José Carlos Vilhena Mesquita
Confesso que é sempre um prazer falar da obra do escritor António Manuel Venda, um dos mais jovens e promissores escritores da nova vaga literária, que tem emprestado às letras nacionais o brilho do seu talento e da sua ilustração intelectual. Devo acrescentar que o que mais me impressiona na sua forma de ser e de estar, assim como na sua personalidade de escritor, é a sua intrínseca e natural simplicidade, o seu espírito humilde e discreto, assim como a feição despretensiosa como encara o sucesso da sua obra e da sua relevante posição no contexto da moderna literatura portuguesa. Esses são apenas aspectos pessoais e muito particulares do homem/autor, que se reflectem e evidenciam na sua escrita e no seu próprio processo de criação narrativa, sendo, em minha opinião, de uma desconcertante simplicidade na forma como escolhe as palavras mais comuns para construir um texto muito difícil de elaborar, mas fácil de entender. Esta simbiose da facilidade da escrita e da compreensão do discurso narrativo, faz com que a sua obra literária se torne muito acessível e de apetecível leitura, sobretudo para o público jovem.
Este livro, Uma Noite com o Fogo, que tivemos a honra de apresentar oficialmente em Faro, na livraria «O Pátio das Letras», está integralmente redigido num discurso indirecto livre, que, no caso presente, constitui um recurso literário, ou uma estratégia de construção estilística, muito difícil de conceber e até mesmo muito raro de se ver no actual panorama da nossa literatura. Em todo o caso, o autor faz uso constante das exclamações, das interrogações, das reticências e dos localizadores temporais e espaciais que denunciam a presença do eu, aliás sempre recorrente e quase omnipresente na construção diegética da obra. Este recurso ao eu, denuncia claramente a existência duma trindade diegética, consubstanciada na simultaneidade do autor, do narrador e da personagem principal numa só figura – o eu. E na construção desse eu, surgem como aglutinadores do discurso indirecto os verbos declarativos, sendo que os processos de subordinação desaparecem neste modo discursivo, fundindo-se a voz do narrador com a personagem principal, como se falassem ambas em simultâneo. Mas, no fundo, o que torna este livro numa obra de singular relevância é a sua formulação narrativa, assente numa consistente estrutura sintáctica e numa bem concebida elaboração frásica, em cujo âmago sobressai a sua construção semiótica, atribuindo um forte pendor simbólico aos pequenos enfoques em que decorre a acção diegética. Por outro lado, todo o livro é trespassado por constantes retrocessos no processo narrativo, entre o passado da meninice do narrador/personagem, pleno de bucolismo e ingenuidade, em contraste com o tempo presente, cujo ambiente social e envolvência natural se foi desgastando e adulterando no assoberbante vórtice materialista da vida moderna.
Uma obra independente
Dificilmente se pode classificar esta obra do ponto de vista estético. Não segue correntes nem estilos predefinidos. Ao contrário das obras anteriores, António Manuel Venda distancia-se nesta Noite com o Fogo da estética neo-realista, tão do seu gosto literário, para fazer uma breve incursão pelo romance experimental da nova vaga anglo-saxónica. Daí que seja difícil de definir ou de enquadrar esta obra numa corrente estética reconhecida, pelo que a melhor maneira de a classificar será precisamente considerá-la como obra independente, livre e sem alinhados clichés estéticos, fugindo assim aos modelos literários e a outros figurinos academicamente estabelecidos.
