segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Caracterização dos serrenhos algarvios e retrato psicológico do Remexido


Retrato de D. Miguel como Rei de
Portugal e dos Algarves
No período de acendimento das guerrilhas miguelistas, que decorreu com particular acuidade entre 1836 e 1838, precisamente no período da governação Setembrista, o povo algarvio costumava dizer que esses haviam sido os “anos do barulho”, durante os quais “se abateram palácios e se ergueram monturos”. Queriam com isto dizer, que nesses anos de acesa contestação armada, pelas tropas rebeldes que sustentavam a causa absolutista, arruinaram-se muitas das mais tradicionais famílias nobres, cujos bens patrimoniais foram saqueados de forma atrabiliária, em nome da revolução e das vinganças populares.
Por todo o país se assistiu às mais execráveis violências, sem respeito pelas leis dos homens nem pelos divinos mandamentos da Igreja. O povo desembolado assaltou muitas casas apalaçadas, solares antigos e nobres quintas, saqueando, incendiando e derrubando tudo, para saciar ódios insanáveis, acumulados ao longo de séculos. A velha ordem social morria às mãos da plebe. O antigo regime senhorial, transformara-se em relações de antagónicos interesses, em conflitos sem perdão, em irreconciliáveis relações sociais. A sacralidade do trono, a estanquidade social repartida em ordens, a justiça estatutária e o privilégio foram os coveiros do antigo regime absolutista.
Ainda assim, e mesmo contra a corrente do pensamento e dos ventos políticos da nova Europa, organizou-se a resistência e a contrarrevolução sob a invocação dos “inauferíveis direitos” de D. Miguel ao trono de Portugal. Organizou-se no norte transmontano uma onda de oposição armada, contra o governo e as novas instituições liberais, que teve encarniçado apoio a Sul, com particular relevo para as guerrilhas encabeçadas no Algarve pelo tristemente celebrado Remexido.
O mais conhecido retrato do Remexido
Não vou agora falar nessa problemática histórica, aliás largamente abordada por mim em obras e estudos já tornados públicos. Vou apenas transcrever aqui um pequeno trecho publicado na imprensa da época, em 1837, no qual se faz uma breve, mas muito esclarecida, caracterização dos “serrenhos algarvios”, que se juntaram ao Remexido para sustentarem a causa absolutista no Algarve. Não sendo um retrato muito favorável, é, no entanto muito realista, sobretudo no que toca à capacidade de sacrifício e de sofrimento das gentes da serra algarvia, que por tradição e ignorância associavam à causa miguelista a defesa da Igreja e das sagradas instituições religiosas. Atente-se no curioso facto das mulheres dos guerrilheiros se vestirem de luto, para esconderem a ausência dos mesmos, que, no caso de serem interrogadas pelas autoridades, davam como falecidos durante a calamitosa epidemia do cólera-mórbus, ocorrida no verão de 1833.
Ouçamos, então, a descrição do serrenho algarvio, nos precisos e inalteráveis termos usados na época:
«Os Serranos são na realidade bastante rústicos, e muito sofredores, de modo que nem a fome, nem a intempérie do tempo lhes causa grande receio. Elles professam um indizível afèrro (pela maior parte) a essas devoções, e actos religiosos a que hoje muitos appellidam de fanatismo, e a idéa de que o systema Liberal concorre (segundo lhes fazem crer) para o extermínio do Culto, é só a verdadeira causa de andarem com o Remechido.
A serra fornece-lhes o parco sustento de que usam, e as mulheres que habitam nas poucas Aldêas que são mais transitadas, por uso andam de luto, quando os maridos andam com o Remechido, e dizem a quem as pergunta, que eles morreram da cholera.
A serra póde-se dizer inexpugnável, e a não serem os naturaes ninguém alli se entende.[1]
Nesta mesma fonte, também se insere uma curiosa descrição do carácter e personalidade do próprio Remexido, que, não sendo um retrato muito original daquele célebre guerrilheiro, tem, porém, o interesse de o pintar como um homem comum, nos seus defeitos e virtudes, e não com as cores da fera, que talava a ferro e fogo a serra algarvia derramando o sangue inocente dos seus adversários, sem dó nem piedade.
Já que aqui transcrevemos os termos com que no periódico «O Telégrafo» [2] se descreveu os facinorosos serrenhos algarvios que acompanhavam o Remechido, na defesa do Trono e do Altar, porque não transcrever também os termos com que nesse periódico se traçou o perfil do seu destemido comandante e herói popular da causa miguelista? Pois bem. Aqui fica o seu retrato, esboçado sem rancor nem perfídia, revelando ao público um homem que por ter sido perseguido e acusado das maiores ignomínias, se viu privado da amnistia a que tinha direito, pegando em armas para se defender da sanha dos seus algozes:
«O Remechido é um homem de cincoenta annos, pouco mais ou menos, de mediana estatura, porém muito sagaz, e ainda mais destemido. Possue uma soffrivel casa, que hoje está estragada, mas que n'outro tempo bem satisfazia ás suas precizões. É casado, e tem duas filhas, e um filho; o qual com as lições do Pai parece que desde já o imita.
Este guerrilheiro não desconhece de todo a arte dos beligerantes, e não obstante ter apenas exercido um pequeno posto em corpos arregimentados, com que tudo combina planos, e propõe acções com muita sagacidade. Dizem-nos que na acção que o Cabreira deo em S. Bartholomeu de Missines [sic], a elle só foi devido o resultado della.
Remechido é um homem que nada inculca exteriormente, porque a sua fisionomia e talhe são bastante tristes, mas dizem os que o tem tratado, que é docil para com os amigos. Quando entra em fogo costuma vestir um capote de soldado, e pôr um bonet mui simples, e é com este traje, e sem mais divisa que corre ao logar do perigo. O seu valor é confessado pelos que o combatêram, e a viveza que nestas occasiões se lhe acha atestam o seu sangue frio.
Eis o homem que, como por encanto, tem persistido com um punhado de adherentes, ora na serra, e ora nas povoações que lhe ficam próximas, e contra o qual já alguns corpos tem tentado em vão.» [3]
__________________
[1] Extraído de «O Telégrafo», nº 5, de 21 de Outubro de 1837, pp. 66-67.
[2] Este periódico, com sede em Lisboa, publicou-se em formato de revista, a duas colunas, num tamanho muito semelhante ao do nosso actual A5; dizia-se em subtítulo como periódico noticioso, mas pelos textos publicados percebia-se que tinha uma forte inclinação miguelista, o que deve ter sido a causa próxima da sua precoce extinção, já que apenas saiu à luz do dia entre 12 e 28 de Outubro de 1837.
[3] Idem, ibidem.

