José Carlos Vilhena Mesquita
Na história política do recém encerrado séculos vinte ocorreram, pelo menos, três crimes políticos que cobrem de opróbrio a nossa memória colectiva. Refiro-me aos assassinat
Em primeiro lugar o assassinato do rei D. Carlos e do príncipe herdeiro, Luís Filipe, perpetrado a 1-2-1908, no Terreiro do Paço, em Lisboa. Foi uma execução pública da mais hedionda barbaridade, que deixou o país envergonhado perante o mundo civilizado. Ainda hoje custa a acreditar como foi possível que se tivesse chegado a tamanho extremo e a tão vil procedimento. Não me recordo de ter ouvido falar num pedido de desculpas à Família Real por parte da República ou do Estado que a representa, nem muito menos da Maçonaria, como autora material do crime e como entidade política responsável por muitas outras atrocidades. Atente-se no bom exemplo da Igreja Católica, ao reconhecer que cometeu graves erros no passado, nomeadamente através da Inquisição, pelos quais teve a honradez e a dignidade de pedir perdão à Humanidade.
O segundo crime político, que aguilhoou as nossas consciências, ocorreu em 1965, quando a PIDE assassinou o general Humberto Delgado, na raia espanhola, próximo de Badajoz. No conceito internacional o país perdeu toda a credibilidade política, sobretudo no Reino Unido e nos EUA, dissipando-se a condescendência de que Salazar usufruíra durante décadas com o seu “fascismo de cátedra” – como lhe chamou Unamuno. Quando o regime caiu, em 25 Abril de 1974, o país exigiu que os culpados fossem julgados. E o certo é que os autores materiais desse hediondo crime foram acusados e condenados em tribunal.
Por fim, o crime que mais enxovalhou o país foi a morte, em 4-12-1980, do então Primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, juntamente com mais seis acompanhantes, entre eles o Ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa. Toda a gente percebeu nessa precisa noite que se tratou de um crime político. Porém, os seus camaradas da política entenderam que tudo não passou de um infeliz acidente. Perante a leitura dos relatórios exarados por peritos internacionais, pelas autoridades policiais e comissões de inquérito, que compulsaram provas e testemunhos indiciários de atentado bombista, parece incrível que durante todos estes anos os políticos se tivessem abroquelado por detrás da tese dum infeliz acidente. E a justiça passou ao lado da verdade.
O processo judicial prescreveu há cerca de três meses atrás. Veja-se o despudor com que se anunciou, urbi et orbi, que um caso de lesa história perdera o seu prazo de validade na justiça portuguesa. Isto é não só ridículo, como é, sobretudo, uma vergonha nacional. Significa tão-somente que a morte ou, mais presumivelmente, o assassinato de várias figuras públicas, sendo uma delas o chefe do poder executivo, tivesse passado impune aos olhos da justiça.
A verdade é unicamente esta: decorreram 26 anos sobre a trágica morte desses justos e inocentes portugueses, sem que nunca se lhes tivesse feito justiça, levando os culpados à barra dos tribunais. E não digam que não sabiam quem eram os autores do crime. Todas as provas indiciavam Sinan Lee Rodrigues e José Santos Esteves como autores materiais do atentado. Ainda há dias este último, que se tornou na figura pública do “Sô Zé”, declarou à revista «Focus» que fora o autor da bomba que matou Sá Carneiro. Mas como não convinha “desenterrar” o assunto, trataram logo de agitar o fantasma do “Apito Dourado” para desviarem a atenção da opinião pública. E o certo é que o caso foi imediatamente “abafado” para dar lugar aos mexericos duma Carolina, artista de alterne, que o país transformou na Maria Madalena do nosso pacóvio provincianismo. Depois do Zé Cabra, do Zé Maria, do Castelo Branco e das putativas figuras do alisbonado jet-set do parolismo nacional, eis que surge agora a celestial Carolina, cujo drama conjugal se tornou num best-seller e fez esgotar as edições da nossa imprensa, que, neste como noutros casos, se tem revelado cada vez mais acéfala, mercantil e sensacionalista.
Francisco Sá Carneiro foi, acima de tudo, um homem honrado, de superior inteligência e fortes convicções políticas, que as circunstâncias políticas e a injustiça dos homens transformariam num mártir da liberdade. Teve uma vida digna, que poderia ter sido longa e auspiciosa, mas que cessou abruptamente há vinte e seis anos atrás, numa fria noite de Dezembro. Entre a penumbra da traição política e a obscuridade duma vil emboscada, paira toda uma nação, ainda estupefacta e aturdida pela infamante interrogação da verdade. A infernal tese da inocência dos lobos na sanguífera noite de Camarate cobriu de opróbrio toda a geração política glorificada em Abril.
A sua mensagem ideológica e os valores éticos pelos quais tanto propugnou, foram em larga medida delidos pelo tempo, ou obliterados da memória nacional por aqueles que lhe sucederam. Foi inquestionavelmente um promissor político traiçoeiramente assassinado no vergonhoso inferno de Camarate.
Um povo pacífico, cordato e ordeiro, como o nosso, não pode rever-se no sangue derramado pelas vítimas inocentes do ominoso crime de Camarate.
O Governo e a Assembleia da República, já que não estão na disposição de levantarem a prescrição do caso Camarate, deveriam pedir publicamente desculpa aos descendentes das vítimas, por terem deixado impunes os algozes daqueles que morreram como justos ao serviço do governo e do Estado português. Enquanto isto não se fizer, cobrir-nos-emos todos de vergonha perante a memória das vítimas.

Enquanto não se dirimir a verdade e não se apontarem os algozes, continuaremos a pronunciar hosanas à glorífica liberdade conquistada ao sol de Abril, mas eclipsada e conspurcada pela occisiva noite de Camarate. A democracia portuguesa jamais conseguirá lavar o rosto angélico da sagrada liberdade com as lágrimas dos seus gloriosos mártires, porque na fímbria do seu divino manto se esconde o sangue dos inocentes, imolados no ominoso covil de Camarate. Somos um país de fatalismos e de brumas sebastiânicas, aguardando expectantemente – não o messiânico salvador, mas tão só a natural e humana justiça, que tarda... mas não deveria faltar.