo. Depois do Zé Cabra, do Zé Maria, do Castelo Branco e das putativas figuras do alisbonado jet-set do parolismo nacional, eis que surge agora a celestial Carolina, cujo drama conjugal se tornou num best-seller e fez esgotar as edições da nossa imprensa, que, neste como noutros casos, se tem revelado cada vez mais acéfala, mercantil e sensacionalista.
Francisco Sá Carneiro foi, acima de tudo, um homem honrado, de superior inteligência e fortes convicções políticas, que as circunstâncias políticas e a injustiça dos homens transformariam num mártir da liberdade. Teve uma vida digna, que poderia ter sido longa e auspiciosa, mas que cessou abruptamente há vinte e seis anos atrás, numa fria noite de Dezembro. Entre a penumbra da traição política e a obscuridade duma vil emboscada, paira toda uma nação, ainda estupefacta e aturdida pela infamante interrogação da verdade. A infernal tese da inocência dos lobos na sanguífera noite de Camarate cobriu de opróbrio toda a geração política glorificada em Abril.
A sua mensagem ideológica e os valores éticos pelos quais tanto propugnou, foram em larga medida delidos pelo tempo, ou obliterados da memória nacional por aqueles que lhe sucederam. Foi inquestionavelmente um promissor político traiçoeiramente assassinado no vergonhoso inferno de Camarate.
Um povo pacífico, cordato e ordeiro, como o nosso, não pode rever-se no sangue derramado pelas vítimas inocentes do ominoso crime de Camarate.
O Governo e a Assembleia da República, já que não estão na disposição de levantarem a prescrição do caso Camarate, deveriam pedir publicamente desculpa aos descendentes das vítimas, por terem deixado impunes os algozes daqueles que morreram como justos ao serviço do governo e do Estado português. Enquanto isto não se fizer, cobrir-nos-emos todos de vergonha perante a memória das vítimas.
Enquanto não se dirimir a verdade e não se apontarem os algozes, continuaremos a pronunciar hosanas à glorífica liberdade conquistada ao sol de Abril, mas eclipsada e conspurcada pela occisiva noite de Camarate. A democracia portuguesa jamais conseguirá lavar o rosto angélico da sagrada liberdade com as lágrimas dos seus gloriosos mártires, porque na fímbria do seu divino manto se esconde o sangue dos inocentes, imolados no ominoso covil de Camarate. Somos um país de fatalismos e de brumas sebastiânicas, aguardando expectantemente – não o messiânico salvador, mas tão só a natural e humana justiça, que tarda... mas não deveria faltar.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Aquilo que verdadeiramente entra no livro de António Manuel Venda

A primeira questão que se sobrepôs à leitura deste livro de António Manuel Venda, foi precisamente a mais elementar, isto é, a de saber se efectivamente estava, ou não, perante um romance na verdadeira acepção da palavra, e do teórico conceito que lhe é inerente. O trago de dúvida com que fiquei no final da sua leitura obriga-me a definir os termos e os conceitos em que me exprimo. Um pouco à laia de Voltaire, urge pois aclarar os conceitos com que nos expressamos para que a sintonia das palavras não se disperse na confusão ou no calor da discussão.
Comecemos por definir a palavra Romance, para perceber sem mais delongas aquilo que traduz o seu conceito. A palavra, na sua nudez original, deriva do étimo latino romanice, do qual descende romanicus, que significa, em latim popular, uma narrativa, verdadeira ou imaginária, escrita em prosa ou verso, repartida por cenas, quadros ou capítulos, pejados de pormenores e longas descrições, cuja acção se desenrola através de várias personagens, de entre as quais só algumas assumem o protagonismo de se tornarem no centro da diegese. Isto no que concerne à palavra.
Porém, no que incumbe ao conceito de romance, importa dizer que só muito tardiamente é que o mesmo foi equacionado, numa perspectiva mais simples, mais sintetizada, mas não menos abrangente. Com efeito, só no declinar do séculos XVIII é que se definiu o romance como “uma narração em prosa de uma acção fictícia que tem por quadro a pintura de costumes”. Dito desta forma não há nada mais simples, nem menos directo. E sendo assim, a obra O que entra nos livros, de António Manuel Venda, integra-se inquestionavelmente, tanto no conceito como na palavra, na correcta designação de romance. Não unicamente de “costumes” - porque isso está fora de moda e qualquer dia nem existe – mas de um maravilhoso fantástico, a que mais adiante nos referiremos com relativa acuidade.

