quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

A origem da palavra Alfarrabista


Livraria Chaminé da Mota, conhecido alfarrabista do Porto
Numa das minhas aulas, referi-me, já não me lembro bem a que propósito, aos alfarrabistas como antiquários do livro, em cujas lojas se podem encontrar verdadeiras preciosidades, autênticos tesouros da nossa cultura e da nossa história. E aconselhei os jovens a procurarem nos alfarrabistas, não só os livros antigos e raros, mas também todo e qualquer livro que se encontre esgotado no mercado.
Um dos alunos, brasileiro de origem, com toda a franqueza e lealdade, perguntou-me o que significava alfarrabista, visto que no seu país chamam “Sebos” às lojas onde se vendem ou trocam livros usados. Parece que essa designação, “Sebo”, que aos nossos ouvidos é tão desagradável, procede do suposto manuseio dos livros, que pelo seu uso ficam "sebentos", isto é, engordurados pelas mãos dos seus leitores. É uma designação popular, mais natural e, vamos lá, mais realista, do que a nossa erudita nomeação de alfarrabista. Desta palavra descende também o vocábulo “alfarrábio”, que usamos muito para designar um livro grande, volumoso e, especialmente, um livro antigo. Daí pensar-se que dela deriva a denominação de alfarrabista, como local de venda de livros antigos (alfarrábios). Ora, é ao contrário, isto é, deriva da segunda a primeira, cujas origens se perdem lá para as bandas do Cáucaso, numa pequena cidade chamada Farab, nas imediações do mar Cáspio, presumo que situada no actual Turquestão, que na altura, século IX e X, estava ocupado por uma mescla de tribos e povos nómadas, que hoje designamos genericamente por turcomanos.
Na verdade, foi nessa cidade de Farab que nasceu, por volta de 850, um sábio árabe chamado Ibne Muhammad Tarkan, que por ter ali o seu berço começou a ser nomeado simplesmente como Ibne Farabi, em homenagem à sua terra natal, visto que traduzido à letra significa “filho de Farab”. E o mais curioso é que passou a ser desse modo invocado na cultura árabe, sem que alguém se preocupasse, nos séculos seguintes, com o seu verdadeiro nome, que, já agora, para esclarecimento público, se escrevia assim: Abn Nasr Muhammad ben Muhammad ben Tarkan al Farabi. Os seus mais directos discípulos chamavam-lhe Ibne Tarkan, nome que hoje se perdeu completamente, sendo invocado apenas como “Alfarabi”.
Livraria Castro e Silva, conhecido alfarrabista de Lisboa
Em boa verdade, Alfarabi é ainda hoje considerado como um dos maiores filósofos da civilização muçulmana, do qual descendem numerosos discípulos igualmente famosos, de entre os quais destaco a figura de Avicena, que teve um papel preponderante no mundo hebraico e na cultura ocidental. Mas, estava eu a dizer que Alfarabi era uma autoridade em várias áreas da cultura islâmica, sobretudo em leis e ética, tendo traduzido, e comentado, a Metafísica de Aristóteles, assim como A República e As Leias, de Platão. Como filósofo, mas também, como teólogo, escreveu vários tratados de grande fôlego e sólida erudição, tendo como desiderato a criação de um regime político perfeito, com base na República de Platão, adaptada ao Corão. É claro que não conseguiu porque, em muitos casos, incorria em perigosas heresias. O próprio Avicena, baseando-se nos comentários de Alfarabi, sobre a Metafísica de Aristóteles, tentou criar a escolástica islâmica, com escasso êxito, diga-se, tornando-se num fiel seguidor do mestre grego.
Tudo isto veio a propósito da tentativa de explicar a origem da palavra alfarrabista. Pois bem, acho que já se percebeu que é do nome da cidade de Farab e do sábio dali natural, autor de grandes e volumosos tratados usados nas escolas e universidades islâmicas, que por serem da autoria de Alfarabi passaram a designar-se por alfarrábios. Os colecionadores desses velhos livros passaram a ser conhecidos por alfarrabistas, e como muitos deles os vendessem a outros estudiosos da cultura helénica e até do mundo hebraico – não esqueçamos que os judeus tinham fama de grandes comerciantes de livros raros, transacionando a cultura europeia com a ciência oriental - fazendo do mar mediterrâneo uma feira de relações mercantis com as mais variadas civilizações. Surgiu então a designação de alfarrabista, não para os colecionadores de livros raros, mas especificamente para os comerciantes das preciosidades bibliográficas, como por exemplo mapas, gravuras, manuscritos e objectos de arte relacionados com a escrita e o livro, como por exemplo bustos e retratos de Aristóteles, Platão, Avicena, Averróis e outros sábios. É, porém, importante não confundir os antiquários livreiros, vulgarmente designados por alfarrabistas, com lojas de velharias, de bric-à-brac ou de antiguidades, onde por ventura também podem existir, num amontoado de coisas antigas e curiosas, alguns livros.
Tarcísio Trindade, fundador da célebre «Livraria Campos Trindade», 
que descobriu, em 1965, o mais antigo livro português impresso em
Portugal, o Tratado de Confisson, revolucionando a História do Livro
Portanto, que fique bem claro – um alfarrabista é um comerciante de livros usados, antigos e raros, onde se vendem fundamentalmente peças bibliográficas, a par de outras, igualmente invulgares, como mapas, gravuras e outros objectos relacionados com a escrita e a leitura. No entanto, convém ressalvar que existem alguns alfarrabistas no nosso país, que são antiquários livreiros, pelo facto de serem muito exigentes na antiguidade, na qualidade e, sobretudo, na raridade das peças bibliográficas, nos manuscritos e peças de arte que colocam à venda, para servir não só o público erudito, como também os mais exigentes colecionadores espaçlhados por esse mundo fora.
Neste último sentido, merecem particular realce alguns alfarrabistas de reputação nacional, estabelecidos em diversas cidades do nosso país, nomeadamente a «Livraria Académica», o «Chaminé da Mota» e a «Livraria Manuel Ferreira» no Porto; a «Livraria Campos Trindade», do erudito Tarcísio Trindade (1931-2011), a «Livraria Histórica e Ultramarina», fundada pelo bibliófilo José Maria da Costa e Silva [Almarjão] (1920-2008), a «Livraria Castro e Silva», o alfarrabista «Telles da Sylva», e o «Mundo do Livro», todos em Lisboa; a «Livraria Fernando Santos», em Braga, e a «Livraria Miguel de Carvalho», em Coimbra, que julgo terem sido os melhores livreiros antiquários do nosso país. Em Faro, temos a «Livraria Simões» que é o único alfarrabista no Algarve, a quem rendo as minhas homenagens pelo estoicismo com que tem resistido a todas as adversidades.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Manuel da Fonseca e a máfia dos literatos balofos

