António Castello, aos quarenta anos |
Empresário
português radicado em Buenos Aires, capital da Argentina, onde mercê do seu
trabalho, sacrifício e abnegação logrou montar um negócio de mecânica automóvel, que foi progredindo até chegar a tornar-se numa das maiores empresas daquela
cidade.
Nasceu
em 1881, no seio de uma família humilde e modesta, na freguesia de Estoi, concelho
de Faro, e quando chegou aos 21 anos de idade, vendo-se sem emprego, sem
esperança e sem futuro, optou pelo caminho que muitos rapazes da sua geração
seguiram, o da emigração. Estávamos em 1902, e nessa altura corria no espírito
aventureiro da juventude a atracção pela estrada atlântica, na perspectiva de
aí alcançar uma nova oportunidade de vida. O futuro dos mais desfavorecidos
encaminhava-se novamente para o Brasil, onde a língua era mãe e onde havia
sempre uma mão amiga, que a colónia lusa que antes ali se havia radicado,
estendia aos que chegavam imbuídos da mesma esperança de sucesso e de
prosperidade. Foi assim nas últimas décadas do século XIX, uma quimera que
enfeitiçou milhares e milhares de portugueses que do norte do país, do Minho,
do Douro e das Beiras, desempregados pela praga da filoxera que destruiu os
vinhedos onde ganhavam o pão, tiveram que emigrar, deixando as nossas terras
setentrionais quase despovoadas.
Quando
o feitiço do Brasil esmoreceu, surgiu um novo «El Dourado» na terra das pampas
meridionais da América. Eram as terras do Rio da Prata, a nova e próspera
Argentina, que se levantava numa onde de progresso, de crescimento económico e
de desenvolvimento agro-industrial. Os pobres da Europa Ibérica e mediterrânica
acorreram em massa, sequiosos de esperança, de trabalho e, sobretudo, de um futuro,
que lhes permitisse erguer um lar e criar uma família. Foram, tal como o António
Castelo, aos milhares de homens e mulheres, gente de todas as idades, de diferentes
nações, línguas e credos, para lavrarem a terra, esventrarem as montanhas,
extraírem o minério de cobre e de ferro, criarem o gado, lanígero. bovino e
cavalar, enfim…, foram para estabelecer os fundamentos do mundo latino.
Buenos Aires, centro, Jardim de Julho, em 1920 |
O
António Castelo, com seus 21 anos de idade, em plena posse do seu vigor e
inteligência, empregou-se numa grande casa comercial, onde em breve seria o
fiel de armazém, conquistando a simpatia dos patrões, dos clientes e dos seus compatriotas,
que nele viram logo o talento do sucesso. Com o decorrer dos anos foi ganhando
confiança e maior conhecimento sobre o trato e a dinâmica macroeconómica, e
mercê do seu esforço e dedicação à empresa conseguiu fazer muitos negócios de
âmbito intercontinental, tendo a Europa e em especial o nosso país como
plataforma giratória do avultoso comércio da carne, das madeiras, do aço, das
peles, etc.
Dez
anos depois António Castello era já muito considerado entre a colónia
portuguesa, por ser um jovem muito trabalhador e inteligente, sempre atento às
inovações americanas e muito dedicado à leitura dos principais órgãos da
imprensa europeia. Talvez por essa influência é que tornou fiel seguidor do
ideário republicano, e grande admirador de Afonso Costa, então na pasta da
Justiça, cuja reforma judicial costumava apontar como uma marca da moderna
civilização ocidental. Foi por essa altura que começou a assentar raízes e a pensar
criar o seu próprio negócio. Ouviu conselhos, auscultou os seus amigos mais
proeminentes da colónia lusa de Buenos Aires, estudou as propostas de
financiamento e decidiu avançar com um negócio da sua iniciativa.
Buenos Aires, capital da Argentina, cerca de 1920 |
O
primeiro passo foi escolher uma mulher que o pudesse acompanhar nessa aventura
que iria mudar a sua vida. Escolher uma jovem, filha de boas famílias da
mãe-pátria, chamada Gertrudes que o fez feliz e lhe deu seis filhos. Ao fim de
vinte anos de trabalho, deixou a casa comercial, onde trabalhara com tanto
afinco, para avançar em sociedade com o seu amigo Francisco Viegas, na criação
de uma empresa ligada ao ramo automóvel, um sector que começava a dar grandes
frutos na Argentina. Essa empresa, com a designação de «Viegas y Castelo», ligada
à venda e reparação de veículos, tornar-se-ia a breve trecho num dos principais
estabelecimentos do ramo automóvel em Buenos Aires. Os clientes e amigos, assim
como os seus compatriotas, passaram a tratá-lo por Dom António, em sinal de
respeito e consideração pelo seu sucesso no difícil mundo empresarial.
Um
dos seus amigos, entre os mais leais e sinceros, era o jornalista Francisco Paulo
Madeira, que nas colunas do semanário «O Jornal Portuguez», de que era director
e proprietário em Buenos Aires, publicava sempre notícias do seu amantíssimo
Algarve, sobretudo de Loulé, de onde eram naturais muitos dos seus assinantes e
leitores. Volta e meia surgiam nas colunas do seu jornal, a propósito das
empresas portuguesas de maior sucesso na capital argentina, notícias sobre a
empresa de António Castelo, assim como de outros algarvios que se dispersaram
pelo país das Pampas.