Ao longo da História da Literatura Portuguesa publicaram-se diversos tipos de romances: históricos (Romantismo); sócio-moralistas (Naturalismo), ético-científicos (Realismo); político-revolucionários (Neorealismo); anti-dogmáticos e universalistas (Modernismo) psico-surrealistas (Pós-Modernismo), e outros que nem sei até como qualificá-los. Em todos estes modelos de criação ficionista o que está em causa são os costumes das sociedades humanas no tempo e no espaço, numa espécie de simbiose, ou de intercepção espacial, entre a História e a Sociologia.
Ora acontece que este romance, O que Entra nos Livros, afasta-se de todos estes modelos classificativos, ou de todas os movimentos literários que acabei de enunciar sumariamente, muito embora o seu discurso narrativo se integre naquilo a que chamo o “modernismo milenarista”. Isto é, na tentativa de criação artística através do pictorismo ficcionista da palavra, ascendendo a patamares supra-fantasistas, que rapidamente se transformam numa diegese fantástica, surreal, imateral e anti-ascética. Nada de novo, diríamos, se com isso não se cortassem definitiva e diametralmente os cânones da ficção dominante. O paradigma romancista, na sua feição soberana e imperante, preocupa-se com a construção de grandes quadros sociais, ao longo dos quais o autor vai fazendo uma descrição evolutiva dos interesses percepcionais e dos seus consequentes jogos de poder, assim como das virtudes e defeitos dos protagonistas, dos assimilados ou dos desintegrados numa sociedade enquistada nos defeituosos costumes do individualismo social. O romancista torna-se assim num crítico e num psicanalista da sociedade, no que isso tem de mais contraditório e de paradoxal, usando geralmente o amor e as relações laborais nas suas conexões e correspondências com as intrigas que vulcanizam os diversos poderes em que se reparte a vida real. O romancista é, em suma, um ficcionista do real.
No caso presente, a natural bonomia de António Manuel Venda, a sua candura bucólica, a sua inocência e pureza de carácter, insuflada dum certo torpor algarviista, influenciou decisivamente a sua inspiração e consequente criação artístico-literária, visivelmente enraizada nos telúricos vergéis da sua saudável Monchique, onde os romanos procuravam a cura para os seus achaques através do princípio natural da água, ou seja, o termalismo, modernamente designado por SPA, sigla romana que se traduz por “salute per aqua”.
Neste livro, como aliás, em quase todos os outros da sua lavra, a terra-natal, o Algarve e a peneplanície alentejana, que lhe serve hoje de residência e de ninho conjugal, estão presentes com uma insistente acuidade, e até por vezes com inusitado protagonismo . O mesmo acontece com as reminiscência da sua infância e juventude, aqui e ali afloradas, num contrastante quadro dos sentidos, entre a fresca e verdejante montanha e as estivais praias do barlavento algarvio. Essa enriquecedora vivência, a que certamente se conjugaria uma marcante e muito atenta convivência social, serviu-lhe, e provavelmente ainda lhe servirá, para povoar de vida os seus romances, os seus contos e novelas, cujo inquestionável talento, e insofismável sucesso literário, enobrece hoje não só a literatura portuguesa como, muito particularmente, o seu e nosso Algarve.