sábado, 28 de dezembro de 2019

A vila de Albufeira – «Baluarte de Fidelidade» ao Liberalismo

Desenho da Guarda Nacional 
(in Picturesque Review of the
Costume of the Portuguese
, 1836)

Em 1820 foi o primeiro concelho no Algarve em que se organizou a Guarda Nacional. Convém, já agora, esclarecer que a Guarda Nacional foi instituída no nosso país em 18-3-1823, para funcionar como milícias armadas, cujo objectivo era salvaguardar o regime liberal, garantir a ordem pública e a defesa militar das pequenas localidades, em caso de ataque, numa situação de guerra.[1]
Em 1826 foi a vila de Albufeira invadida pelos Regimentos de Infantaria 14, Batalhão de Caçadores nº 4 e parte do Regimento de Artilharia nº 2, que haviam clamado D. Miguel, no intuito de obrigar a Câmara e restantes cidadãos a jurarem fidelidade à causa da usurpação. Isso fez com que dali se retirassem para Beja os vereadores, autoridades e melhores cidadãos, acompanhados pelo Coronel José de Mendonça Corte Real e pelo seu Regimento de Milícias de Lagos, que para ali se havia dirigido para defender, em vão, os direitos da Carta Constitucional.
Em 1833, após o desembarque do Duque da Terceira, os albufeirenses acorreram às casas da Câmara para jurarem e firmarem o auto de aclamação e fidelidade a D. Pedro e sua filha D. Maria II. Fizeram-no livremente, julgo que por convicção política dos seus principais cidadãos. Porém, o Remexido ao tomar conhecimento dessa aclamação, cercou e atacou a vila, saqueando-a e incendiando-a. Nesse ataque foram assassinadas várias pessoas, diz-se que às mãos do Remexido pereceram 86 dos mais ilustres cidadãos daquela vila. Na própria igreja foi assassinado, com dois tiros e onze punhaladas, o major Severino José de Sequeira Samora, que com cerca de 80 anos morreu abraçado aos seus familiares.
Durante a guerra-civil chamavam à vila de Albufeira a Gibraltar portuguesa por ali se facilitar refúgio aos constitucionais, que depois dali emigravam para o Reino Unido, e outros portos da Europa. 
Albufeira, pintura de George Landman, 1813
Os albufeirenses alistaram-se voluntariamente nas milícias que combateram e destroçaram a guerrilha do Remexido. Em retribuição desse importante gesto de patriotismo e sacrifício, D. Pedro IV enviou pessoalmente à Câmara de Albufeira uma carta, escrita pelo seu próprio punho, a agradecer os serviços prestados à sua causa, e outorgando-lhe o epiteto de «Baluarte de Fidelidade». Nessa altura, o concelho de Albufeira recebeu, para a sua administração, as freguesias de Pera e Alcantarilha.
Porém, dois anos depois, na vigência política conhecida por “Setembrismo”, tudo se alterou. A vila de Albufeira perdeu a influência que com tanto sacrifício lograra conquistar. A prova disso ficou demonstrada na remodelação do seu património administrativo. As freguesias de Pera e Alcantarilha perdeu-as para o concelho de Silves, e até a pingue aldeia de Boliqueime lhe foi retirada, para enriquecer a administração autárquica de Loulé.

