Livraria Chaminé da Mota, conhecido alfarrabista do Porto |
Um dos alunos, brasileiro de origem, com toda a franqueza e
lealdade, perguntou-me o que significava alfarrabista, visto que no seu país
chamam “Sebos” às lojas onde se vendem ou trocam livros usados. Parece que essa
designação, “Sebo”, que aos nossos ouvidos é tão desagradável, procede do
suposto manuseio dos livros, que pelo seu uso ficam "sebentos", isto
é, engordurados pelas mãos dos seus leitores. É uma designação popular, mais
natural e, vamos lá, mais realista, do que a nossa erudita nomeação de
alfarrabista. Desta palavra descende também o vocábulo “alfarrábio”, que usamos
muito para designar um livro grande, volumoso e, especialmente, um livro
antigo. Daí pensar-se que dela deriva a denominação de alfarrabista, como local
de venda de livros antigos (alfarrábios). Ora, é ao contrário, isto é, deriva
da segunda a primeira, cujas origens se perdem lá para as bandas do Cáucaso,
numa pequena cidade chamada Farab, nas imediações do mar Cáspio, presumo que
situada no actual Turquestão, que na altura, século IX e X, estava ocupado por
uma mescla de tribos e povos nómadas, que hoje designamos genericamente por
turcomanos.
Na verdade, foi nessa cidade de Farab que nasceu, por volta
de 850, um sábio árabe chamado Ibne Muhammad Tarkan, que por ter ali o seu
berço começou a ser nomeado simplesmente como Ibne Farabi, em homenagem à sua
terra natal, visto que traduzido à letra significa “filho de Farab”. E o mais
curioso é que passou a ser desse modo invocado na cultura árabe, sem que alguém
se preocupasse, nos séculos seguintes, com o seu verdadeiro nome, que, já
agora, para esclarecimento público, se escrevia assim: Abn Nasr Muhammad ben Muhammad
ben Tarkan al Farabi. Os seus mais directos discípulos chamavam-lhe Ibne
Tarkan, nome que hoje se perdeu completamente, sendo invocado apenas como “Alfarabi”.
Livraria Castro e Silva, conhecido alfarrabista de Lisboa |
Em boa verdade, Alfarabi é ainda hoje considerado como um dos
maiores filósofos da civilização muçulmana, do qual descendem numerosos
discípulos igualmente famosos, de entre os quais destaco a figura de Avicena,
que teve um papel preponderante no mundo hebraico e na cultura ocidental. Mas,
estava eu a dizer que Alfarabi era uma autoridade em várias áreas da cultura
islâmica, sobretudo em leis e ética, tendo traduzido, e comentado, a Metafísica de Aristóteles, assim como A República e As Leias, de Platão. Como
filósofo, mas também, como teólogo, escreveu vários tratados de grande fôlego e
sólida erudição, tendo como desiderato a criação de um regime político
perfeito, com base na República de Platão, adaptada ao Corão. É claro que não
conseguiu porque, em muitos casos, incorria em perigosas heresias. O próprio
Avicena, baseando-se nos comentários de Alfarabi, sobre a Metafísica de Aristóteles, tentou criar a escolástica islâmica, com
escasso êxito, diga-se, tornando-se num fiel seguidor do mestre grego.
Tudo isto veio a propósito da tentativa de explicar a origem
da palavra alfarrabista. Pois bem, acho que já se percebeu que é do nome da
cidade de Farab e do sábio dali natural, autor de grandes e volumosos tratados
usados nas escolas e universidades islâmicas, que por serem da autoria de
Alfarabi passaram a designar-se por alfarrábios. Os colecionadores desses
velhos livros passaram a ser conhecidos por alfarrabistas, e como muitos deles
os vendessem a outros estudiosos da cultura helénica e até do mundo hebraico –
não esqueçamos que os judeus tinham fama de grandes comerciantes de livros
raros, transacionando a cultura europeia com a ciência oriental - fazendo do
mar mediterrâneo uma feira de relações mercantis com as mais variadas
civilizações. Surgiu então a designação de alfarrabista, não para os
colecionadores de livros raros, mas especificamente para os comerciantes das
preciosidades bibliográficas, como por exemplo mapas, gravuras, manuscritos e
objectos de arte relacionados com a escrita e o livro, como por exemplo bustos
e retratos de Aristóteles, Platão, Avicena, Averróis e outros sábios. É, porém,
importante não confundir os antiquários livreiros, vulgarmente designados por
alfarrabistas, com lojas de velharias, de bric-à-brac ou de antiguidades, onde
por ventura também podem existir, num amontoado de coisas antigas e curiosas,
alguns livros.
Portanto, que fique bem claro – um alfarrabista é um
comerciante de livros usados, antigos e raros, onde se vendem fundamentalmente
peças bibliográficas, a par de outras, igualmente invulgares, como mapas,
gravuras e outros objectos relacionados com a escrita e a leitura. No entanto,
convém ressalvar que existem alguns alfarrabistas no nosso país, que são antiquários
livreiros, pelo facto de serem muito exigentes na antiguidade, na qualidade e,
sobretudo, na raridade das peças bibliográficas, nos manuscritos e peças de
arte que colocam à venda, para servir não só o público erudito, como também os
mais exigentes colecionadores espaçlhados por esse mundo fora.
Neste último sentido, merecem particular realce alguns
alfarrabistas de reputação nacional, estabelecidos em diversas cidades do nosso
país, nomeadamente a «Livraria Académica», o «Chaminé da Mota» e a «Livraria
Manuel Ferreira» no Porto; a «Livraria Campos Trindade», do erudito Tarcísio
Trindade (1931-2011), a «Livraria Histórica e Ultramarina», fundada pelo bibliófilo
José Maria da Costa e Silva [Almarjão] (1920-2008), a «Livraria Castro e
Silva», o alfarrabista «Telles da Sylva», e o «Mundo do Livro», todos em Lisboa;
a «Livraria Fernando Santos», em Braga, e a «Livraria Miguel de Carvalho», em
Coimbra, que julgo terem sido os melhores livreiros antiquários do nosso país.
Em Faro, temos a «Livraria Simões» que é o único alfarrabista no Algarve, a
quem rendo as minhas homenagens pelo estoicismo com que tem resistido a todas
as adversidades.
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