sábado, 9 de janeiro de 2010

UMA NOITE COM O FOGO


José Carlos Vilhena Mesquita

Confesso que é sempre um prazer falar da obra do escritor António Manuel Venda, um dos mais jovens e promissores escritores da nova vaga literária, que tem emprestado às letras nacionais o brilho do seu talento e da sua ilustração intelectual. Devo acrescentar que o que mais me impressiona na sua forma de ser e de estar, assim como na sua personalidade de escritor, é a sua intrínseca e natural simplicidade, o seu espírito humilde e discreto, assim como a feição despretensiosa como encara o sucesso da sua obra e da sua relevante posição no contexto da moderna literatura portuguesa. Esses são apenas aspectos pessoais e muito particulares do homem/autor, que se reflectem e evidenciam na sua escrita e no seu próprio processo de criação narrativa, sendo, em minha opinião, de uma desconcertante simplicidade na forma como escolhe as palavras mais comuns para construir um texto muito difícil de elaborar, mas fácil de entender. Esta simbiose da facilidade da escrita e da compreensão do discurso narrativo, faz com que a sua obra literária se torne muito acessível e de apetecível leitura, sobretudo para o público jovem.
Este livro, Uma Noite com o Fogo, que tivemos a honra de apresentar oficialmente em Faro, na livraria «O Pátio das Letras», está integralmente redigido num discurso indirecto livre, que, no caso presente, constitui um recurso literário, ou uma estratégia de construção estilística, muito difícil de conceber e até mesmo muito raro de se ver no actual panorama da nossa literatura. Em todo o caso, o autor faz uso constante das exclamações, das interrogações, das reticências e dos localizadores temporais e espaciais que denunciam a presença do eu, aliás sempre recorrente e quase omnipresente na construção diegética da obra. Este recurso ao eu, denuncia claramente a existência duma trindade diegética, consubstanciada na simultaneidade do autor, do narrador e da personagem principal numa só figura – o eu. E na construção desse eu, surgem como aglutinadores do discurso indirecto os verbos declarativos, sendo que os processos de subordinação desaparecem neste modo discursivo, fundindo-se a voz do narrador com a personagem principal, como se falassem ambas em simultâneo. Mas, no fundo, o que torna este livro numa obra de singular relevância é a sua formulação narrativa, assente numa consistente estrutura sintáctica e numa bem concebida elaboração frásica, em cujo âmago sobressai a sua construção semiótica, atribuindo um forte pendor simbólico aos pequenos enfoques em que decorre a acção diegética. Por outro lado, todo o livro é trespassado por constantes retrocessos no processo narrativo, entre o passado da meninice do narrador/personagem, pleno de bucolismo e ingenuidade, em contraste com o tempo presente, cujo ambiente social e envolvência natural se foi desgastando e adulterando no assoberbante vórtice materialista da vida moderna.