Acima de tudo este livro é uma obra de arte, esboçada numa pintura de emoções e de sobressaltos, na qual sobressai avassaladora a luz do fogo, entrecortada pela tisne penumbra dos fumos e das cinzas que cobrem de horrendo negrume a noite de todos os desafios e de todos os desencantos. Neste quadro já não se vislumbra a outrora verdejante paisagem da serra algarvia, mas vê-se em traço impressionista a exasperada e indignada luta do autor contra um cenário de catástrofe, que se torna insuperável devido à falta de concertação de meios e de união de esforços para compor com outras tintas um panorama cenatório de heróicos sucessos humanos. O que inflama este livro é precisamente a centelha de génio do António Manuel Venda, cuja indefinida corrente estética faz transparecer um estilo muito peculiar, estruturalmente descritivo com movimentações bruscas e muito imprevisíveis, mas intrinsecamente pictórico, numa espécie de naturalismo pós-milenarista, transfigurando a placidez dos seres e dos espaços naturais em fantásticas mutações oníricas, sem serem terrificamente intranquilas ou pavorosas. Bem pelo contrário, a sua criatividade literária revela-se numa acentuada imaginação estética, muito forte e diversificada em subterfúgios cinéfilos e em fobias de íntimo psicologismo.
No meu conceito, A.M.V. é um escritor da dialéctica espiritual, em toda a plenitude desse aparente contra-senso, cuja obra Uma Noite com o Fogo é sumamente difícil de qualificar, pois que não sendo um livro de contos, de crónicas nem de ensaios, também não é uma novela nem um romance, na verdadeira acepção teórica desse género literário. Por necessidade de funcionalidade analítica, digamos que se trata de uma crónica-romanceada, na qual o texto descritivo supera claramente o narrativo, obliterando o uso de personagens, suprimindo as localizações físicas, omitindo as referências cronológicos e preterindo os conflitos socioeconómicas para construir um romance, que não sendo de intervenção é, acima de tudo, uma obra de arte.
Não existe neste livro um único diálogo, um único momento em que o autor recorra ao discurso directo, talvez porque também nele não existam personagens, nem mesmo pessoas identificadas com nomes próprios. Nada neste livro está identificado, nem no tempo nem no espaço, certamente para que o leitor não se distraia nem se afaste do cento fulcralizador da narrativa – o fogo na floresta. Muito embora não se identifique o lugar onde decorre a acção diegética, deduz-se não só pelas origens do autor como ainda pelos constantes feedbacks autobiográficos, que se trata da serra de Monchique. Percebe-se que é nas terras do seu berço, porque no início do livro o autor-narrador-personagem dirige-se no seu automóvel a grande velocidade para sul, deixando para trás o Alentejo, correndo na direcção dos montes da sua infância, sugestionado pelas dramáticas imagens da floresta em chamas que pouco antes haviam sido difundidas pela televisão.
Tudo o que se vê e sente neste livro é a percepção da dramática falta de meios, e da natural insuficiência humana, na luta contra o fogo. São as chamas diabolicamente a lavrar na serra, como se fossem um indestrutível e incontrolável monstro, a cuja avassaladora força e impiedosa devastação se submetem a exuberante, mas indefesa, natureza e as populações locais, cujos bens e, por vezes, até as próprias vidas, se perdem numa luta titânica contra a força dos elementos, que nem o engenho nem a bravura humana conseguem superar.
O fogo assume neste livro um enquadramento preponderante, no espaço cenático e na construção diegético, desenvolvendo-se por vezes ao nível duma personagem que se transfigura entre uma luminosa referência no horizonte e uma dócil linha de fogo, que rasteja aos pés do narrador, para logo se transmutar num mar de alterosas labaredas, que tudo devora e devasta numa impiedosa onda de cinzas e calcinados destroços. O fogo é como que a personagem superestrutural desta obra. É nele que se materializa a violência, o desastre, a morte e a devastação, numa concentração activa contra a própria Natureza, o Ambiente e a Floresta, numa espécie de trindade dos elementos, que em Monchique dá o cerne e a vida àquele povo e àquele território. O espectro do fogo e da incineração da serra de Monchique tem sido ao longo de séculos uma ameaça constante, um traiçoeiro inimigo, um monstro terrífico e catastrófico que tudo reduz a cinzas, transformando a beleza natural dos ricos montados de sobro, das florestas de pinheiros e de castanheiros, em horrendos campos de escombros e cinzas.
