sexta-feira, 8 de março de 2019

A origem histórica do Biquíni


Diz-se que a criação do biquíni teve origem no racionamento de tecidos e no baixo poder de compra das mulheres, durante o período da II Guerra Mundial, em cujo decurso um francês, engenheiro de automóveis, de seu nome Luis Réard, desenhou o traje de banho feminino ao mínimo, a que deu o nome de “Bikini”. Lembrou-se dessa designação porque a sua criação era uma verdadeira bomba atómica no mundo da moda. Ora, como dias antes, em Julho de 1946, os Estados Unidos haviam realizado uns testes nucleares na Micronésia, Oceano Pacífico, destruindo por completo o Atol de Bikini, pareceu-lhe que esse nome poderia ser adoptado ao seu modelo como uma forma de homenagem, mas também de protesto, pela destruição do ambiente e pelo uso de armas de destruição maciça.
Brigitte Bardot, aos 19 anos, em Cannes, causando
enorme sensação com o seu provocante biquíni
O projecto era tão ousado que nenhuma modelo se dispunha a usá-lo em público. Por isso Réard teve de contratar uma stripper, de corpo escultural, chamada Micheline Bernardini, que se dispôs a usá-lo num desfile de moda, junto a uma piscina, em Paris, a 11 de julho de 1946. O escândalo foi enorme, tornando-se de facto numa verdadeira "bomba atómica" lançada sobre o mundo da moda. Mas não se pense que se tornou num êxito rápido, como é costume acontecer na moda. Bem pelo contrário. A maioria dos países modernos reprovou o seu uso, e ainda hoje, em muitos países árabes é proibido o uso do biquíni nas praias, como se tratasse de uma afronta ao pudor. Tanto assim era que no primeiro concurso de Misse Mundo, realizado em Londres em 1951, proibiram-se as concorrentes de sequer tentarem experimentar o uso de biquíni no desfile final do certame. O argumento sustentado pelos membros do júri era, mais uma vez, o da preservação da moral e dos bons costumes.
Para que o mundo desse esse passo em frente precisava-se de uma mulher corajosa, que não tivesse medo de enfrentar a oposição dos mais conservadores e até da própria igreja, que contestava os excessos e liberdades da moda. Essa mulher, corajosa e desafiante, surgiu em 1953, durante o Festival de Cannes, na figura da jovem e deslumbrante actriz francesa Brigitte Bardot, que desceu à praia daquela famosa estância turística com um revolucionário biquíni, desenhado com motivos florais, como se a própria Eva voltasse de novo ao convívio dos mortais pecadores.
Repare-se nas reduzidas dimensões do bikini de Brigitte
Bardot, cujo talhe pouco difere dos modelos actuais.
A partir de então, as mulheres de todo o mundo passaram a usar os provocantes biquínis, cada mais curtos e ousados, para afirmarem a sua liberdade e a sua independência, sem medo de serem, por isso, acusadas de atrair a si os olhares concupiscentes dos homens.
Mas, será o biquíni assim tão recente como nos querem fazer crer os designers da moda?
Não tenho a certeza se já existiria, ou não, no tempo dos romanos uma indumentária, talvez mais para uso desportivo do que recreativo, semelhante ao que hoje designamos por biquíni. Em frescos de Pompeia encontraram-se várias pinturas de mulheres a exercitarem-se num ginásio, praticando pugilato e luta greco-romana, usando apenas duas peças de couro para taparem as partes íntimas. Isto faz supor que as mulheres na antiguidade clássica já usavam algo semelhante aos biquínis modernos, certamente nos banhos públicos e saunas privadas, mas talvez também durante a prática dos diversos jogos e competições em que as mulheres tinham o direito de participar.
Este é um assunto que não domino, nem posso asseverar que o uso das duas peças de reduzido vestuário, a que chamamos hoje biquíni, era já usado na antiguidade. O que posso garantir é que na localidade de Piazza Armerina, na Sicília central, foi descoberta a vila imperial romana de Casale, com dezenas de mosaicos de uma beleza esplendorosa, retratando cenas da vida quotidiana no século IV depois de Cristo. Em alguns desses mosaicos vêm-se várias jovens romanas, usando apenas duas peças muito semelhantes ao actual biquíni. Neles se observa que algumas jovens estavam a praticar luta, creio que pugilato - uma modalidade desportiva de tradição olímpica - mas noutros parecem estar a desfilar num cortejo religioso, escoltadas por outras mulheres, cobertas com tecidos transparentes, que talvez fossem as intocáveis vestais.
