domingo, 21 de junho de 2020

CLEMENTINA, Maria

A actriz algarvia Maria Clementina
Actriz de teatro, Maria Clementina Borges de Sá, de seu nome completo, nasceu em Faro a 28-1-1897, e faleceu em Lisboa nos últimos dias de Dezembro de 1947, com 50 anos de idade. Era filha de D. Clementina Rato Borges de Sá e de João Bernardino Cardoso Sequeira Borges de Sá, que foi oficial do exército. Era, também, sobrinha-neta de Duarte de Sá, notável figura de intelectual e homem das artes, que foi o primeiro director do Conservatório de Lisboa.
Depois dos estudos primários frequentou a Escola de Arte de Representar, onde se distinguiu quase de imediato pelas suas qualidades para o canto, desenvolvendo muito as suas naturais aptidões com D. Eugénia Mantelli de quem foi dileta discípula.
As artes do palco, sobretudo o teatro, atraíam a sua curiosidade e natural ambição de sentir na alma os aplausos do público. Estreou-se então a 17-11-1919, no Teatro da Trindade, numa opereta, ou teatro musicado, muito na moda nesse tempo, intitulada «A Bela Risette», integrada na famosa companhia de Afonso Taveira.
Pouco depois integrou-se na companhia de Luz Veloso, que tinha como palco o famoso «Chiado Terrasse» (onde, a 18-12-1921, se realizou o célebre «Comício dos Novos», com Almada Negreiros a proclamar o Futurismo contra os modelos dominantes da arte), estreando-se no teatro declamado. Curiosamente tonou-se pouco depois em escriturada de Nascimento Fernandes, distinto artista algarvio e um dos mais prestigiados nos proscénios portugueses.
Estúdios da «Invicta Film», no Porto, pioneira do cinema luso
Quando se constituiu a «Companhia de Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro» entrou para o seu elenco, nele se mantendo até ao precoce cair do pano no teatro da sua vida. Na culminância da sua carreira artística passou ainda pelo Teatro Nacional D. Maria II, onde alcançou a simpatia da crítica, e também do público, sem, todavia, ter conseguido atingir o patamar a que outras divas do palco lograram ascender.
Não quis o destino, infelizmente, que a sua carreira fosse longa. Talvez por essa razão não tivesse tempo para provar o seu verdadeiro talento e lograr alcançar os grandes êxitos da ribalta. Pode dizer-se, sem melindrar a sua memória, que embora Maria Clementina fosse uma artista bastante popular, faltou-lhe, porém, o sucesso estrondoso, a endeusante fama e a paixão do público, para se tornar numa diva da Arte de Talma. Em todo o caso, a sua carreira fez-se de forma ascensional, com a crítica a render-lhe rasgados elogios e até, por vezes, a render-se ao seu talento. As suas preferências interpretativas incidiam nas figuras de recorte cómico, caricaturando de forma maliciosa, histriónica e satírica certos estereótipos da sociedade portuguesa
Georges Pallu, realizador francês da Invicta Film
grande impulsionador do cinema português
Maria Clementina foi acima de tudo uma actriz do teatro cómico, distinguindo-se em várias comédias (talvez o género mais do agrado nacional) com figuras da sua própria concepção, representando quadros de um memorável humor, entre o brejeirismo popular e o sardónico afrancesado. Para isso valia-se da sua inteligência, perspicácia e esmerada educação literária. A sua invejável cultura geral, associada aos dotes de criação literária, levaram-na para os caminhos da escrita, preparando por vezes com os colegas os textos de peças cómicas, revistas e quadros hilariantes que integrava, por vezes, em peças de cariz erudito ou de raiz clássica.