A última entrevista que o escritor Manuel da Fonseca deu à imprensa - por acaso um órgão de referência, «O Expresso» -, publicou-se a 20-03-1993, como derradeira homenagem á sua obra literária, visto que falecera nove dias antes da mesma sair a público.
Considero essa informal conversa, ao semanário Expresso, como um documento autobiográfico, muito útil para a compreensão da sua vida e obra. O escritor Manuel da Fonseca sempre foi um homem sem medo, que por isso sempre se colocou na margem esquerda da vida. E como à data da entrevista já tinha 81 anos de idade, sentia que o fim estava para breve. Daí que não cuidasse das palavras, a ponto de esconder a verdade, nua e crua, como sempre acontece com os nossos escritores, à excepção do Lobo Antunes, que esse nunca as poupou a ninguém.
Manuel da Fonseca, anos setenta, no Algarve
Manuel da Fonseca, anos setenta, no Algarve
Só para dar um exemplo do teor da entrevista, aqui vos deixo um breve trecho, que constitui a sua resposta à pergunta: «E como se movimenta nos meios literários?»
A resposta é lapidar. Disse o que pensava, e com absoluta sinceridade, sem medo da máfia de escritores desprovida de talento e génio, que de braço dado com a crítica acéfala, domina as editoras, os média e até o próprio ministério da Educação.
Ouçam bem as palavras de Manuel da Fonseca, e vejam lá se, nestes 27 anos que se seguiram, alguma coisa mudou:
Festa da Amizade, Santiago do Cacem, em 1981
«Muito mal. É uma jogada fina. Dizes bem de mim que eu digo bem de ti, nós é que somos bons. É um mundo com muita hipocrisia. Eu não frequento os meios literários, sou muito malcriado, porque digo logo o que sinto. Aliás nisso sou como o Lobo Antunes. Hoje há uma intelectualidade balofa, uma vaidade de calça de ganga: grandes parangonas nos jornais, deste e daquele escritor, mas tudo é efémero, nada vai ficar - como a rosa daquele poeta francês
É por causa disso que vemos para aí uns tordos armados em escritores, cujo sucesso literário não se justifica no talento das suas obras, mas antes nos aventais que vestem em segredo, uns atrás dos outros, nos templos das colunas murchas.