Espírito empreendedor e algo aventureiro, dotado de
grandes capacidades de trabalho, inteligência repentina, argúcia de filósofo,
talento a rodos, mas desperdiçado em actividades de inferior relevância.
Escrevia com facilidade em prosa e em poesia, dispersando-se pelos jornais
locais até chegar às colunas da imprensa da capital. A partir de então, com o
nome estampado nos jornais diários, tornou-se numa figura de superior
pertinência e destaque.
Republicano até à medula da alma, foi um dos chamados
“heróis da Rotunda”, pois que, com armas na mão, tomou parte activa na
Revolução do 5 de Outubro em 1910. Mas essa foi uma das suas medalhas de
juventude de que pouco ou nada se orgulharia porque a República além da
desilusão em que a transformaram os seus políticos, foi também um regime de
grande conflitualidade na ordem pública, marcado por vários levantamentos
militares, desobediência civil, terrorismo urbano, ataques bombistas, greves
violentas do operariado, constantes crises governativas, em suma um clima de
instabilidade política que só contribuiu para o descrédito do novo regime, em
que as gerações jovens tinham depositado tantas esperanças.
Fachada do antigo Teatro Apolo, na Rua da Palma em Lisboa |
A vida nesses atribulados anos também não lhe correu
bem. Sentiu que os magros cobres granjeados no jornalismo não eram suficientes
para governar a vida, razão pela qual tentou encontrar no teatro os meios de
sobrevivência com que pudesse pagar as dívidas. Por isso, escreveu para o
Teatro Apolo uma revista intitulada «Risos e Flores», que embora levada à cena
não teve o sucesso almejado pelo seu autor.
Felizmente existem depositados na Biblioteca
Nacional, em Lisboa, pelo menos dois exemplares impressos, desta peça teatral, sendo
que um deles é o texto original, ou seja, a versão literária da mesma, datada
de 1920, idealizada muito antes de ser levada à cena em Lisboa. Para elucidação
dos bibliófilos, aqui fica a descrição deste pequeno e raro livro, com que José
António Valeriano Machado se estreou nas letras e no teatro: Riso de Portugal, Riso Amarelo ou Risos e Flores,
Lisboa, Tip. do Comércio, 1920.
A outra edição desta peça corresponde à versão que
foi levada à cena no Teatro Apolo, contendo o texto e as coplas em verso,
inspiradas no gosto popular, que compunham o corpo cénico desta revista teatral.
Tem esse folheto, de apenas 14 páginas, a seguinte descrição bibliográfica: Coplas da Revista, em dois actos e 2 Quadros,
Risos e Flores, música de Vasco Macedo e Bernardo Ferreira», 1920.
Desiludido com a situação política da sua amada
República, mas também para escapar às responsabilidades que lhe eram imputadas
em determinado processo judicial, emigrou para o Brasil onde se fixou durante
alguns anos. Todavia, razões de vária índole, próprias do seu espírito
aventureiro, não lhe permitiram alcançar o sucesso desejado.
Assim, desapontado com o Brasil, onde a vida não lhe
correu de feição, regressou à pátria, fixando-se em Lisboa. Empregou-se na
redacção de «O Século» - um diário de larga expansão e sucesso, porta-voz do
nosso incipiente capitalismo - onde como jornalista desenvolveu intensa
actividade. Foi na qualidade de redactor do «Século» que tomou parte no grupo
de plumitivos que fundou a Associação dos Jornalistas Portugueses, cujo
programa cultural e objectivos sociais defendeu e divulgou nos órgãos da
capital. Desse núcleo embrionário surgiria mais tarde o Sindicato dos
Jornalistas e a Associação da Imprensa de Portugal.
Receoso do seu futuro como jornalista, decidiu
empregar-se como funcionário da União dos Grémios da Indústria Hoteleira, ao
serviço da qual recebia um vencimento, que não sendo avultado era, contudo,
infalível e suficiente para sobreviver. Nessas funções chegaria à idade da reforma,
sem brilho nas letras, é certo, mas também sem sobressaltos na vida.