Talvez poucos saibam que Maria Clementina foi uma das actrizes pioneiras do cinema português, ainda no tempo do “mudo”, participando em dois filmes produzidos pela «Invicta Films», do Porto, e realizados pelo cineasta francês Georges Pallu, que foi o grande impulsionador da cinematografia portuguesa. A primeira fita é de 1922, e intitulava-se «O Destino»; a segunda é de 1925, e designava-se «A Tormenta». Devo acrescentar que o cineasta Georges Pallu foi contratado a 17-2-1918, pelo portuense Alfredo Nunes de Matos, dono da «Invicta Film», à célebre empresa cinematográfica «Pathé Frères» de Paris. Quando chegou a Portugal, a 12-3-1918, deu início ao cinema moderno, artístico e profissional, sem perder de vista as raízes históricas da cultura lusíada. Pode dizer-se que o Algarve ficou de algum modo ligado ao arranque da 7ª Arte no nosso país, já que o primeiro filme produzido, «Frei Bonifácio», foi escrito por Júlio Dantas, o mais célebre de todos os escritores algarvios do século XX.
Em 1924, o artista António Pinheiro, algarvio dos quatro costados, e leal amigo de Maria Clementina, realizou com a ajuda de Georges Pallu, que também escreveu o argumento e até participou como actor de uma fita, hoje totalmente ignorada, intitulada «Tinoco em Bolandas», na qual a Maria Clementina desempenhava a baronesa de Sandomil, um dos papéis principais.
Cena do filme «Tinoco em Bolandas», de António Pinheiro
Já no tempo do cinema sonoro, e no estertor da II Guerra Mundial, em 1945, quando o cinema luso estava em grande pujança, a cineasta Maria de Lurdes Dias Costa, que como atriz e locutora de rádio, usava o pseudónimo Bárbara Virgínia, convidou a Maria Clementina para um insignificante papel no filme «Três Dias Sem Deus», que não obteve a simpatia da crítica, nem do público. O argumento deste filme era uma adaptação da obra «Mundo Perdido», da autoria do algarvio adoptivo Gentil Marques, que conheci muito bem nos anos oitenta como grande impulsionador da imprensa turística no Algarve. A título de curiosidade se acrescenta que o filme, produzido como todos os anteriormente citados pela «Invicta Film», era do género drama, e chegou a ser exibido no Festival de Cannes, a 5-10-1946, sob o título de «Trois jours sans Dieu». A estreia no nosso país ocorreu 30 de A
gosto de 1946, mas não teve a adesão do público, e o sucesso tão aguardado resultaria em breve num inesperado fracasso.
Maria Clementina sendo aparentada, pelo lado paterno, com o Conde de Farrobo herdara-lhe os genes artísticos, que elevou até aos píncaros das suas possibilidades, com honra, rigor e competência profissional.
Descendente, pelo lado materno, de uma importante família de Lagos, era também sobrinha do tenente-coronel do Estado Maior do Exército Raul Frederico Rato e do Dr. Jerónimo Cabrita Rato, sendo prima do Dr. Afonso Eduardo Martins Zuquete, que foi Governador Civil de Leiria.

sábado, 20 de junho de 2020

CABRITA, Francisco Neto


Médico e autarca, nasceu em S. Bartolomeu de Messines, a 20-12-1899, onde também viria a falecer em 30-12-1949, com apenas 49 anos de idade. Era filho de D. Conceição Neto Cabrita e do abastado proprietário local Domingos Sequeira Cabrita, cujo espírito empreendedor lhe permitiu reunir significativos meios de fortuna.
Busto do Dr. Francisco Cabrita,
erigido frente ao Centro de Saúde
da freguesia de S. B. de Messines
Frequentou o Liceu de Faro e formou-se em Medicina, pela Universidade de Coimbra, em 15-12-1926, fixando-se logo a seguir como clínico na sua aldeia natal. Aqui desenvolveu o seu múnus clínico e aqui soube granjear vastíssimo prestígio entre a população local. O povo simples e carente, amava-o com absoluta sinceridade, a ponto de o cognominarem como “o pai dos pobres”. Este honroso epíteto, deveu-se não só ao exercício do seu múnus de forma gratuita, como ainda à forma como protegia os mais desfavorecidos, pagando os medicamentos do seu bolso e, não raras vezes, saldando as dívidas das famílias mais pobres nas mercearias locais. Naquela bonita terra, que também serviu de berço a João de Deus, o maior poeta algarvio de sempre, era o Dr. Francisco Cabrita a figura mais querida e popular, pela forma desinteressada com que serviu o bem comum, e muito particularmente pela forma altruísta como protegeu os mais carenciados.