Uma obra independente

Dificilmente se pode classificar esta obra do ponto de vista estético. Não segue correntes nem estilos predefinidos. Ao contrário das obras anteriores, António Manuel Venda distancia-se nesta Noite com o Fogo da estética neo-realista, tão do seu gosto literário, para fazer uma breve incursão pelo romance experimental da nova vaga anglo-saxónica. Daí que seja difícil de definir ou de enquadrar esta obra numa corrente estética reconhecida, pelo que a melhor maneira de a classificar será precisamente considerá-la como obra independente, livre e sem alinhados clichés estéticos, fugindo assim aos modelos literários e a outros figurinos academicamente estabelecidos.
Acima de tudo este livro é uma obra de arte, esboçada numa pintura de emoções e de sobressaltos, na qual sobressai avassaladora a luz do fogo, entrecortada pela tisne penumbra dos fumos e das cinzas que cobrem de horrendo negrume a noite de todos os desafios e de todos os desencantos. Neste quadro já não se vislumbra a outrora verdejante paisagem da serra algarvia, mas vê-se em traço impressionista a exasperada e indignada luta do autor contra um cenário de catástrofe, que se torna insuperável devido à falta de concertação de meios e de união de esforços para compor com outras tintas um panorama cenatório de heróicos sucessos humanos. O que inflama este livro é precisamente a centelha de génio do António Manuel Venda, cuja indefinida corrente estética faz transparecer um estilo muito peculiar, estruturalmente descritivo com movimentações bruscas e muito imprevisíveis, mas intrinsecamente pictórico, numa espécie de naturalismo pós-milenarista, transfigurando a placidez dos seres e dos espaços naturais em fantásticas mutações oníricas, sem serem terrificamente intranquilas ou pavorosas. Bem pelo contrário, a sua criatividade literária revela-se numa acentuada imaginação estética, muito forte e diversificada em subterfúgios cinéfilos e em fobias de íntimo psicologismo.
No meu conceito, A.M.V. é um escritor da dialéctica espiritual, em toda a plenitude desse aparente contra-senso, cuja obra Uma Noite com o Fogo é sumamente difícil de qualificar, pois que não sendo um livro de contos, de crónicas nem de ensaios, também não é uma novela nem um romance, na verdadeira acepção teórica desse género literário. Por necessidade de funcionalidade analítica, digamos que se trata de uma crónica-romanceada, na qual o texto descritivo supera claramente o narrativo, obliterando o uso de personagens, suprimindo as localizações físicas, omitindo as referências cronológicos e preterindo os conflitos socioeconómicas para construir um romance, que não sendo de intervenção é, acima de tudo, uma obra de arte.
Não existe neste livro um único diálogo, um único momento em que o autor recorra ao discurso directo, talvez porque também nele não existam personagens, nem mesmo pessoas identificadas com nomes próprios. Nada neste livro está identificado, nem no tempo nem no espaço, certamente para que o leitor não se distraia nem se afaste do cento fulcralizador da narrativa – o fogo na floresta. Muito embora não se identifique o lugar onde decorre a acção diegética, deduz-se não só pelas origens do autor como ainda pelos constantes feedbacks autobiográficos, que se trata da serra de Monchique. Percebe-se que é nas terras do seu berço, porque no início do livro o autor-narrador-personagem dirige-se no seu automóvel a grande velocidade para sul, deixando para trás o Alentejo, correndo na direcção dos montes da sua infância, sugestionado pelas dramáticas imagens da floresta em chamas que pouco antes haviam sido difundidas pela televisão.
Tudo o que se vê e sente neste livro é a percepção da dramática falta de meios, e da natural insuficiência humana, na luta contra o fogo. São as chamas diabolicamente a lavrar na serra, como se fossem um indestrutível e incontrolável monstro, a cuja avassaladora força e impiedosa devastação se submetem a exuberante, mas indefesa, natureza e as populações locais, cujos bens e, por vezes, até as próprias vidas, se perdem numa luta titânica contra a força dos elementos, que nem o engenho nem a bravura humana conseguem superar.
O fogo assume neste livro um enquadramento preponderante, no espaço cenático e na construção diegético, desenvolvendo-se por vezes ao nível duma personagem que se transfigura entre uma luminosa referência no horizonte e uma dócil linha de fogo, que rasteja aos pés do narrador, para logo se transmutar num mar de alterosas labaredas, que tudo devora e devasta numa impiedosa onda de cinzas e calcinados destroços. O fogo é como que a personagem superestrutural desta obra. É nele que se materializa a violência, o desastre, a morte e a devastação, numa concentração activa contra a própria Natureza, o Ambiente e a Floresta, numa espécie de trindade dos elementos, que em Monchique dá o cerne e a vida àquele povo e àquele território. O espectro do fogo e da incineração da serra de Monchique tem sido ao longo de séculos uma ameaça constante, um traiçoeiro inimigo, um monstro terrífico e catastrófico que tudo reduz a cinzas, transformando a beleza natural dos ricos montados de sobro, das florestas de pinheiros e de castanheiros, em horrendos campos de escombros e cinzas.
Desde há séculos que a riqueza do povo monchiquense se tem estribado na produção agro-pecuária e numa prolífera indústria florestal, mercê de um microclima favorável à silvicultura. Por isso não admira que o tema principal deste livro tivesse incidido precisamente na dramática descrição do devastador incêndio ali ocorrido (neste caso em 2004), que durante dias lavrou impiedosamente por toda a serra, reduzindo a cinzas uma vasta concentração florestal formada por diversas espécies arbóreas, algumas delas únicas e insubstituíveis, cujo repovoamento e substituição ocupará várias décadas e algumas gerações até que definitivamente se volte a reconstituir na sua plenitude.