Desde há séculos que a riqueza do povo monchiquense se tem estribado na produção agro-pecuária e numa prolífera indústria florestal, mercê de um microclima favorável à silvicultura. Por isso não admira que o tema principal deste livro tivesse incidido precisamente na dramática descrição do devastador incêndio ali ocorrido (neste caso em 2004), que durante dias lavrou impiedosamente por toda a serra, reduzindo a cinzas uma vasta concentração florestal formada por diversas espécies arbóreas, algumas delas únicas e insubstituíveis, cujo repovoamento e substituição ocupará várias décadas e algumas gerações até que definitivamente se volte a reconstituir na sua plenitude.
As personagens intradiegéticas
Neste livro as personagens são figuras literárias, embora não sejam pessoas nem propriamente personagens narrativas, mas antes espaços, contornos, delineamentos de cenas dramáticas, sem sangue nem violência humana, mas antes com o dramatismo da destruição plena e irreversível do fogo na floresta, o que dá às figuras do romance uma personalização muito especial e muito activa naquilo a que podemos designar por “cenas de fulgor”, isto é, os momentos em que a narrativa chama o leitor para o centro da acção diegética, fazendo-o sentir a experiência e a dramatização do quadro literário.
Dado que as personagens deste romance adquirem pouca expressividade literária, até porque se confundem com a triangulação do autor-narrador-personagem, pois que lhe são próximas das suas memórias de infância, ou que lhe são íntimas como é o caso dos seus familiares, percebe-se que são personagens de opaca identidade ou de esbatida descrição física e de sofrível afirmação psicológica. Podemos mesmo afirmar que neste livro as personagens não são proeminentes nem afirmativas, permanentes ou insistentes, sendo simplesmente meros suportes da narrativa, quase figurantes secundários, uma espécie de dramatis personae num palco desprovido de um multiforme enquadramento cenático. Por outro lado, o tempo da acção diegética é também triangular e pluridimensionado entre o passado e o presente e – aqui é que está a diferença – a inexistência do futuro, aliás impossibilitado pela devastação do fogo.
É curioso que neste livro o tempo diegético constitui uma espécie de fusão das diferentes dimensões do próprio tempo, que se espraia, se confunde e se mescla numa sucessão interactiva entre tempo biológico, tempo psicológico, tempo histórico e tempo ontológico. O poliedro construído no cerne da narrativa entre o tempo, a sua duração e sucessão, põe, por vezes em dúvida ou em confusão, as noções de início e de fim, de presente e de passado, esbatendo-se as suas naturais coordenadas de espaço e de referencial, dando azo a que a narrativa assuma uma certa autonomização de linguagem, não só para a concepção do espaço recente, ausente e irreal, como ainda para a sua distanciação tridimensional entre o passado, o presente e o narrador-personagem. Isso vê-se ou constata-se em momentos fulcrais da narrativa, quando a imaginação do narrador resvala para o fantástico, confundindo a realidade com a fantasia, construindo um diálogo surdo mas visivelmente sensorial entre personagens reais e irreais, numa dinâmica multifronte e inapreensível.
Salta à mente do leitor a necessidade de reflectir, como participante intradiegético, num processo de autognose individual e intimista sobre o devir do homem, sobre o ambiente que o rodeia e sobre a preservação do património natural, que não lhe pertence, mas que é um legado a ser integralmente transmitido às gerações vindouras.
Para terminar devo acrescentar que esta obra não se integra no Realismo Urbano dos seus romances anteriores, mas antes numa espécie de Naturalismo Burguês Telúrico, pois que a narrativa é concebida pelo autor-personagem António Manuel Venda, que se ausentou do espaço natural que lhe foi berço para o centro urbano e burguês, onde fez a sua formação intelectual e a sua adaptação ao espírito materialista dominante, no qual se adapta mas que repudia em face das referências naturalistas, sinceras, desinteressadas e solidárias, onde fez a sua socialização primacial.