Sede da Emissora Rádio Graça, na rua da Verónica, Lisboa |
No tempo em que residiu no Rio de Janeiro, escreveu
e publicou um belo livro de versos, no qual constam várias composições poéticas
datadas de Faro. Encontramos um exemplar na Biblioteca Nacional, em Lisboa, do
qual aqui deixamos a descrição oficial: Cinzas…
Poesia Tosca, Rio de Janeiro, Imp. Moderna Carinhas, 1926, 117 p., [4] f.,
17 cm (BNP: L. 34979 P.). Curiosamente, este mesmo livrinho teve no ano
seguinte, em 1927, uma nova edição, embora me pareça que deve ter sido apenas
uma republicação da versão do ano anterior. Este procedimento não era raro nessa
época, porque as edições de livros faziam-se primeiro com poucos exemplares (por
vezes uma centena de exemplares) para testar o acolhimento público da obra,
fazendo-se, em caso de resposta positiva, um aumento de exemplares à edição
inicial. É por isso que em certas obras vemos no frontispício a indicação de
1º, 2º ou 3º milhar, em vez de 1ª, 2ª ou 3ª edição, por se tratar de um aumento
da publicação de exemplares e não de edições espaçadas por diferentes anos de
publicação.
Botão de lapela, Rádio Graça |
Só lamentamos que este livro seja hoje raro de
encontrar, até mesmo no Brasil, e, por isso, difícil de chegar às mãos do comum
leitor. Infelizmente, à excepção da Biblioteca Nacional, em Lisboa, não existe
em mais nenhuma outra biblioteca pública do nosso país.
Emblema da Rádio Graça, Lisboa |
Nos últimos anos de vida, Valeriano Machado,
pronunciou aos microfones da «Rádio Graça» de Lisboa uma palestra semanal sobre
temas muito diversos, como a instrução graciosa e pós-laboral da classe
operária, a moral nacionalista e a ética social, a conduta religiosa do povo, o
combate à mendicidade e a assistência aos pobres, poesia popular e teatro
radiofónico, a leitura e a educação cívica dos trabalhadores, etc... Na esteira
desse programa radiofónico publicou um pequeno jornal, em forma de boletim, de
que saíram impressos, entre 1941 e 1942, pelo menos seis números, cuja edição
cessou devido aos condicionalismos da guerra. Esse boletim publicou-se com a
designação de «Rádio Graça», sob a direcção de Valeriano Machado e edição de
Américo dos Santos, Lisboa, 1941-1942. Os textos eram na sua maioria do
Valeriano Machado, resumindo alguns programas difundidos, noticiando os
melhoramentos do bairro da Graça, o sucesso de alguns dos seus moradores, assim
como realçava os progressos técnicos da própria estação.
Algumas rádios dos Emissores Associados de Lisboa |
Esta estação radiofónica, sediada no Bairro da Graça,
daí a sua designação, iniciou a emissão publica em 27-3-1932, sob a égide de
Américo Santos, um simples guarda-livros que teve a inteligência e ousadia de divisar
novos projectos e mais promissores horizontes, através da fundação de uma
modesta antena de rádio, que viria a tornar-se num verdadeiro caso de sucesso
através da inovadora emissão do teatro radiofónico nos anos cinquenta do século
vinte. Uma das peças mais aclamadas pelo público desse tempo foi o drama «A
Força do Destino», que em 1954 chegou a ter entre os lisboetas uma audiência
sem precedentes, a tal ponto que até a Emissora Nacional passou a inserir
diariamente um espaço teatro radiofónico, à hora do almoço e à hora do jantar,
com peças dos maiores dramaturgos nacionais e estrangeiros. Devido ao seu
enquadramento num bairro lisboeta, a «Rádio Graça» era uma espécie de rádio
local com fraca expansão hertziana. Não tinha hipóteses de competir com as grandes
antenas que dominavam o espaço nacional, nomeadamente a «Emissora Nacional», o «Rádio
Clube Português» e a «Rádio Renascença». Para poder ampliar o seu alcance, Américo
Santos decidiu nos anos cinquenta juntar-se a uma quarta antena de âmbito
nacional, os Emissores Associados de Lisboa. Deste modo, passou a fazer parte
de um grupo de quatro estúdios com audiência nacional, no qual se integravam
também a «Rádio Peninsular», o «Clube Radiofónico de Portugal», e a «Rádio Voz
de Lisboa».