As personagens intradiegéticas

Neste livro as personagens são figuras literárias, embora não sejam pessoas nem propriamente personagens narrativas, mas antes espaços, contornos, delineamentos de cenas dramáticas, sem sangue nem violência humana, mas antes com o dramatismo da destruição plena e irreversível do fogo na floresta, o que dá às figuras do romance uma personalização muito especial e muito activa naquilo a que podemos designar por “cenas de fulgor”, isto é, os momentos em que a narrativa chama o leitor para o centro da acção diegética, fazendo-o sentir a experiência e a dramatização do quadro literário.
Dado que as personagens deste romance adquirem pouca expressividade literária, até porque se confundem com a triangulação do autor-narrador-personagem, pois que lhe são próximas das suas memórias de infância, ou que lhe são íntimas como é o caso dos seus familiares, percebe-se que são personagens de opaca identidade ou de esbatida descrição física e de sofrível afirmação psicológica. Podemos mesmo afirmar que neste livro as personagens não são proeminentes nem afirmativas, permanentes ou insistentes, sendo simplesmente meros suportes da narrativa, quase figurantes secundários, uma espécie de dramatis personae num palco desprovido de um multiforme enquadramento cenático. Por outro lado, o tempo da acção diegética é também triangular e pluridimensionado entre o passado e o presente e – aqui é que está a diferença – a inexistência do futuro, aliás impossibilitado pela devastação do fogo.
É curioso que neste livro o tempo diegético constitui uma espécie de fusão das diferentes dimensões do próprio tempo, que se espraia, se confunde e se mescla numa sucessão interactiva entre tempo biológico, tempo psicológico, tempo histórico e tempo ontológico. O poliedro construído no cerne da narrativa entre o tempo, a sua duração e sucessão, põe, por vezes em dúvida ou em confusão, as noções de início e de fim, de presente e de passado, esbatendo-se as suas naturais coordenadas de espaço e de referencial, dando azo a que a narrativa assuma uma certa autonomização de linguagem, não só para a concepção do espaço recente, ausente e irreal, como ainda para a sua distanciação tridimensional entre o passado, o presente e o narrador-personagem. Isso vê-se ou constata-se em momentos fulcrais da narrativa, quando a imaginação do narrador resvala para o fantástico, confundindo a realidade com a fantasia, construindo um diálogo surdo mas visivelmente sensorial entre personagens reais e irreais, numa dinâmica multifronte e inapreensível.
Salta à mente do leitor a necessidade de reflectir, como participante intradiegético, num processo de autognose individual e intimista sobre o devir do homem, sobre o ambiente que o rodeia e sobre a preservação do património natural, que não lhe pertence, mas que é um legado a ser integralmente transmitido às gerações vindouras.
Para terminar devo acrescentar que esta obra não se integra no Realismo Urbano dos seus romances anteriores, mas antes numa espécie de Naturalismo Burguês Telúrico, pois que a narrativa é concebida pelo autor-personagem António Manuel Venda, que se ausentou do espaço natural que lhe foi berço para o centro urbano e burguês, onde fez a sua formação intelectual e a sua adaptação ao espírito materialista dominante, no qual se adapta mas que repudia em face das referências naturalistas, sinceras, desinteressadas e solidárias, onde fez a sua socialização primacial.
O autor-narrador-personagem, regressa neste livro ao espaço natural das suas origens, que descreve, aliás, como sendo o espaço da interacção moral entre o sacrifício do trabalho árduo, a coragem solidária, a honradez social, a ética espiritual e fraterna, contra o egoísmo do materialismo insensível e desumanizante. O cerne principal desta obra é o ambiente natural da serra de Monchique, em toda a sua plenitude, sendo por demais evidente que o António Manuel Venda faz a descrição da envolvente biodiversidade da fauna e da flora, como alguém que conhece ao pormenor os diferentes elementos naturalistas, enumerando distintas espécies arbóreas, como amieiros, sobreiros, azinheiras, alfarrobeiras, medronheiros, castanheiros e pinheiros, em cujo ambiente é sempre possível que o leitor seja confrontado com episódios de imaginosa fantasia, entre o pícaro e o trágico, como a descrição de perigosas alclaras, fugidios texugos e javalis, moribundos escalavardos, misturados com o espectro fastasmagórico de um “Rasputine a preto e branco”, que presumo venha a ser aproveitado para um próximo romance, à imagem do “mágico-velhinho” de livros anteriores.