O autor-narrador-personagem, regressa neste livro ao espaço natural das suas origens, que descreve, aliás, como sendo o espaço da interacção moral entre o sacrifício do trabalho árduo, a coragem solidária, a honradez social, a ética espiritual e fraterna, contra o egoísmo do materialismo insensível e desumanizante. O cerne principal desta obra é o ambiente natural da serra de Monchique, em toda a sua plenitude, sendo por demais evidente que o António Manuel Venda faz a descrição da envolvente biodiversidade da fauna e da flora, como alguém que conhece ao pormenor os diferentes elementos naturalistas, enumerando distintas espécies arbóreas, como amieiros, sobreiros, azinheiras, alfarrobeiras, medronheiros, castanheiros e pinheiros, em cujo ambiente é sempre possível que o leitor seja confrontado com episódios de imaginosa fantasia, entre o pícaro e o trágico, como a descrição de perigosas alclaras, fugidios texugos e javalis, moribundos escalavardos, misturados com o espectro fastasmagórico de um “Rasputine a preto e branco”, que presumo venha a ser aproveitado para um próximo romance, à imagem do “mágico-velhinho” de livros anteriores.
Apresentação do livro, realizada a 24-04-2009, na livraria Pátio das Letras, em Faro
Este livro, Uma Noite com o Fogo, que tivemos a honra de apresentar oficialmente em Faro, na livraria «O Pátio das Letras», está integralmente redigido num discurso indirecto livre, que, no caso presente, constitui um recurso literário, ou uma estratégia de construção estilística, muito difícil de conceber e até mesmo muito raro de se ver no actual panorama da nossa literatura. Em todo o caso, o autor faz uso constante das exclamações, das interrogações, das reticências e dos localizadores temporais e espaciais que denunciam a presença do eu, aliás sempre recorrente e quase omnipresente na construção diegética da obra. Este recurso ao eu, denuncia claramente a existência duma trindade diegética, consubstanciada na simultaneidade do autor, do narrador e da personagem principal numa só figura – o eu. E na construção desse eu, surgem como aglutinadores do discurso indirecto os verbos declarativos, sendo que os processos de subordinação desaparecem neste modo discursivo, fundindo-se a voz do narrador com a personagem principal, como se falassem ambas em simultâneo. Mas, no fundo, o que torna este livro numa obra de singular relevância é a sua formulação narrativa, assente numa consistente estrutura sintáctica e numa bem concebida elaboração frásica, em cujo âmago sobressai a sua construção semiótica, atribuindo um forte pendor simbólico aos pequenos enfoques em que decorre a acção diegética. Por outro lado, todo o livro é trespassado por constantes retrocessos no processo narrativo, entre o passado da meninice do narrador/personagem, pleno de bucolismo e ingenuidade, em contraste com o tempo presente, cujo ambiente social e envolvência natural se foi desgastando e adulterando no assoberbante vórtice materialista da vida moderna.
Uma obra independente
Dificilmente se pode classificar esta obra do ponto de vista estético. Não segue correntes nem estilos predefinidos. Ao contrário das obras anteriores, António Manuel Venda distancia-se nesta Noite com o Fogo da estética neo-realista, tão do seu gosto literário, para fazer uma breve incursão pelo romance experimental da nova vaga anglo-saxónica. Daí que seja difícil de definir ou de enquadrar esta obra numa corrente estética reconhecida, pelo que a melhor maneira de a classificar será precisamente considerá-la como obra independente, livre e sem alinhados clichés estéticos, fugindo assim aos modelos literários e a outros figurinos academicamente estabelecidos.