No inicio da década de trinta, assistiu-se à consolidação do Estado Novo e à consagração de Salazar como Primeiro Ministro. O país mergulhou numa onda reorganizativa da vida social, com base na regulamentação legislativa das novas instituições. As Casas do Povo foram um exemplo flagrante do engajamento sociocultural das populações rurais. Imbuído desse espírito e fazendo parte dessa onda nacional, se posicionava o Dr. Francisco Cabrita que, em 1934, promoveu a criação da Casa do Povo de Messines, da qual seria logicamente o seu primeiro presidente.
Fervoroso adepto das ideias nacionalistas, tornou-se pela sua bondade e dedicação aos pobres, numa espécie de cacique local, razão pela qual assumiu, em 1935, e durante alguns anos, sem remuneração, a presidência da Câmara Municipal de Silves. Quando o ministro Duarte Pacheco pensou no incremento do turismo (que se encontrava desde 1933 sob a alçada do SPN - Secretariado da Propaganda Nacional), para cujo impulso inicial contou com a decisiva ajuda de António Ferro, avançou-se em todo o país, na esteira das Comemorações Centenárias de 1940, para a criação das comissões de iniciativa municipal de Arte e Turismo. Na zona litoral, em particular nas praias de maior potencial turístico, de que era paradigma emergente a Praia da Rocha, Quarteira e Monte Gordo, no Algarve, evolui-se para a criação local das Juntas de Turismo, tendo o Dr. Francisco Cabrita fundado e presidido à da Praia de Armação de Pêra, devendo-se à sua enérgica iniciativa a construção da Avenida Marginal, que ainda hoje é o local mais aprazível daquela estância turística.
Tratando-se de uma figura muito conhecida e respeitada em todo o Algarve, não admira que fosse convidado a aceitar o exercício, em simultâneo, das funções de médico da Casa do Povo, da Federação das Caixas de Previdência e da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses. Na visita aos seus doentes deslocava-se a cavalo pelos campos adentro, munido dos apetrechos médicos, fazendo todo o tipo de assistência médica, desde partos a fraturas ósseas, de pequenas cirurgias até ao tratamento de tuberculosos em adiantado estado de doença. E raras foram as vezes em que perdeu um paciente. A tuberculose e as doenças infecto-contagiosas, sobretudo nas camadas infantis, eram na época um flagelo, a que o Dr. Cabrita deu o melhor do seu esforço, num combate permanente entre a vida e a morte.
Busto do Dr.Francisco Cabrita, autoria do escultor José Carlos
O pedestal, em grés de Silves, é um trabalho de Bruno Matos.
Por outro lado, em face das suas convicções políticas, de nacionalista e entusiasta admirador do Doutor Oliveira Salazar, tornou-se no comandante de lança da Legião Portuguesa no Algarve. Faço lembrar que o único benefício que usufruía desse cargo era o de figurar nos lugares cimeiros das celebrações políticas e religiosas, sobretudo nas procissões pascais. Embora a Legião fosse uma espécie de milícia militar, de pouco lhe serviria o Dr. Francisco Cabrita que não fora soldado nem sabia disparar uma arma.
A determinada altura sentiu-se doente e caiu no leito durante largos meses, num cruciante sofrimento de que resultaria a sua morte prematura. Uma doença cancerosa vitimou-o precocemente, numa altura em que acalentava realizar vários projectos locais, para o desenvolvimento da indústria na sua aldeia natal, e para a saúde pública no concelho de Silves.
Em face de todas as iniciativas que promoveu, quer como médico quer como político local, o Dr. Francisco Cabral era certamente a figura pública mais conhecida do barlavento algarvio, razão pela qual o seu funeral, com mais de seis mil pessoas presentes, foi uma das maiores manifestações de pesar alguma vez presenciadas no Algarve.