Mosaico da villa imperial romana de Piazza Armerina, na
 Sicília central, datado do século IV depois de Cristo.
 
Sem querer especular, julgo que algo semelhante ao biquíni já era usado na civilização romana pelas mulheres que frequentavam os banhos públicos, então designados por “Thermae” (de cujo étimo latino deriva a palavra Termas), sendo famosas em Roma as termas de Caracalla, de Nero, de Diocleciano, de Tito e de Trajano, frequentadas diariamente por milhares de patrícios de ambos os sexos, num cenário de majestosa beleza artística, rodeada de colunas e estátuas em mármore de Carrara. As termas públicas repartiam-se por diferentes espaços, para que os seus utentes usufruíssem de sucessivos estágios de temperatura nas águas. Assim, passavam primeiro pelo “Frigidarium”, onde os utentes se banhavam em água fria, passavam depois ao “Tepidarium”, de águas mornas, até chegarem ao “Caldarium” onde as águas quentes proporcionavam o relaxamento muscular. Associada ao uso medicinal da água e à sua fruição térmica, nasceu a ideia clássica do SPA, que mais não é do que uma sigla, cujo desdobramento significa "salus per aquam", uma expressão latina que se traduz literalmente como "saúde pela água".
Pormenor do mosaico anterior
As mais ricas e poderosas famílias romanas, que se estabeleceram ao longo do imenso império, trataram de recriar nas suas “villas” residenciais um equipamento termal, de que ainda hoje subsistem restos arqueológicos visíveis um pouco por todo o nosso país.
Aqui fica uma imagem do mosaico da Villa imperial romana de Piazza Armerina e duas fotos da então muito jovem Brigitte Bardot, em 1953, na praia de Cannes. A bela diva do cinema, está felizmente entre nós (tem hoje 84 anos de idade), embora há muito retirada dos olhares públicos. Muitos de nós se lembram dela pela sua deslumbrante beleza física, pela sua luta contra o uso de peles no vestuário da moda, pela sua cruzada na protecção dos animais domésticos e selvagens, mas certamente já poucos se lembrarão que ela foi a primeira mulher a usar um biquíni em público, desafiando os falsos pudores desta sociedade de hipócritas sibaritas, em que ainda hoje vivemos.

quarta-feira, 6 de março de 2019

Castello, António

António Castello, aos quarenta anos

Empresário português radicado em Buenos Aires, capital da Argentina, onde mercê do seu trabalho, sacrifício e abnegação logrou montar um negócio de mecânica automóvel, que foi progredindo até chegar a tornar-se numa das maiores empresas daquela cidade.
Nasceu em 1881, no seio de uma família humilde e modesta, na freguesia de Estoi, concelho de Faro, e quando chegou aos 21 anos de idade, vendo-se sem emprego, sem esperança e sem futuro, optou pelo caminho que muitos rapazes da sua geração seguiram, o da emigração. Estávamos em 1902, e nessa altura corria no espírito aventureiro da juventude a atracção pela estrada atlântica, na perspectiva de aí alcançar uma nova oportunidade de vida. O futuro dos mais desfavorecidos encaminhava-se novamente para o Brasil, onde a língua era mãe e onde havia sempre uma mão amiga, que a colónia lusa que antes ali se havia radicado, estendia aos que chegavam imbuídos da mesma esperança de sucesso e de prosperidade. Foi assim nas últimas décadas do século XIX, uma quimera que enfeitiçou milhares e milhares de portugueses que do norte do país, do Minho, do Douro e das Beiras, desempregados pela praga da filoxera que destruiu os vinhedos onde ganhavam o pão, tiveram que emigrar, deixando as nossas terras setentrionais quase despovoadas.