Apresentação do livro, realizada a 24-04-2009, na livraria Pátio das Letras, em Faro

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A Casa das Areias, de Luísa Monteiro


José Carlos Vilhena Mesquita
O romance, A Casa das Areias, da autoria de Luísa Monteiro, destina-se a um público adulto e culto, não é um livro banal nem ao alcance de todos. Para o lermos necessitamos de uma certa cultura e uma certa maturidade literária. Não é um livro difícil, quer na escrita quer na trama romanesca. Em todo o caso é um livro que exige do leitor uma certa capacidade intelectual para perceber a saga de duas famílias que se desenrola durante quase um século. Possui uma estrutura de longa duração, sem se tornar enfadonho, maçador, parado ou ronceiro. Bem pelo contrário. Desenvolve-se com alguma celeridade, dando não raras vezes às personagens retratadas uma vida efémera, sem pujança nem peso narrativo, mas com um vínculo por vezes mítico do amor inatingível, dilacerante e frustrante.
A grande lição a retirar sumariamente deste livro é que o amor não se cura no casamento. A liberdade de sentir e de amar sem peias nem regras constitui a essência do amor. Só é livre quem ama. Mas só verdadeiramente ama quem despojado de interesses materiais faz do amor o valor supremo da vida.
O cenário espácio-temporal desta obra é o século XX na região minhota, que aliás, retrata de forma magistral em todos os aspectos, quer no ambiente natural, quer na envolvência social embasada na má distribuição da riqueza. Mas incide mais concretamente no concelho de Vila Nova de Famalicão. Os campos, as culturas, os costumes, as tradições, a gastronomia, a religiosidade nos seus tabus e fetiches, em suma, os defeitos e virtudes da gente simples e humilde, que conceptualiza na verticalidade dos princípios éticos da honra, a bandeira duma alma popular erguida e defendida ao longo de séculos.
Existem na contextualidade narrativa dois vectores primaciais que conduzem como linhas de força todo o romance: um vector feminino dominado pela figura de Ana, cujas origens judaicas fazem dela uma mulher enigmática, cobiçada na sua irradiante beleza, invejável na sua fortuna, inimitável na sua sedutora sensualidade. Uma matrona de numerosa prole, escoriada em avultados cabedais que a tornam aos olhos do vulgo numa mulher poderosa, admirada e temida.
O lado narrativo masculino é dominado por Camilo Augusto, um brasileiro de torna-viagem, boçal e agressivo, dourado pela riqueza granjeada entre selvagens. Uma figura carregada de traços camilianos, que definhará mais tarde de paixão pela judia que repudia os seus encantos materiais por não lhe suportar a negritude da alma.
Visível é também neste livro o choque de culturas numa certa conflitualidade de gerações. O emancipalismo feminista de Ana espelhado na sua luta pela liberdade de pensamento e de acção, na sua independência, na integridade do seu território e no desprezo pelo macho, ainda que deixando-se possuir por ele, é sinónimo duma força de carácter que inspirará todos os seus descendentes.
Daí que a narrativa se reparta entre a riqueza e a pobreza, a independência moral e a subserviência dos que rodeiam as figuras sobre as quais assenta toda a estrutura romanesca. Neste ambiente social desenvolve-se um tempo diacrónico cujas balizas, ainda que difíceis de definir parecem estabelecer-se entre o fim do século XIX e os conturbados anos revolucionários do pós-25 de Abril. Como marcos surgem as duas guerras mundiais, que escalavraram a fortuna de ambas as famílias e moldaram novas mentalidades. A sucessão do tempo é também a substituição das personagens pelos seus descendentes que assumem progressivamente o papel de protagonistas na diegese narrativa. É disso exemplo o caso de Teresa, a filha de Ana, que vai sendo substituída pela radiosa figura de Esmeralda. O mesmo acontece ao vector masculino que tem em Augusto, filho de Camilo Augusto, que será substituído por Agostinho. Ou seja a narrativa passa de avós para netos numa incontrolável sucessão de tempo e de novas mentalidades. Em todo o caso, nota-se que é o vector feminino o vencedor, pela constância da sua força, do seu orgulho, da sua perseverança e do seu denodo. O vector masculino é retractado de uma forma mais torpe, mais desleal, mais sabuja.