Disco de 78 rpm gravado na «Rádio Graça», a 4-12-1959 |
A popular «Rádio Graça» chegou a ter em Lisboa quase
um milhar de associados, que pagavam as suas quotas para ouvir diariamente, as
notícias locais, as canções e os fados mais populares, mas também os contos tradicionais
portugueses, as palestras do desporto e da cultura, os preceitos sobre a vida
cívica, e sobretudo as peças de teatro radiofónico, cujo patrocínio da marca de
detergentes «Tide» foi o garante da sua sobrevivência até 1975, quando aquela emissora
foi nacionalizada e logo a seguir encerrada, por não se enquadrar na linha convergente
à nova ordem política.
Entre os programas de maior sucesso da «Rádio Graça»
distinguiam-se os contos, as lições de história pátria e as palestras infantis,
para a educação e formação cívica das crianças, da autoria de Valeriano Machado.
Convém esclarecer que este programa tinha sido primeiramente difundido pelo seu
autor na «Rádio Hertz», que depois o fez ressurgir aos microfones da «Rádio
Graça», ainda com mais sucesso e maior difusão. É curioso notar que cada um dos
programas tinha uma lição pedagógica a incutir no espírito das crianças. Por
isso era personalizado, isto é, tinha dedicatória a uma criança em particular,
geralmente um filho ou neto de um associado da rádio, ou de um amigo do próprio
autor. E o nome da criança era enunciado com todo o carinho, como que a
pressagiar-lhe um auspicioso futuro. foram depois reunidas num volume que deu à
estampa com o título de Lições do
Avozinho, método aprazível e intuitivo, Lisboa, Tip. da Gazeta dos Caminhos
de Ferro, 1940. A edição deste livro inscreveu-se no âmbito das Comemorações
Centenárias, uma espécie de apoteose do regime de Salazar, cuja nação
dimensionada pelos cinco continentes se apresentava em paz e em prosperidade,
perante uma Europa em guerra, possuída do espírito nazi e ameaçada pelo
espectro da autodestruição. O livro de Valeriano Machado, cujo conteúdo era de
uma inocência desarmante, expressava uma mensagem patriótica e paternalista que
na essência convinha à propaganda nacionalista do regime. As lições moralistas
que o autor infundia no espírito das crianças, favoreciam a apologia do país onde
florescia a paz e o bom entendimento entre os cidadãos, sem o divisionismo partidário
nem a desordem da democracia. Sem ser essa a intenção de Valeriano Machado, as «lições
do avozinho» foram usadas para ilustrar a trilogia de Salazar: “Deus, Pátria
Família”.
Valeriano Machado foi casado com D. Emília Correia
Machado, de quem teve dois filhos, ambos bem colocados na vida, a Dr.ª Marina
Correia Valeriano Machado, residente no Brasil, ainda viva, que usa o nome
literário de Marina Frazão, e António Correia Machado, residente em Lourenço
Marques, que julgo já falecido.
Por minha iniciativa e proposta, a Comissão de
Toponímia de Faro atribuiu o nome de Valeriano Machado a um largo da cidade, em
preito de homenagem a um farense que se distinguiu na poesia, no teatro, na
imprensa escrita e radiofónica.
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