Quando o feitiço do Brasil esmoreceu, surgiu um novo «El Dourado» na terra das pampas meridionais da América. Eram as terras do Rio da Prata, a nova e próspera Argentina, que se levantava numa onde de progresso, de crescimento económico e de desenvolvimento agro-industrial. Os pobres da Europa Ibérica e mediterrânica acorreram em massa, sequiosos de esperança, de trabalho e, sobretudo, de um futuro, que lhes permitisse erguer um lar e criar uma família. Foram, tal como o António Castelo, aos milhares de homens e mulheres, gente de todas as idades, de diferentes nações, línguas e credos, para lavrarem a terra, esventrarem as montanhas, extraírem o minério de cobre e de ferro, criarem o gado, lanígero. bovino e cavalar, enfim…, foram para estabelecer os fundamentos do mundo latino.
Buenos Aires, centro, Jardim de Julho, em 1920
O António Castelo, com seus 21 anos de idade, em plena posse do seu vigor e inteligência, empregou-se numa grande casa comercial, onde em breve seria o fiel de armazém, conquistando a simpatia dos patrões, dos clientes e dos seus compatriotas, que nele viram logo o talento do sucesso. Com o decorrer dos anos foi ganhando confiança e maior conhecimento sobre o trato e a dinâmica macroeconómica, e mercê do seu esforço e dedicação à empresa conseguiu fazer muitos negócios de âmbito intercontinental, tendo a Europa e em especial o nosso país como plataforma giratória do avultoso comércio da carne, das madeiras, do aço, das peles, etc.
Dez anos depois António Castello era já muito considerado entre a colónia portuguesa, por ser um jovem muito trabalhador e inteligente, sempre atento às inovações americanas e muito dedicado à leitura dos principais órgãos da imprensa europeia. Talvez por essa influência é que tornou fiel seguidor do ideário republicano, e grande admirador de Afonso Costa, então na pasta da Justiça, cuja reforma judicial costumava apontar como uma marca da moderna civilização ocidental. Foi por essa altura que começou a assentar raízes e a pensar criar o seu próprio negócio. Ouviu conselhos, auscultou os seus amigos mais proeminentes da colónia lusa de Buenos Aires, estudou as propostas de financiamento e decidiu avançar com um negócio da sua iniciativa.
Buenos Aires, capital da Argentina, cerca de 1920
O primeiro passo foi escolher uma mulher que o pudesse acompanhar nessa aventura que iria mudar a sua vida. Escolher uma jovem, filha de boas famílias da mãe-pátria, chamada Gertrudes que o fez feliz e lhe deu seis filhos. Ao fim de vinte anos de trabalho, deixou a casa comercial, onde trabalhara com tanto afinco, para avançar em sociedade com o seu amigo Francisco Viegas, na criação de uma empresa ligada ao ramo automóvel, um sector que começava a dar grandes frutos na Argentina. Essa empresa, com a designação de «Viegas y Castelo», ligada à venda e reparação de veículos, tornar-se-ia a breve trecho num dos principais estabelecimentos do ramo automóvel em Buenos Aires. Os clientes e amigos, assim como os seus compatriotas, passaram a tratá-lo por Dom António, em sinal de respeito e consideração pelo seu sucesso no difícil mundo empresarial.
Um dos seus amigos, entre os mais leais e sinceros, era o jornalista Francisco Paulo Madeira, que nas colunas do semanário «O Jornal Portuguez», de que era director e proprietário em Buenos Aires, publicava sempre notícias do seu amantíssimo Algarve, sobretudo de Loulé, de onde eram naturais muitos dos seus assinantes e leitores. Volta e meia surgiam nas colunas do seu jornal, a propósito das empresas portuguesas de maior sucesso na capital argentina, notícias sobre a empresa de António Castelo, assim como de outros algarvios que se dispersaram pelo país das Pampas.
Cabeçalho do jornal de Paulo Madeira em Buenos Aires
Vem a talhe de foice lembrar que este Francisco Paulo Madeira, natural de Alte, concelho de Loulé, deixou no Algarve um rasto de lenda e de heroísmo, por ter sido um corajoso e indomável lutador pela implantação da República. Era um homem inteligente e talentoso, que lutava pelos seus ideais com a luz da razão. Porém tinha um espírito muito difícil de contrariar, que ainda por cima fervia em pouca água. Por vezes, quando os seus adversários não se deixavam vencer pela razão das suas ideias, recorria então ao vigor, à coragem e destreza dos punhos.