Relativamente ao estilo, à concepção narrativa deste livro, direi que impera na estruturalização dos seus capítulos uma insistente, e consistente, preocupação realista da envolvente descritiva, através do recurso ao enquadramento paisagístico em que decorre a diegese. A descrição das aves e animais que abundam no montado onde reside, dos pormenores sobre a flora alentejana e sobre o parco coberto florestal, a contrastar com a sua Monchique originária, é uma constante neste romance. A descrição das estradas por onde circula, com as alarmantes brigadas de transito (que por insistência descritiva acabam por o interceptar quase no final do livro), assim como as pessoas que na berma da estrada, nos largos e jardins das aldeias, aguardam serenamente o decurso dos seus dias, numa entediante monotonia. Apesar de aqui e ali depararmos com uma certa acintosidade crítica, contra a ditadura salazarista, mas também contra os políticos actuais, a que não escapam os autarcas, o certo é que a acção do romance decorre de forma lenta e parcimoniosa, à imagem do clima mental, mas também socioeconómico, que se vive nas terras sulinas. Apesar dessa aparente lentidão, desse torpor ao Sul, a minha atenção de leitor (ainda que pouco disponível para a ficção literária), não se conseguiu despegar das páginas que se iam sucedendo, envoltas no crescente mistério da fantasia que paira por detrás das palavras.
O autor, na sua prodigiosa imaginação, assume-se, quase despudoradamente, como personagem principal, como confidente do leitor, e por vezes como um cavaqueador tertuliano, do qual não nos podemos divorciar. Num estilo pós-moderno, o António Manuel Venda encanta-nos com a fantasia dum “mágico velhinho”, figura levemente fantástica, duma bonomia desarmante e quase infantil, muito invulgar por causa dessa inofensividade, contrária à agressividade das personagens surreais que caracterizam este género de literatura.
Acima de tudo, o livro está primorosamente bem escrito, escorreito na linguagem e absolutamente correcto na estrutura frásica e na concordância gramatical, em que por vezes o autor se coloca, diegeticamente, com pruridos de perfeccionista. Numa visão sintética e desconstrucionista da concepção narrativa, eu diria que este livro é uma espécie de alegoria aos Livros e ao Mundo da Escrita, cuja acção se desenvolve num quase monólogo entre o autor e o leitor. Numa estratégia modelarmente concebida, a atenção do leitor é constante e abruptamente interrompida pela desconcertante forma como se encerram os capítulos, deixando-lhe um trago de insaciável curiosidade. Desse estratagema narrativo resulta numa inebriante concentração do leitor na sucessão diegética das páginas, que o leva sempre por diante na progressiva sucessão dos capítulos.
Falando, ainda mais concretamente, deste livro, parece-me que, em primeiro lugar, dele ressalta a surpresa do título: «O que entra nos livros». Assim, de repente, apetece-me dizer que o que está dentro deste livro mais não é do que a própria alma do autor, consubstanciada no seu talento e genialidade, eufemisticamente identificada na figura do “mágico velhinho”. Acima de tudo, o que está dentro deste livro é a rara e mui singular capacidade imaginativo-fantasista do António Venda.