[1] Percebe-se que as origens da Guarda Nacional estão directamente relacionadas com as ideias políticas que inspiraram a Revolução de 1820. Por isso, quando ocorreu a Vilafrancada, em 1823, de inspiração reacionária e absolutista, decretou-se quase de imediato a abolição da Guarda Nacional. Importa dizer que, como tropa de 2.ª linha, tinha as mesmas funções até aí exercidas pelos antigos Regimentos de Milícias do Reino. Após a guerra-civil e a reimplantação do regime liberal, a Guarda Nacional foi recriada em 1834, acabando por ser definitivamente extinta em 1847, no seguimento da guerra da Patuleia.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Prostitutas constitucionais

«A Severa», aguarela de Roque
Gameiro, no livro de Júlio Dantas

Durante o período da usurpação miguelista, que se prolongou de 1828 a 1834, as perseguições políticas tornaram-se tão comuns que o espírito quotidiano era marcadamente exclusivista e fanatizado. Os obreiros desse odioso facciosismo, vulgarmente designados por “caceteiros”, controlavam a cidade de Lisboa, quase rua a rua, interrogando os transeuntes de forma torpe e violenta sobre a sua fidelidade ao Trono e ao Altar. E na fanatização popular a Igreja, sobretudo o clero menor, desenvolveu um papel crucial, atribuindo aos liberais o epíteto de hereges e maçons, a verdadeira encarnação do anticristo.
A «Odalisca», quadro célebre de Francois Boucher
Por estranho que pareça as ideias constitucionais – leia-se espírito liberal, humanista e democrático – tinham também adeptos e apoio no seio da marginalidade sexual, no chamado bas-fond social lisboeta, especialmente nos bairros mais castiços e de maiores tradições, como por exemplo o do Castelo, Alfama, Santa Isabel, Mouraria e vários outros que o fado e a fadistagem tornaram célebres.
Embora ignorantes, arruaceiros e destemidos no manejo da sarda, pico ou naifa, que tudo quer dizer o mesmo, estes marginais, contrariamente ao que seria de esperar, recusavam submeter-se às impiedosas forças da ordem, não tanto pela sua natural insubmissão, mas principalmente por apoiarem de alma e coração os rebeldes “malhados”, epíteto com que se designavam as hostes liberais e a facção pedrista. Por sua vez a burguesia, mais instruída e progressista mas não adversa ao casticismo da fadistagem, com quem muitas vezes se misturava nos momentos de maior contestação popular, esperavam com a revolução liberal poder vir a estabelecer uma nova ordem social para combater a miséria e o obscurantismo.
«Rolla», a prostituta, célebre quadro de Henri Gervex
Como exemplo da apertada vigilância das autoridades miguelistas e dos seus fanáticos apaniguados, conhecidos popularmente por “caceteiros”, citaremos o caricato episódio, ocorrido em 1830, relativo à detenção de duas prostitutas do bairro da Mouraria acusadas de entoarem o hino constitucional. Segundo os autos de pronúncia contidos no processo judicial, aquelas duas polhas foram vistas e ouvidas à janela dos seus quartos prostibulares a trautearem o hino constitucional.[1]
Curiosamente havia-se registado um caso idêntico, também na Mouraria, mais propriamente no Paço do Benformoso, onde além da escandalosa "frescagem" também era costume circularem folhas volantes contra os inauferíveis direitos de D. Miguel ao trono de Portugal.[2]
«Prostituição», quadro de Georg Grosz
Para terminar, gostaria de acrescentar que este meu breve texto não é mais do que uma simples curiosidade, um ligeiro e despretensioso apontamento, com revelar que o liberalismo ou regime liberal (que hoje se traduz por democracia parlamentar-constitucional) tinha forte apoio popular, mesmo no seio dos excluídos sociais, o que contradiz a ideia de ter como únicos apaniguados a burguesia, possidente e intelectualizada.
A prostituição nos bairros populares de Lisboa, sobretudo na Mouraria, sempre existiu, sendo verdade que muitas inspiraram poetas consagrados, como Bocage, Tolentino de Almeida, Antero de Quental, Guerra Junqueiro e tantos outros. Noutros casos, constituíram-se em personagens literárias, que ficaram candidamente retratadas em obras como «O Fado» de Bento Mântua, na «Rosa Enjeitada» de D. João da Câmara, na «Cidade do Vício» de Fialho de Almeida, no «O Primo Basílio» de Eça de Queirós, e muito especialmente em «A Severa» de Júlio Dantas, um sucesso de vendas, que passou ao teatro e depois se imortalizou como o primeiro filme sonoro da cinematografia nacional.