Francisco Paulo Madeira, ainda jovem, revelara-se nas colunas do semanário «O Louletano», fundado em 9-1-1893, como um jornalista de grande ilustração e pureza de estilo, embora nas suas palavras e afirmações sempre refulgisse o ideário republicano e o seu espírito anticlerical. Anos depois, a 20-5-1909, teve a ousadia de fundar por sua conta e risco o semanário «O Povo Algarvio», que se apresentava como “semanário republicano independente”. Tinha como ódio de estimação o seu oponente monárquico, o semanário «Notícias de Loulé», fundado em 30-5-1909, e dirigido pelo padre Manuel Bazílio Correia. Este jornal além de ser monárquico era profundamente católico, fazendo dos republicanos, o alvo principal dos seus ataques, acusando-os de assassinos (por terem matado o Rei), de diabólicos coveiros da pátria e de anticristos. Estas diatribes enfureciam o Paulo Madeira que na tribuna do seu «Povo Algarvio» desancava os monárquicos com os maiores impropérios. Por vezes, o nível baixava a tal ponto que chegava a roçar na chinela. Daí nasceu um episódio desagradável que marcou a vida de Paulo Madeira, suscitando inclusivamente o desconforto de ter que emigrar da sua terra-natal para a longínqua Argentina. O caso conta-se em duas palavras. O Manuel Madeira envolveu-se em acesa polémica com o Padre Bazílio Correia, da qual resultaria a suspensão do jornal republicano, obrigando o Paulo Madeira a fundir o seu jornal com os «Ecos do Sul» de São Brás de Alportel, passando por isso a ser apelidado acintosamente pelo seu adversário monárquico como «o bifronte». Daí resultou que num belo dia o Paulo Madeira em plena via pública quisesse tirar desforço do padre, havendo punhos e cuspidelas pelo ar. Chegou-se a falar numa pistola virada às fraldas da sotaina que felizmente não chegou a disparar. O caso foi a tribunal, mas a República implantada dali a pouco sanou tudo. O jornal monárquico fechou as portas, o Paulo Madeira saiu por cima. Todavia, nos anos subsequentes ao novo regime a sua pena continuou agressiva, não poupando críticas às novas vereações camarárias nem aos deputados que no parlamento defendiam mais os interesses pessoais do que os da própria pátria. Não tardou muito a que os seus antigos correligionários lhe silenciassem a pena, considerando o Paulo Madeira como persona non grata aos olhos do povo de Loulé. Por essa razão, farto das lutas partidárias, emigrou par a Argentino, onde voltou a erguer a sua tribuna de jornalista, isenta de polémicas políticas e de interesses partidários.
Quando o seu amigo e compatriota, António Castello, faleceu aos 47 anos de idade, numa sexta-feira 13, do mês de Julho de 1928, no hospital de Buenos Aires, onde esteve internado alguns meses, Paulo Madeira, sentiu de forma muito profunda a sua morte, como uma enorme perda para toda a comunidade lusa. Traçou-lhe o elogio fúnebre numa comovente notícia da qual respigamos, em jeito de encerramento, estas sentidas palavras:
«Enérgico e sóbrio, empreendedor persistente e honrado como a própria honra, bem merecia melhor prémio às suas actividades do que aquele que a sorte lhe destinou. Bom, sumamente bom, quasi poderíamos dizer divinamente bom – já que a imensa bondade dos raros António Castello que hoje topamos na vida deve derivar, talvez daquele sopro divino com que Deus alentou o barro de que modelou o género humano – toda a sua vida foi consagrada ao bem dos outros, com um tão impressionante espírito de sacrifício, com uma tão voluntária boa vontade que, cativando os corações os obrigava à gratidão.»