Curiosamente, ao contrário do que seria normal e expectável, este livro não se distancia dos anteriores; bem pelo contrário, engastasse no romance que o antecede, intitulado O Medo Longe de Ti. Não é a sua continuação, como se de uma saga se tratasse, mas antes de um romance de anamnese, em que uma das figuras secundárias e quase inócuas do livro anterior, passou, ou saltou qual malabarista, para o livro seguinte, como se tivesse vida própria, ou, talvez mais concretamente, como se já existisse antes de ser inventado. É a figura do “mágico velhinho”, uma criatura inventada pelo autor, inocentemente inspirado na «Branca de Neve e os Sete Anões», obviamente uma reminiscência da infância, modelado pela sua imaginação no aspecto físico do Dunga, mas com o carácter e os trejeitos do Zangado.
Tudo aparentemente infantil e inocente, mas que no decurso da narrativa se transforma numa misteriosa errância psicanalítica, pejada duma envolvência fantasista e quase fastasmática, geradora dum clima enigmático, nebuloso e enleante. O misterioso e insondável “mágico velhinho”, vagueava pelos livros, saindo de um e entrando noutro, numa irrequieta odisseia entre autores de diversos quadrantes culturais, aparentemente desconexa e sem qualquer critério, mas que, ao fim e ao cabo, revelava ou estava intimamente relacionada com as preferências literárias do próprio António Manuel Venda. Em certo sentido, o “mágico velhinho” constitui a personificação do espírito errante e irreverente do próprio autor.
Mas o mais desconcertante neste romance é o facto de ser apenas constituído por dois personagens, mais essa omnisciente figura do “mágico velhinho”. Em boa verdade, na intercepção dos diferentes estratos narrativos, estão apenas duas personagens, o Autor, especificamente identificado, e o Livreiro, um tal Sapinho Júnior, proprietário duma livraria em Évora, que numa simples carta indagava o “caríssimo romancista” sobre os verdadeiros traços fisionómicos do “mágico velhinho”. Esta missiva funciona como rastilho para despoletar todo o romance em torno de uma absoluta ficção: o “mágico velhinho”, esse pressuposto duende ou gnomo, híbrida figura inspirada no Dunga, um anão do humor infantil, que talvez por humildade do autor nunca poderia transformar-se num Merlim da Corte do Rei Artur.
O certo é que em torno do “mágico velhinho” nasce, cresce e se desenvolve, um belo romance, uma apaixonante história de fantasia e de mistério, que absorve e confunde a atenção do leitor, transformando-se numa espécie de romance policial, sem violência, sem sangue e sem criminosos.
Perante tudo isto, coloca-se-me, porém, e a priori, esta pertinente questão: terão os livros vida própria, e, por isso, a faculdade de gerarem descendência? Terão os personagens de ficção a possibilidade de se tornarem reais e de se independentizarem do berço/livro em que nasceram? Lendo atentamente O que Entra nos Livros, somos levados a crer que sim, os livros reproduzem-se e os personagens podem fugir deles para virem connosco passear por entre as nossas vidas.
José Carlos Vilhena Mesquita