Acima de tudo este livro é uma obra de arte, esboçada numa pintura de emoções e de sobressaltos, na qual sobressai avassaladora a luz do fogo, entrecortada pela tisne penumbra dos fumos e das cinzas que cobrem de horrendo negrume a noite de todos os desafios e de todos os desencantos. Neste quadro já não se vislumbra a outrora verdejante paisagem da serra algarvia, mas vê-se em traço impressionista a exasperada e indignada luta do autor contra um cenário de catástrofe, que se torna insuperável devido à falta de concertação de meios e de união de esforços para compor com outras tintas um panorama cenatório de heróicos sucessos humanos. O que inflama este livro é precisamente a centelha de génio do António Manuel Venda, cuja indefinida corrente estética faz transparecer um estilo muito peculiar, estruturalmente descritivo com movimentações bruscas e muito imprevisíveis, mas intrinsecamente pictórico, numa espécie de naturalismo pós-milenarista, transfigurando a placidez dos seres e dos espaços naturais em fantásticas mutações oníricas, sem serem terrificamente intranquilas ou pavorosas. Bem pelo contrário, a sua criatividade literária revela-se numa acentuada imaginação estética, muito forte e diversificada em subterfúgios cinéfilos e em fobias de íntimo psicologismo.
No meu conceito, A.M.V. é um escritor da dialéctica espiritual, em toda a plenitude desse aparente contra-senso, cuja obra Uma Noite com o Fogo é sumamente difícil de qualificar, pois que não sendo um livro de contos, de crónicas nem de ensaios, também não é uma novela nem um romance, na verdadeira acepção teórica desse género literário. Por necessidade de funcionalidade analítica, digamos que se trata de uma crónica-romanceada, na qual o texto descritivo supera claramente o narrativo, obliterando o uso de personagens, suprimindo as localizações físicas, omitindo as referências cronológicos e preterindo os conflitos socioeconómicas para construir um romance, que não sendo de intervenção é, acima de tudo, uma obra de arte.
Não existe neste livro um único diálogo, um único momento em que o autor recorra ao discurso directo, talvez porque também nele não existam personagens, nem mesmo pessoas identificadas com nomes próprios. Nada neste livro está identificado, nem no tempo nem no espaço, certamente para que o leitor não se distraia nem se afaste do cento fulcralizador da narrativa – o fogo na floresta. Muito embora não se identifique o lugar onde decorre a acção diegética, deduz-se não só pelas origens do autor como ainda pelos constantes feedbacks autobiográficos, que se trata da serra de Monchique. Percebe-se que é nas terras do seu berço, porque no início do livro o autor-narrador-personagem dirige-se no seu automóvel a grande velocidade para sul, deixando para trás o Alentejo, correndo na direcção dos montes da sua infância, sugestionado pelas dramáticas imagens da floresta em chamas que pouco antes haviam sido difundidas pela televisão.
Tudo o que se vê e sente neste livro é a percepção da dramática falta de meios, e da natural insuficiência humana, na luta contra o fogo. São as chamas diabolicamente a lavrar na serra, como se fossem um indestrutível e incontrolável monstro, a cuja avassaladora força e impiedosa devastação se submetem a exuberante, mas indefesa, natureza e as populações locais, cujos bens e, por vezes, até as próprias vidas, se perdem numa luta titânica contra a força dos elementos, que nem o engenho nem a bravura humana conseguem superar.
O fogo assume neste livro um enquadramento preponderante, no espaço cenático e na construção diegético, desenvolvendo-se por vezes ao nível duma personagem que se transfigura entre uma luminosa referência no horizonte e uma dócil linha de fogo, que rasteja aos pés do narrador, para logo se transmutar num mar de alterosas labaredas, que tudo devora e devasta numa impiedosa onda de cinzas e calcinados destroços. O fogo é como que a personagem superestrutural desta obra. É nele que se materializa a violência, o desastre, a morte e a devastação, numa concentração activa contra a própria Natureza, o Ambiente e a Floresta, numa espécie de trindade dos elementos, que em Monchique dá o cerne e a vida àquele povo e àquele território. O espectro do fogo e da incineração da serra de Monchique tem sido ao longo de séculos uma ameaça constante, um traiçoeiro inimigo, um monstro terrífico e catastrófico que tudo reduz a cinzas, transformando a beleza natural dos ricos montados de sobro, das florestas de pinheiros e de castanheiros, em horrendos campos de escombros e cinzas.