Cemitério da Recoleta em Buenos Aires, em 2018
António Castelo foi a enterrar no dia seguinte, no cemitério da Recoleta em Buenos Aires. Ao seu funeral compareceram milhares de pessoas, na sua esmagadora maioria emigrantes portugueses, que choravam a sua inesperada morte como uma perda irreparável. Deixou à viúva, Gertrudes Castello, a difícil tarefa de criar os seus seis filhos, alguns dos quais eram ainda de tenra idade. Por lá ficaram, em Buenos Aires, prosseguindo a empresa que o seu progenitor lhes deixou, até que o tempo os dispersou a todos pelos insondáveis meandros da vida.

domingo, 3 de março de 2019

MACHADO, José António Valeriano

Jornalista, poeta e dramaturgo, nasceu em Faro e faleceu em Lisboa, a 13-1-1954.
Espírito empreendedor e algo aventureiro, dotado de grandes capacidades de trabalho, inteligência repentina, argúcia de filósofo, talento a rodos, mas desperdiçado em actividades de inferior relevância. Escrevia com facilidade em prosa e em poesia, dispersando-se pelos jornais locais até chegar às colunas da imprensa da capital. A partir de então, com o nome estampado nos jornais diários, tornou-se numa figura de superior pertinência e destaque.
Republicano até à medula da alma, foi um dos chamados “heróis da Rotunda”, pois que, com armas na mão, tomou parte activa na Revolução do 5 de Outubro em 1910. Mas essa foi uma das suas medalhas de juventude de que pouco ou nada se orgulharia porque a República além da desilusão em que a transformaram os seus políticos, foi também um regime de grande conflitualidade na ordem pública, marcado por vários levantamentos militares, desobediência civil, terrorismo urbano, ataques bombistas, greves violentas do operariado, constantes crises governativas, em suma um clima de instabilidade política que só contribuiu para o descrédito do novo regime, em que as gerações jovens tinham depositado tantas esperanças.
Fachada do antigo Teatro Apolo, na Rua da Palma em Lisboa
A vida nesses atribulados anos também não lhe correu bem. Sentiu que os magros cobres granjeados no jornalismo não eram suficientes para governar a vida, razão pela qual tentou encontrar no teatro os meios de sobrevivência com que pudesse pagar as dívidas. Por isso, escreveu para o Teatro Apolo uma revista intitulada «Risos e Flores», que embora levada à cena não teve o sucesso almejado pelo seu autor.
Felizmente existem depositados na Biblioteca Nacional, em Lisboa, pelo menos dois exemplares impressos, desta peça teatral, sendo que um deles é o texto original, ou seja, a versão literária da mesma, datada de 1920, idealizada muito antes de ser levada à cena em Lisboa. Para elucidação dos bibliófilos, aqui fica a descrição deste pequeno e raro livro, com que José António Valeriano Machado se estreou nas letras e no teatro: Riso de Portugal, Riso Amarelo ou Risos e Flores, Lisboa, Tip. do Comércio, 1920.
A outra edição desta peça corresponde à versão que foi levada à cena no Teatro Apolo, contendo o texto e as coplas em verso, inspiradas no gosto popular, que compunham o corpo cénico desta revista teatral. Tem esse folheto, de apenas 14 páginas, a seguinte descrição bibliográfica: Coplas da Revista, em dois actos e 2 Quadros, Risos e Flores, música de Vasco Macedo e Bernardo Ferreira», 1920.
Desiludido com a situação política da sua amada República, mas também para escapar às responsabilidades que lhe eram imputadas em determinado processo judicial, emigrou para o Brasil onde se fixou durante alguns anos. Todavia, razões de vária índole, próprias do seu espírito aventureiro, não lhe permitiram alcançar o sucesso desejado.
Assim, desapontado com o Brasil, onde a vida não lhe correu de feição, regressou à pátria, fixando-se em Lisboa. Empregou-se na redacção de «O Século» - um diário de larga expansão e sucesso, porta-voz do nosso incipiente capitalismo - onde como jornalista desenvolveu intensa actividade. Foi na qualidade de redactor do «Século» que tomou parte no grupo de plumitivos que fundou a Associação dos Jornalistas Portugueses, cujo programa cultural e objectivos sociais defendeu e divulgou nos órgãos da capital. Desse núcleo embrionário surgiria mais tarde o Sindicato dos Jornalistas e a Associação da Imprensa de Portugal.