[texto de apresentação do livro O que entra nos livros, da autoria de António Manuel Venda, edição da Ambar Editora, proferido em 29-09-2007, na Estalagem da Fóia, em Monchique]

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Notas avulsas de História e Arqueologia

Quando jovem escrevi centenas de pequenas fichas (15x10cm), sobre diversos assuntos relacionados com o Algarve. A maior parte delas não constituem hoje grande novidade, devido à evolução dos estudos que entretanto se publicaram. Em todo o caso sempre aqui deixo algumas referências curiosas, para o caso de puderem ser proveitosas para quem nelas encontre qualquer interesse.

Origem do topónimo Loulé – O Prof. José Leite de Vasconcellos, na sua magistral obra Etnografia Portuguesa, vol. II, p. 370, considera que o topónimo Loulé tem origem numa palavra árabe. Para o efeito refere alguns trabalhos publicados pelo Prof. David Lopes onde o assunto da toponímia portuguesa é amplamente versado. Aponta como os mais credíveis um artigo publicado na «Revista Lusitana», vol. XXIV e um outro, que nunca li, intitulado Os Árabes em Herculano, onde a pág. 80 refere a origem árabe do topónimo de Loulé. Confesso que não posso afiançar nada disto porque nunca vi esse artigo.

Forais de Loulé – o foral antigo foi exarado em Lisboa e datado de Agosto de 1266, encontrando-se à consulta pública no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso III, Livro I, fl. 83 verso, coluna 2.
O foral dos Mouros Forros foi dado em Lisboa a 12 de Julho de 1269, e encontra-se no mesmo arquivo, Livro I de Doações de D. Afonso III, fl. 97vº, col. 1; e Livro IV de Inquirições de D. Afonso III, fl. 8vº.
O foral manuelino foi dado em Lisboa a 20 de Agosto de 1504, e encontra-se no ANTT, Livro de Foraes Novos do Alemtejo, fl. 23vº, col. 1.

Furacão – A 14 de Janeiro de 1850, pelas 7, 30 horas da manhã fez-se sentir um fortíssimo furação que assolou a vila de Loulé. Dada a consistência do tecido urbano não houve vítimas nem gravosos prejuízos nas habitações, o mesmo já não se podendo afirmar em relação aos arredores da vila, onde o furacão quase varreu os pomares e arvoredos, levantando telhados, derrubando cimalhas, portas, janelas e pequenas construções para animais. Os prejuízos foram bastante significativos, deixando o ano de 1850 como uma referência na memória popular louletana.

Fundações arqueológicas no Mercado – foi construído no recinto das antigas muralhas, defronte da porta então designada de “Nossa Senhora do Carmo”, a qual havia sido demolida pouco antes da construção do mercado. Os trabalhos de desaterro puseram a descoberto alguns poços empedrados com uns 0,70 m. de largura de boca (semelhantes a outros que haviam também aparecido no Largo da Sé em Faro, aquando das escavações que ali se fizeram no início dos anos quarenta), silos de cereais e vestígios de alicerces. Quer nos poços, quer avulsos pelo local, recolheram-se vários objectos árabes e romanos que foram para o Museu de Belém, hoje designado por Museu Nacional de Arqueologia.

Inscrição romana – No sítio de Apra, arredores de Loulé, foi recolhida uma lápide com uma inscrição romana, que o Prof. Leite de Vasconcellos identificou como invocatória dos Deuses Lares.
Veja-se a este propósito as referências que aquele sábio faz a esta inscrição na sua obra As Religiões da Lusitânia, vol. III, p. 291.

Sepultura visigótica – O sábio José Leite de Vasconcellos, das várias vezes que visitou o Algarve, foi ver uma sepultura que se havia descoberto em Loulé, a qual logo definiu como remontando ao séc. V e à época visigótica. Nela encontrou um anel de ouro de boa feitura, e uma moeda também de ouro, designada por “tridente”, mandada cunhar por Eudóxia (421-450), que foi, como se sabe, esposa de Teodósio II.
Veja-se a este propósito a respectiva referência ao achado arqueológico publicado na revista Archeologo Portuguez, vol XII, p. 367; e uma outra referência publicada na mesma revista, vol. XIII, p. 355.
Acresce dizer que esta célebre revista, dirigido por Leite de Vasconcelos, foi reeditada em fac-símile pela Imprensa Nacional, mas também pode ser consultada on-line ou em CD-ROM.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Documentos relativos a Loulé, séculos XII a XVI

Doação da Igreja de São Clemente ao Mestre de Santiago - "Carta de Escambo", datada de Lisboa em 1 de Dezembro de 1297, firmada por el-rei D. Dinis, através da qual se dava por escambo, isto é em troca, a D. João Osório, mestre da Ordem de Santiago, as vilas de Almodôvar e de Ourique, assim como os castelos de Aljezur e de Marrachique, com suas igrejas, e ainda a Igreja de S. Clemente de Loulé, tudo em permuta pela vila de Almada.
Este documento faz-nos perceber a importância económica daquela vila fronteira a Lisboa, e da pouca monta, em que para o erário régio era tido em linha de conta, todo o património aqui referido. Este documento encontrei-o em bom estado, escrito de forma escorreita e legível, sobre pergaminho bem conservado. Merece ser estudado e publicado.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gavetas da Torre do Tombo, gaveta V, Maço 4, documento n.º 1.