A descrição da envolvência diegética é um dos pontos fortes deste livro. As cores, os cheiros, as formas, os sons e as texturas ressaltam do livro duma forma muito viva, muito real, que lhe dão a aparência da verdade através do constante recurso a imagens poéticas, extrapolações metafóricas e comparações analépticas.
Uma das facetas mais interessantes do livro é aquela que se prende com a arqueologia dos sentidos, atraindo a atenção do leitor para os cheiros, sabores, sons, texturas e visões de um Minho deslumbrante e sedutor. No contexto da estimulação sensitiva a autora recorre ao prazer gastronómico, fazendo constantes referências aos pratos e iguarias minhotas. A estratégia prandial foi aliás muito usada por Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Aquilino Ribeiro e tantos outros autores da nossa melhor safra literária.
Não menos curiosa é também a descrição dos moribundos, que tem algo de plangente e teatral, no fundo é a atracção lírica pela morte, como redentora da vida. A despedida da vida, quando não ocorre de forma repentina e acidental, tem algo de romântico, o que na literatura clássica se explorou quase até à exaustão. Com a Luísa Monteiro não é tanto assim, embora elabore quadros de morte profundamente sentidos. Não obstante poupa tempo e espaço com as personagens secundárias que surgem de forma quase espontânea, mas também morrem num ápice, deixando breve rasto na narrativa. Para dar uma certa autenticidade ao romance insere-lhe figuras reais como, por exemplo, Adolfo Casais Monteiro, nomes de empresas, de indústrias de ruas, freguesias e locais que verdadeiramente ainda hoje existem, deixando o leitor intrigado, confuso e surpreendido, pela ousadia de se misturar a realidade com a ficção. Mas isso é mais uma estratégia ou recurso literário para construir a saga destas duas famílias que atravessam todo o século XX, perdendo paulatinamente o seu protagonismo económico, para se esvaecerem na voragem do tempo e nas mudanças socias operadas.
Merece também que destaquemos o recurso ao rifoneiro popular, citando com a parcimónia necessária alguns provérbios adequados à construção narrativa. O mesmo acontece com a frugal utilização de vocábulos minhotos carregados de conotações brejeiras, eróticas, sarcásticas ou ridicularizantes. Tudo usado na proporção do quanto baste, sem exageros enfastiantes que, não raramente, banalizam e diminuem a qualidade da obra.
Por fim, e após sucessivas alterações geracionais dá-se a reunião dos dois vectores iniciais: o feminino da judia Ana e o masculino do brasileiro de torna-viagem Camilo Augusto. As duas narrativas que evoluem de forma distinta até ao último terço do romance acabam por confluir no casamento dos netos de ambos, Agostinho da parentela masculina e Esmeralda da feminina. O fruto de ambos, Eduarda, personifica a libertação e a vitória das mulheres num mundo dominado pelos homens. «Por isso, aos dezasseis anos despediu-se da família, ajustou o violino às costas e deu gás à lambreta azul que lhe ofereceram no aniversário. Para trás, uma geração densa de Evas, que ao longo de décadas assumiram o sacrifício de uma vida fora do Paraíso, ao lado de homens e rodeadas de filhos. Mas a genética tem caprichos muito curiosos e, de vez em quando, produz seres cujos comportamentos denotam uma intoxicação qualquer das marcas da eugenia, resultando daí personalidade pouco comum à árvore da genealogia».

[texto de apresentação da obra «A Casa das Areias», de Luísa Monteiro, proferido a 8-7-2000 no auditório da Câmara Municipal de Albufeira]