Receoso do seu futuro como jornalista, decidiu empregar-se como funcionário da União dos Grémios da Indústria Hoteleira, ao serviço da qual recebia um vencimento, que não sendo avultado era, contudo, infalível e suficiente para sobreviver. Nessas funções chegaria à idade da reforma, sem brilho nas letras, é certo, mas também sem sobressaltos na vida.
Sede da Emissora Rádio Graça, na rua da Verónica, Lisboa
No tempo em que residiu no Rio de Janeiro, escreveu e publicou um belo livro de versos, no qual constam várias composições poéticas datadas de Faro. Encontramos um exemplar na Biblioteca Nacional, em Lisboa, do qual aqui deixamos a descrição oficial: Cinzas… Poesia Tosca, Rio de Janeiro, Imp. Moderna Carinhas, 1926, 117 p., [4] f., 17 cm (BNP: L. 34979 P.). Curiosamente, este mesmo livrinho teve no ano seguinte, em 1927, uma nova edição, embora me pareça que deve ter sido apenas uma republicação da versão do ano anterior. Este procedimento não era raro nessa época, porque as edições de livros faziam-se primeiro com poucos exemplares (por vezes uma centena de exemplares) para testar o acolhimento público da obra, fazendo-se, em caso de resposta positiva, um aumento de exemplares à edição inicial. É por isso que em certas obras vemos no frontispício a indicação de 1º, 2º ou 3º milhar, em vez de 1ª, 2ª ou 3ª edição, por se tratar de um aumento da publicação de exemplares e não de edições espaçadas por diferentes anos de publicação.
Botão de lapela, Rádio Graça
Só lamentamos que este livro seja hoje raro de encontrar, até mesmo no Brasil, e, por isso, difícil de chegar às mãos do comum leitor. Infelizmente, à excepção da Biblioteca Nacional, em Lisboa, não existe em mais nenhuma outra biblioteca pública do nosso país.
Emblema da Rádio Graça, Lisboa
Nos últimos anos de vida, Valeriano Machado, pronunciou aos microfones da «Rádio Graça» de Lisboa uma palestra semanal sobre temas muito diversos, como a instrução graciosa e pós-laboral da classe operária, a moral nacionalista e a ética social, a conduta religiosa do povo, o combate à mendicidade e a assistência aos pobres, poesia popular e teatro radiofónico, a leitura e a educação cívica dos trabalhadores, etc... Na esteira desse programa radiofónico publicou um pequeno jornal, em forma de boletim, de que saíram impressos, entre 1941 e 1942, pelo menos seis números, cuja edição cessou devido aos condicionalismos da guerra. Esse boletim publicou-se com a designação de «Rádio Graça», sob a direcção de Valeriano Machado e edição de Américo dos Santos, Lisboa, 1941-1942. Os textos eram na sua maioria do Valeriano Machado, resumindo alguns programas difundidos, noticiando os melhoramentos do bairro da Graça, o sucesso de alguns dos seus moradores, assim como realçava os progressos técnicos da própria estação.
Algumas rádios dos Emissores Associados de Lisboa
Esta estação radiofónica, sediada no Bairro da Graça, daí a sua designação, iniciou a emissão publica em 27-3-1932, sob a égide de Américo Santos, um simples guarda-livros que teve a inteligência e ousadia de divisar novos projectos e mais promissores horizontes, através da fundação de uma modesta antena de rádio, que viria a tornar-se num verdadeiro caso de sucesso através da inovadora emissão do teatro radiofónico nos anos cinquenta do século vinte. Uma das peças mais aclamadas pelo público desse tempo foi o drama «A Força do Destino», que em 1954 chegou a ter entre os lisboetas uma audiência sem precedentes, a tal ponto que até a Emissora Nacional passou a inserir diariamente um espaço teatro radiofónico, à hora do almoço e à hora do jantar, com peças dos maiores dramaturgos nacionais e estrangeiros. Devido ao seu enquadramento num bairro lisboeta, a «Rádio Graça» era uma espécie de rádio local com fraca expansão hertziana. Não tinha hipóteses de competir com as grandes antenas que dominavam o espaço nacional, nomeadamente a «Emissora Nacional», o «Rádio Clube Português» e a «Rádio Renascença». Para poder ampliar o seu alcance, Américo Santos decidiu nos anos cinquenta juntar-se a uma quarta antena de âmbito nacional, os Emissores Associados de Lisboa. Deste modo, passou a fazer parte de um grupo de quatro estúdios com audiência nacional, no qual se integravam também a «Rádio Peninsular», o «Clube Radiofónico de Portugal», e a «Rádio Voz de Lisboa».