O Almoxarife de Loulé vendeu terras à Condessa D. Leonor - Num documento de pergaminho e em bom estado de conservação, datado de Loulé, a 4 de Agosto de 1286, podem constatar-se os termos da compra feita pela Condessa D. Leonor a Paio Miguel, almoxarife de Loulé, das heranças de Montouto, em Vale Longo, no termo de Évora, que ele tinha herdado de Pedro Anes.
Este documento é de leitura algo imbricada, mas está legível, em pergaminho bem conservado. Merece ser estudado e publicado, mas só por quem souber deslindar as transmissões nele referenciadas. As personagens citadas merecem também ser devidamente analisadas, nas suas relações com a Corte.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gavetas da Torre do Tombo, gaveta III, Maço 7, documento n.º 4.

Sentença de pagamento de Dízima pelos Mouro Forros – O rei D. João I, firmou em Lisboa, a 8 de Dezembro de 1393, uma sentença pela qual foram julgados os Mouros Forros da Vila de Loulé, sendo condenados a pagarem a el-rei pelas terras que tinham de sesmaria, e que tinham sido primeiramente dos cristãos, uma dizima a El-Rei e outra à Igreja; e os cristãos, que tivessem terras que antes foram de Mouros, pagassem a mesma coisa.
Trata-se de um pergaminho em bom estado e que se lê sem dificuldade. Considero-o muito importante para aferir a igualdade de justiça em que ambas as comunidades eram tidas e apercebidas, isto é, em que coabitavam, na vila de Loulé. Século e meio depois da conquista da cidade ainda nela coexistia uma significativa comunidade de mouros, sendo designados por “Forros” porque lhes fora outorgada a liberdade por direito de Foral.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Livro 1 dos Direitos Reais, fl. 242v-243v.

SENTENÇA contra o concelho da vila de Loulé, pela qual se viu obrigado a pagar a el-rei pelo foro de uma horta, duzentas libras de moeda antiga.
Documento em bom estado, feito pergaminho, datado de 23 de Julho de 1465. Tem oito folhas e é de leitura muito curiosa para quem se debruçar sobre o assunto com a paciência que ele merece.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gavetas da Torre do Tombo, gaveta XIII, Maço 3, documento n.º 6.

Privilégios da Vila de Loulé – Num documento datado de Estremoz, a 22 de Setembro de1497, declaram-se e confirmam-se os privilégios da vila de Loulé.
Interessante documento feito em pergaminho, com oito folhas, em bom estado e letra firme. Possui cópia anexa com a referência detalhada dos mesmos privilégios desde a sua origem.
Merece ser publicado.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gavetas da Torre do Tombo, gaveta III, Maço 12, documento n.º 2.

Sentença, datada de 13 de Março de 1587, pela qual foi determinado que a doação do ofício de Escrivão dos Órfãos de Loulé pertencia em exclusivo a El-Rei.
Documento em papel, com catorze folhas, em bom estado de conservação. É de relativo interesse.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gavetas da Torre do Tombo, gaveta XIII, Maço 6, documento n.º 12.

Propriedades que tinham sido dos Mouros –Trata-se de uns «Autos» feitos pelo Almoxarife de Loulé, a instâncias de El-Rei, para que sejam exaradas em novo Livro as propriedades dizimadoras que tinham sido dos Mouros, e que foram doadas a Diogo Fernandes Cavaleiro.
Documento importantíssimo para a definição das terras que pertenceram aos mouros da vila, os quais ali já não co-existiam há muitos anos. Trata-se de um códice, em papel, datado de 8 de Fevereiro de 1512. Encontra-se escrito em 27 folhas de papel, em bom estado de conservação. Merece ser publicado.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gavetas da Torre do Tombo, gaveta XX, Maço 10, documento n.º 34.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