[1] Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Intendência Geral da Polícia, Correspondência dos Ministros dos diferentes bairros de Lisboa, Mouraria, Maço 106; [Elementos de Busca, nº 298. Relação 3 fls. 52-54 – “Relação dos Maços de Correspondência dos Ministros dos bairros da capital dirigidos ao Intendente Geral”].

[2] Cf. Pinto de Carvalho (Tinop), História do Fado, Lisboa, Pub. D. Quixote, 1982, p. 75.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Soneto do poeta Marcos Algarve, dedicado ao Presidente Manuel Teixeira Gome

Quadro pintado por Columbano, existente
no Museu da Presidência da República
Quando o nosso embaixador em Londres, Manuel Teixeira Gomes - já então um reputado escritor e um intelectual muito apreciado nos mais cultos areópagos europeus - aceitou o convite de Afonso Costa, e o apoio do Partido Democrático, para assumir a presidência da República, em 5 de Outubro de 1923, o país vivia momentos de instabilidade política e de grande indecisão sobre o futuro do próprio regime. O país vivia debaixo de uma enorme insegurança, com greves constantes, com atentados terroristas à bomba nas ruas de Lisboa, levantamentos militares nos quartéis e governos que se sucediam mais rápidos do que as estações do ano. Pior do que isso eram os escândalos políticos de corrupção e de compadrio partidário, que foram desacreditando o regime.
A eleição de Manuel Teixeira Gomes, tornara-se numa réstia de esperança para a sobrevivência da República, que se unia em torno de um "príncipe árabe vestido em Londres". Não foi o último presidente, mas foi o primeiro a profetizar junto do seu Ministro da Guerra, Óscar Carmona e do seu conterrâneo Mendes Cabeçadas, que a moribunda República lhes haveria de cair nas mãos, para mergulhar numa inexorável ditadura.
Teixeira Gomes, ao lado de Afonso Costa, a
bordo do navio inglês que, por ordem de S.M.B,
 o transportou oficialmente a Lisboa

Não vou referir-me a esses factos, mas tão só a um soneto que o poeta Marcos Algarve (pseudónimo de Francisco Marques da Luz, natural de Olhão, jornalista republicano e maçom) escreveu em homenagem a Manuel Teixeira Gomes, no dia 5 de Outubro de 1923, quando este se alcandorou à mais alta magistratura da nação portuguesa.


O Presidente da República
O requintado Artista das viagens,
O Cellini da prosa facetada
O caminheiro da alma enamorada
E de olhos embebidos nas paisagens

Sobe hoje ao Capitólio das miragens
Onde a Arte soberana, enclausurada,
Chama por ele, tímida e magoada,
E pede-lhe o recorte das Imagens!...

A mão, porém, do Chefe e dos Artistas,
No mesmo impulso arrebatado e frio,
Fará que a Pátria aos vendavais resista…

Coragem!... Vão ao leme do Navio
Os glóbulos do sangue fantasista
Dum coração brioso de Algarvio!

Marcos Algarve