Disco de 78 rpm gravado na «Rádio Graça», a 4-12-1959
Idêntica estratégia ocorreu no norte do país em 1953, quando as rádios locais se associaram numa antena de larga expansão territorial designada por «Emissores do Norte Reunidos» (cuja antena esteve instalada no Canidelo, em Vila Nova de Gaia), que subsistiu até 1975, altura em que foi também nacionalizada, sendo hoje a «Rádio Comercial», fundada em 1979, a sucedânea natural do antigo emissor do Norte.
A popular «Rádio Graça» chegou a ter em Lisboa quase um milhar de associados, que pagavam as suas quotas para ouvir diariamente, as notícias locais, as canções e os fados mais populares, mas também os contos tradicionais portugueses, as palestras do desporto e da cultura, os preceitos sobre a vida cívica, e sobretudo as peças de teatro radiofónico, cujo patrocínio da marca de detergentes «Tide» foi o garante da sua sobrevivência até 1975, quando aquela emissora foi nacionalizada e logo a seguir encerrada, por não se enquadrar na linha convergente à nova ordem política.

Entre os programas de maior sucesso da «Rádio Graça» distinguiam-se os contos, as lições de história pátria e as palestras infantis, para a educação e formação cívica das crianças, da autoria de Valeriano Machado. Convém esclarecer que este programa tinha sido primeiramente difundido pelo seu autor na «Rádio Hertz», que depois o fez ressurgir aos microfones da «Rádio Graça», ainda com mais sucesso e maior difusão. É curioso notar que cada um dos programas tinha uma lição pedagógica a incutir no espírito das crianças. Por isso era personalizado, isto é, tinha dedicatória a uma criança em particular, geralmente um filho ou neto de um associado da rádio, ou de um amigo do próprio autor. E o nome da criança era enunciado com todo o carinho, como que a pressagiar-lhe um auspicioso futuro. foram depois reunidas num volume que deu à estampa com o título de Lições do Avozinho, método aprazível e intuitivo, Lisboa, Tip. da Gazeta dos Caminhos de Ferro, 1940. A edição deste livro inscreveu-se no âmbito das Comemorações Centenárias, uma espécie de apoteose do regime de Salazar, cuja nação dimensionada pelos cinco continentes se apresentava em paz e em prosperidade, perante uma Europa em guerra, possuída do espírito nazi e ameaçada pelo espectro da autodestruição. O livro de Valeriano Machado, cujo conteúdo era de uma inocência desarmante, expressava uma mensagem patriótica e paternalista que na essência convinha à propaganda nacionalista do regime. As lições moralistas que o autor infundia no espírito das crianças, favoreciam a apologia do país onde florescia a paz e o bom entendimento entre os cidadãos, sem o divisionismo partidário nem a desordem da democracia. Sem ser essa a intenção de Valeriano Machado, as «lições do avozinho» foram usadas para ilustrar a trilogia de Salazar: “Deus, Pátria Família”.
Valeriano Machado foi casado com D. Emília Correia Machado, de quem teve dois filhos, ambos bem colocados na vida, a Dr.ª Marina Correia Valeriano Machado, residente no Brasil, ainda viva, que usa o nome literário de Marina Frazão, e António Correia Machado, residente em Lourenço Marques, que julgo já falecido.
Por minha iniciativa e proposta, a Comissão de Toponímia de Faro atribuiu o nome de Valeriano Machado a um largo da cidade, em preito de homenagem a um farense que se distinguiu na poesia, no teatro, na imprensa escrita e radiofónica.