Desde há séculos que a riqueza do povo monchiquense se tem estribado na produção agro-pecuária e numa prolífera indústria florestal, mercê de um microclima favorável à silvicultura. Por isso não admira que o tema principal deste livro tivesse incidido precisamente na dramática descrição do devastador incêndio ali ocorrido (neste caso em 2004), que durante dias lavrou impiedosamente por toda a serra, reduzindo a cinzas uma vasta concentração florestal formada por diversas espécies arbóreas, algumas delas únicas e insubstituíveis, cujo repovoamento e substituição ocupará várias décadas e algumas gerações até que definitivamente se volte a reconstituir na sua plenitude.
As personagens intradiegéticas
Neste livro as personagens são figuras literárias, embora não sejam pessoas nem propriamente personagens narrativas, mas antes espaços, contornos, delineamentos de cenas dramáticas, sem sangue nem violência humana, mas antes com o dramatismo da destruição plena e irreversível do fogo na floresta, o que dá às figuras do romance uma personalização muito especial e muito activa naquilo a que podemos designar por “cenas de fulgor”, isto é, os momentos em que a narrativa chama o leitor para o centro da acção diegética, fazendo-o sentir a experiência e a dramatização do quadro literário.
Dado que as personagens deste romance adquirem pouca expressividade literária, até porque se confundem com a triangulação do autor-narrador-personagem, pois que lhe são próximas das suas memórias de infância, ou que lhe são íntimas como é o caso dos seus familiares, percebe-se que são personagens de opaca identidade ou de esbatida descrição física e de sofrível afirmação psicológica. Podemos mesmo afirmar que neste livro as personagens não são proeminentes nem afirmativas, permanentes ou insistentes, sendo simplesmente meros suportes da narrativa, quase figurantes secundários, uma espécie de dramatis personae num palco desprovido de um multiforme enquadramento cenático. Por outro lado, o tempo da acção diegética é também triangular e pluridimensionado entre o passado e o presente e – aqui é que está a diferença – a inexistência do futuro, aliás impossibilitado pela devastação do fogo.
É curioso que neste livro o tempo diegético constitui uma espécie de fusão das diferentes dimensões do próprio tempo, que se espraia, se confunde e se mescla numa sucessão interactiva entre tempo biológico, tempo psicológico, tempo histórico e tempo ontológico. O poliedro construído no cerne da narrativa entre o tempo, a sua duração e sucessão, põe, por vezes em dúvida ou em confusão, as noções de início e de fim, de presente e de passado, esbatendo-se as suas naturais coordenadas de espaço e de referencial, dando azo a que a narrativa assuma uma certa autonomização de linguagem, não só para a concepção do espaço recente, ausente e irreal, como ainda para a sua distanciação tridimensional entre o passado, o presente e o narrador-personagem. Isso vê-se ou constata-se em momentos fulcrais da narrativa, quando a imaginação do narrador resvala para o fantástico, confundindo a realidade com a fantasia, construindo um diálogo surdo mas visivelmente sensorial entre personagens reais e irreais, numa dinâmica multifronte e inapreensível.
Salta à mente do leitor a necessidade de reflectir, como participante intradiegético, num processo de autognose individual e intimista sobre o devir do homem, sobre o ambiente que o rodeia e sobre a preservação do património natural, que não lhe pertence, mas que é um legado a ser integralmente transmitido às gerações vindouras.