Era casado com D. Inácia Nobre Figueira Neto Cabrita e pai de Domingos Manuel Figueira Neto Cabrita.
Por decisão da Junta de Freguesia de S. Bartolomeu de Messines foi dado o seu nome à rua onde sempre viveu e faleceu.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

CAIRES, Luthgarda de

Poetisa, escritora e publicista, Luthgarda Guimarães de Caires, de seu nome completo, nasceu em Vila Real de St.º António, a 15-11-1871, e faleceu em Lisboa, a 30-3-1935, com 63 anos de idade.
Fez a escolaridade básica na sua terra-natal, mas o falecimento da mãe não lhe permitiu prosseguir os estudos. Casou-se muito jovem, mais por necessidade do que por amor, e teve uma filha, Clotilde, cuja morte prematura a deixou destroçada para o resto da vida. Partiu para Faro, onde também não foi muito feliz, seguindo depois para Lisboa. Na capital conheceu o advogado João de Caires, um homem fino, delicado e com razoáveis posses financeiras. Casaram, tiveram um filho e pode dizer-se que foram felizes. Pelo menos proporcionou à jovem Luthgarda os meios necessários para dar azo ao seu talento, podendo a partir de então dedicar-se em exclusivo ao culto de Orfeu. A música e as Belas Letras, eram notoriamente a sua verdadeira paixão.
Tocava razoavelmente bem alguns instrumentos de cordas, como harpa, cítara e violino. Mas era no piano e no órgão que se entretinha a compor as melodias para as quais escrevia os seus poemas. Não sendo cantora lírica, pois que para isso não recebera instrução, possuía, porém, uma voz de cristalino timbre que fazia as delícias do marido e do filho, seus principais admiradores. Mas a sua negra sina depressa lhe ensombrou mais esse pormenor de felicidade. Sentindo fortes dores de garganta, supostamente resultantes de pólipos nas cordas vocais, foi, por conselho médico, submetida a uma desastrosa intervenção cirúrgica, que a impediria de voltar a cantar. Esse triste episódio da sua vida retratou-o com pungente realismo no seu romance O Doutor Vampiro, publicado em 1921, no qual a classe médica e a sua vontade de explorar os doentes constituíam o centro da trama romanesca. A imprensa e a crítica especializada teceram-lhe rasgados elogios, concordando com a maioria das críticas endossadas aos clínicos, que de forma pouco correcta encaravam a medicina como um negócio.
Passou então a dedicar-se exclusivamente às letras e às obras de caridade, que aliás constituíram o lenitivo da sua vida. Creio que a sua estreia literária se terá efectuado por volta de 1905 nas colunas de vários jornais lisboetas, não se sabendo ao certo qual o primeiro, mas sei, com toda a certeza, que foram «O Século», e quase em simultâneo o «Diário de Notícias», os alvos preferenciais da sua prestimosa colaboração. Como desde logo revelasse um estilo de prosa muito fino e elegante, só ao alcance dos grandes escritores, tornou-se objecto de comentário nos meios intelectuais da época. Os jornais brasileiros, que então mantinham acesa cooperação intelectual com o nosso país, foram igualmente contemplados com a generosa colaboração dessa tão precoce quanto misteriosa musa das letras.
Como mulher culta e ilustrada, mostrou-se interessada pelos grandes temas sociais do seu tempo, nomeadamente pela luta sufragista e emancipadora das mulheres, nitidamente imbuída do espírito que moviam outras figuras notáveis, como Ana de Castro Osório ou a sua comprovinciana Maria Veleda. Sabendo, através das suas correspondentes francesas, mulheres instruídas e modernas, do que se estava a passar na pátria de Rousseau e Voltaire, decidiu escrever para os jornais portugueses e estrangeiros entusiásticos artigos a defender os direitos e os interesses femininos, desde há séculos depreciados e até vilipendiados por uma sociedade masculinizada, a que os poderes públicos e a própria constituição davam legitimidade e protecção legal. Aliás, no decorre da sua vida, iniciou nas colunas da imprensa lisboeta verdadeiras batalha cívicas contra o analfabetismo que assolava preferencialmente o sexo feminino; contra a falta de direitos das mulheres, que se agravavam quando adquiriam o estatuto de esposas, passando quase a ser encaradas como objectos ou bens de propriedade dos maridos; contra o desvalimento das mulheres solteiras, das viúvas e abandonadas; contra a falta de protecção das mães solteiras, que por falta de meios de subsistência se viam muitas vezes compelidas a enjeitar os filhos ou a condená-los à mendicidade.