O poeta Salazar Mosocoso, na miséria

Publicou-se na imprensa algarvia, nos anos trinta do século passado, uma “Carta de Lisboa” da autoria do Dr. Ludovico de Meneses, na qual se instava aos homens da cultura e aos estudantes do Liceu de Faro para que abrissem uma subscrição público com o objectivo de acudir ao estado de miséria em que se encontrava o grande poeta lacobrigense Salazar Moscoso, então a residir na cidade de Santarém, onde aliás, pouco depois, viria a falecer.
A razão desse apelo à solidariedade intelectual prendia-se com o facto daquele ilustre poeta ter enviado ao Dr. Ludovico de Meneses (de quem fora colega e dilecto amigo no tempo em que ambos leccionaram no Liceu de Faro) uma carta contendo um pedido de auxílio entregue por intermédio de um amigo, cujo teor passo a transcrever:

Santarém, 3-4-1932
Meu caro Menezes

Apresento-te o meu excelente amigo Alfredo de Moraes, antigo jornalista e escritor distinto, de fino espírito e vasta ilustração, com cuja amizade me honro e congratulo.
Ele melhor do que eu, te exporá a minha angustiosa situação e a absoluta carência em que me encontro da assistência dos meus amigos e especialmente dos meus comprovincianos.
Sem mais abraça-te o teu velho amigo
Bartolomeu Salazar Moscozo


Nessa sua «Carta de Lisboa» o Dr. Ludovico de Menezes, para comprovar a beleza e inspiração lírica do seu dilecto amigo, publicou o seguinte sonetilho de Salazar Moscoso:

NUPCIAS

Ao teu solar que branqueja,
Sobre um alto monte erguido
Agora, com teu marido,
Vens recolhendo da igreja.

Tem o prado que floreja
Um frémito indefinido,
Todo o povo reunido
Do véu a fímbria te beija.

E os choupos, os amieiros,
Acompanham, mesureiros
As saudações da ribeira

Só as abelhas douradas
Choram por ver desfolhadas
As flores da laranjeira!

Este belo sonetilho, no qual o genial poeta exalta a vaporosa figura da mulher/noiva, constitui uma espécie de apoteose parnasiana da beleza feminina, cuja sequência rítmica do verbo lírico revela um poeta de rara inspiração e de profundo sentimentalismo romântico.

J.C.V.M.

O Paredão de Lagos


No dia 30 de Março de 1897 começaram os trabalhos de demolição das muralhas e baluartes da cidade de Lagos, cuja derruição se tornou insuperável para iniciar os trabalhos de construção do paredão que se projectara erguer sobre a baía do porto.
No livro de notas do tabelião Ramos, inscrito no notariado de Lagos, encontra-se lavrada uma escritura com o Ministério da Guerra e o Comando Geral de Engenheiros, representados pelo coronel comandante do Regimento de Infantaria 15 e pelo capitão de engenharia Castro, pela qual cedem as referidas muralhas e baluartes ao Ministério das Obras Públicas, representado pelo eng.º chefe da secção de hidráulica do distrito de Faro, Alexandre Maria Ortigão de Carvalho.
A autarquia de Lagos manifestou o seu público regozijo pela assinatura da referida escritura, pois desde há muitos anos que vinha solicitando junto das instâncias superiores a realização aquelas obras, consideradas de primacial importância para a contenção das cheias de inverno e para o alargamento da cidade. Prepararam-se desde logo grandes e pomposos festejos para assinalar a solenidade do lançamento da primeira pedra do referido “paredão”, anunciando-se a sua efectivação para Outubro desse ano, quando a cidade fosse visitado pelo rei D. Carlos I.

J.C.V.M.