Cabeçalho do jornal de Paulo Madeira em Buenos Aires |
Vem
a talhe de foice lembrar que este Francisco Paulo Madeira, natural de Alte,
concelho de Loulé, deixou no Algarve um rasto de lenda e de heroísmo, por ter
sido um corajoso e indomável lutador pela implantação da República. Era um
homem inteligente e talentoso, que lutava pelos seus ideais com a luz da razão.
Porém tinha um espírito muito difícil de contrariar, que ainda por cima fervia
em pouca água. Por vezes, quando os seus adversários não se deixavam vencer
pela razão das suas ideias, recorria então ao vigor, à coragem e destreza dos
punhos.
Francisco
Paulo Madeira, ainda jovem, revelara-se nas colunas do semanário «O Louletano»,
fundado em 9-1-1893, como um jornalista de grande ilustração e pureza de
estilo, embora nas suas palavras e afirmações sempre refulgisse o ideário republicano
e o seu espírito anticlerical. Anos depois, a 20-5-1909, teve a ousadia de
fundar por sua conta e risco o semanário «O Povo Algarvio», que se apresentava
como “semanário republicano independente”. Tinha como ódio de estimação o seu
oponente monárquico, o semanário «Notícias de Loulé», fundado em 30-5-1909, e dirigido
pelo padre Manuel Bazílio Correia. Este jornal além de ser monárquico era profundamente
católico, fazendo dos republicanos, o alvo principal dos seus ataques, acusando-os
de assassinos (por terem matado o Rei), de diabólicos coveiros da pátria e de anticristos.
Estas diatribes enfureciam o Paulo Madeira que na tribuna do seu «Povo
Algarvio» desancava os monárquicos com os maiores impropérios. Por vezes, o
nível baixava a tal ponto que chegava a roçar na chinela. Daí nasceu um
episódio desagradável que marcou a vida de Paulo Madeira, suscitando
inclusivamente o desconforto de ter que emigrar da sua terra-natal para a
longínqua Argentina. O caso conta-se em duas palavras. O Manuel Madeira envolveu-se
em acesa polémica com o Padre Bazílio Correia, da qual resultaria a suspensão
do jornal republicano, obrigando o Paulo Madeira a fundir o seu jornal com os
«Ecos do Sul» de São Brás de Alportel, passando por isso a ser apelidado
acintosamente pelo seu adversário monárquico como «o bifronte». Daí resultou
que num belo dia o Paulo Madeira em plena via pública quisesse tirar desforço
do padre, havendo punhos e cuspidelas pelo ar. Chegou-se a falar numa pistola
virada às fraldas da sotaina que felizmente não chegou a disparar. O caso foi a
tribunal, mas a República implantada dali a pouco sanou tudo. O jornal
monárquico fechou as portas, o Paulo Madeira saiu por cima. Todavia, nos anos subsequentes
ao novo regime a sua pena continuou agressiva, não poupando críticas às novas vereações
camarárias nem aos deputados que no parlamento defendiam mais os interesses
pessoais do que os da própria pátria. Não tardou muito a que os seus antigos correligionários
lhe silenciassem a pena, considerando o Paulo Madeira como persona non grata aos
olhos do povo de Loulé. Por essa razão, farto das lutas partidárias, emigrou
par a Argentino, onde voltou a erguer a sua tribuna de jornalista, isenta de
polémicas políticas e de interesses partidários.
Quando
o seu amigo e compatriota, António Castello, faleceu aos 47 anos de idade, numa
sexta-feira 13, do mês de Julho de 1928, no hospital de Buenos Aires, onde
esteve internado alguns meses, Paulo Madeira, sentiu de forma muito profunda a
sua morte, como uma enorme perda para toda a comunidade lusa. Traçou-lhe o
elogio fúnebre numa comovente notícia da qual respigamos, em jeito de
encerramento, estas sentidas palavras:
«Enérgico e sóbrio, empreendedor persistente
e honrado como a própria honra, bem merecia melhor prémio às suas actividades
do que aquele que a sorte lhe destinou. Bom, sumamente bom, quasi poderíamos dizer
divinamente bom – já que a imensa bondade dos raros António Castello que hoje
topamos na vida deve derivar, talvez daquele sopro divino com que Deus alentou
o barro de que modelou o género humano – toda a sua vida foi consagrada ao bem
dos outros, com um tão impressionante espírito de sacrifício, com uma tão
voluntária boa vontade que, cativando os corações os obrigava à gratidão.»
Cemitério da Recoleta em Buenos Aires, em 2018 |
António
Castelo foi a enterrar no dia seguinte, no cemitério da Recoleta em Buenos
Aires. Ao seu funeral compareceram milhares de pessoas, na sua esmagadora
maioria emigrantes portugueses, que choravam a sua inesperada morte como uma
perda irreparável. Deixou à viúva, Gertrudes Castello, a difícil tarefa de
criar os seus seis filhos, alguns dos quais eram ainda de tenra idade. Por lá
ficaram, em Buenos Aires, prosseguindo a empresa que o seu progenitor lhes
deixou, até que o tempo os dispersou a todos pelos insondáveis meandros da
vida.
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