Para terminar devo acrescentar que esta obra não se integra no Realismo Urbano dos seus romances anteriores, mas antes numa espécie de Naturalismo Burguês Telúrico, pois que a narrativa é concebida pelo autor-personagem António Manuel Venda, que se ausentou do espaço natural que lhe foi berço para o centro urbano e burguês, onde fez a sua formação intelectual e a sua adaptação ao espírito materialista dominante, no qual se adapta mas que repudia em face das referências naturalistas, sinceras, desinteressadas e solidárias, onde fez a sua socialização primacial.
O autor-narrador-personagem, regressa neste livro ao espaço natural das suas origens, que descreve, aliás, como sendo o espaço da interacção moral entre o sacrifício do trabalho árduo, a coragem solidária, a honradez social, a ética espiritual e fraterna, contra o egoísmo do materialismo insensível e desumanizante. O cerne principal desta obra é o ambiente natural da serra de Monchique, em toda a sua plenitude, sendo por demais evidente que o António Manuel Venda faz a descrição da envolvente biodiversidade da fauna e da flora, como alguém que conhece ao pormenor os diferentes elementos naturalistas, enumerando distintas espécies arbóreas, como amieiros, sobreiros, azinheiras, alfarrobeiras, medronheiros, castanheiros e pinheiros, em cujo ambiente é sempre possível que o leitor seja confrontado com episódios de imaginosa fantasia, entre o pícaro e o trágico, como a descrição de perigosas alclaras, fugidios texugos e javalis, moribundos escalavardos, misturados com o espectro fastasmagórico de um “Rasputine a preto e branco”, que presumo venha a ser aproveitado para um próximo romance, à imagem do “mágico-velhinho” de livros anteriores.
Apresentação do livro, realizada a 24-04-2009, na livraria Pátio das Letras, em Faro
Meu Caro Prof JCVM
ResponderEliminarAtravés do brilhante texto que o senhor escreveu, conheci o escritor Antóno Manuel Venda, homem da serra de Monchique,que, fui vasculhar, escreveu uma obra de 144 páginas, onde o fogo anda à volta das casas e o autor pegando nesse aspecto,trabalha-o de forma brilhante e trás ao de cima todas as perturações sentidas pelas populações.
Sobre a palavra escritor, que é como o senhor classifica o autor, apesar de já ter nove obras publicadas, ocorre-me Mário de Carvalho, laureado com o prémio Verílio Ferreira, vir dizer que não se considerava ainda um escritor sénior.
Creio que S. Maugham foi o único que disse considerar-se escritor no primeiro romance que escreveu. Os outros só depois.
O António Manuel Venda, pelo que o senhor diz e pelo que li num comentário ao livro, creio que explorou bem os pontos fulcrais da literatura contemporânea, ou seja, o clima das emoções. E pela forma brilhante como o fez terá direito a ser considerado de escritor.
Como o Prof. o considera também.
Aceite um abraço do
João Brito Sousa
Obrigado Dr. Brito Sousa pelo seu comentário, citando, como aliás é seu apanágio, brilhantes escritores e filósofos.
ResponderEliminarRelativamente ao escritor António Manuel Venda posso afiançar-lhe que é como Escritor que deve ser considerado, embora também seja director da revista «Human», que se dedica ao mundo da Gestão e do empreendedorismo.
O António Venda é, na verdadeira acepção da palavra, um Escritor, com obra feita, talvez mais de uma dezena de livros publicados, e de reconhecido mérito no seio da crítica mais exigente. Creio que o seu livro de estreia («Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade») vai ser agora reeditado, porque se encontrava há muito esgotado.
Se quiser dar uma vista de olhos pelos livros que o AMV publicou veja o seu blogue «Floresta ao Sul», que aliás consta como link em qualquer dos meus blogues.
O próximo livro dele, O Sorriso Enigmático do Javali, ainda no prelo, deverá ser um êxito. Pelo menos merece que assim seja, já que é um jovem muito talentoso.
Mais uma vez obrigado por frequentar os meus blogues.
Um abraço do Vilhena Mesquita