Apeadeiro do Bom João, em Faro


A construção do apeadeiro ferroviário do Bom João, sito ao km 342,188, iniciou-se nos primeiros dias de Julho de 1950, sob a orientação técnica de um tal eng.º Fonseca, que era o chefe da 16.ª secção de Via e Obras da C.P.
O local escolhido situava-se mesmo em frente do bairro do mesmo nome, nas imediações da fábrica pertencente ao empresário E. Torres Pinto da Silva, que desse apeadeiro poderia tirar o melhor proveito para o transporte da sua produção industrial. A obra constituía em si um notável melhoramento, pois que não só viabilizaria a transformação dos vastos terrenos agrícolas que lhe estavam adjacentes em futuras urbanizações, como também facilitaria aos estudantes do Liceu de Faro um acesso rápido e cómodo por via-férrea. De tal forma assim foi que não tardou em ficar conhecido como o “apeadeiros dos estudantes”.
Actualmente, embora perdesse a serventia para a fábrica Torres Pinto, entretanto encerrada, continua a ser utilizada por outras indústrias limítrofes, pelos moradores do populoso bairro do Bom João e, muito especialmente, pelos estudantes do Liceu João de Deus.
Pouco depois deu-se também início à construção do apeadeiro da Porta do Mar, que permitia o acesso por via-férrea até ao coração da cidade antiga, junto ao quartel de bombeiros, precisamente no antigo cais da lota.
Acresce dizer, para concluir esta nótula, que o apeadeiro do Bom João foi inaugurado no dia 1 de Novembro de 1950.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Compra do Teatro Lethes, em Faro, pela Cruz Vermelha



Os herdeiros de Constantino Cúmano, grande benemérito local, venderam, em Junho de 1951, à sociedade da Cruz Vermelha Portuguesa o magnífico edifício do antigo Teatro Lethes. Segundo constou na época o imóvel foi transaccionado por 350 contos, comprometendo-se a nova entidade proprietária a não alterar a traça arquitectónica do edifício, garantindo ao mesmo tempo o restauro e recuperação do edifício.
O único problema que importava solucionar a breve trecho era o de assegurar a sede do Sport Lisboa e Faro, que ali se encontrava instalado há bastantes anos. Aquela agremiação desportiva tinha aliás grandes tradições, encontrando-se estruturalmente relacionada com a vida social da cidade, comprovada aliás pelos cerca de 800 sócios que mantinha nas suas fileiras. Na altura, muitos foram os cidadãos que clamaram contra a hipótese de desalojamento do popular clube desportivo, o que apesar de tudo veio a acontecer a contento de ambas as entidades, mercê de solução sugerida e apoiada pela edilidade local, transferindo-se a sede para as instalações no largo do Pé da Cruz.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Origens algarvias de Camões



Manuel Severim de Faria afirma que Antão Vaz de Camões, filho de João Vaz de Camões e de Inês Gomes da Silva, casou com Guiomar Vaz da Gama (descendente directo dos Gamas do Algarve, originários do Alentejo) que teve um filho chamado Simão Vaz de Camões, que casando com Ana de Macedo tiveram Luís Vaz de Camões, o poeta nacional e mentor da cultura lusíada.
Também li sobre Camões um artigo de Julião Quintinha intitulado “Camões no Algarve”, publicado no «Correio do Sul» de 27-8-1922. A fonte do artigo era o escritor anti-semita Mário Saa que lhe terá confidenciado que Camões tinha no Algarve um tio chamado Pero Vaz de Camões, na casa do qual aliás se refugiara quando em 1546 fugiu de Lisboa por causa dos amores com sua prima Isabel Tavares. O alcaide-mor de Silves e o alcaide-mor de Lagos eram seus parentes, presumindo-se que ele esteve refugiado no morgado de Boina, que era de um outro seu parente próximo, irmão do poeta Jorge da Silva ali refugiado também por essa altura, por via dos seus amores com uma infanta da Corte. O poeta partiu de Lisboa para o Algarve pouco antes de seguir para a Índia. Parece que o tio, Pero Vaz de Camões, tinha sangue judeu, sendo talvez as origens de cristão-novo a causa das perseguições movidas pela Inquisição de Goa contra o poeta dos Lusíadas.