Luthgarda, gravura de Manuel Cabanas
Apesar do seu nome ser muito conhecido e respeitado na imprensa da capital, sendo aliás apontado como sinónimo de mulher culta e intelectualizada, o certo é que só em 1910 faria a sua verdadeira estreia em livro, publicando uma compilação de versos intitulada Glicínias, que teve estrondoso acolhimento nos meios literários da especialidade. Animada pelo sucesso obtido e motivada pela implantação da República, publicou logo em seguida o poemeto A Bandeira Portuguesa, através do qual se colocava ao lado do poeta Guerra Junqueiro, defendendo de forma empolgada e entusiástica a conservação das cores azul e branca no pendão nacional. Isto deu uma certa polémica com Teófilo Braga, que sustentava o verde e vermelho para a nova bandeira republicana, o que aliás veio a prevalecer. Acresce esclarecer que Luthgarda de Caires nunca foi republicana, mas também nunca se imiscuiu em quaisquer campanhas a favor do regresso à monarquia. Tornou-se politicamente independente, nunca aplaudindo a política partidária que arruinaria o regime republicano. Manteve-se pela vida fora à parte da política, e nem mesmo a acalmia do Estado Novo a demoveu a mudar de opinião e muito menos a simpatizar com a ditadura.
Em 1911 publicou o seu primeiro volume de prosa, uma colectânea de contos intitulada Dança do Destino, igualmente muito bem recebida pela crítica. Mas no ano seguinte voltou à poesia, dando à estampa um novo livro, As Papoilas, mais romântico e pueril do que os anteriores. Em 1916 dedicou à mãe e à sua filha Clotilde, tão prematuramente falecida, uma bela obra de poesia a que deu o título de Sombras e Cinzas. Continuaria depois a publicar novos livros de versos, que tal como os anteriores foram sempre muito aplaudidos pela crítica, como foi o caso de Pombas Feridas, Nossa Senhoras de Lourdes, e O Vagabundo. Por fim, em 1922, publicou nova colectânea de perfumados versos, a que deu o sugestivo título de Violetas, e no qual se insere o poema “Florinha das Ruas”, com que Luthgarda havia recebido o 1.º prémio dos Jogos Florais de Ceuta. Esse poema, tornou-se aliás bastante popular, a ponto de raras serem as senhoras, e até as crianças das escolas, que não o soubessem declamar.
Vem a propósito lembrar que a Condessa de Ribas e Madalena Brion, duas ilustres senhoras da primeira sociedade lisboeta, sugestionadas pela ética social do poema, e sobretudo pela popularidade que o mesmo atingira nos meios mais carenciadas, decidiram fundar uma instituição para a protecção de meninas pobres, à qual deram precisamente a designação de «Florinha das Ruas». Esse estabelecimento, criado à imagem das suas beneméritas instituidoras, esteve sediada num prédio no Campo de Santana, em Lisboa, que o tempo se encarregou de arruinar, e de assim fazer esquecer tão importante fundação.
Em prosa publicou ainda A Lenda de Guiomar, Árvores Benditas, Águas Passadas... (novelas), e dois livros de contos para crianças, intitulados Cavalinho Branco e o Palácio das Três Estrelas.
Acima de tudo, Luthgarda de Caires deixou uma obra de incontestável valor literário, norteada pelos altos princípios morais que modelaram a sua vida como cidadã e como mulher. Porém o seu nome será para sempre lembrado pela sua grande dedicação a variadíssimas obras de caridade, tendo-se principalmente à protecção das crianças e ao acompanhamento moral e conforto social dos presos. Assim, não podemos esquecer que em 1914 foi ela quem promoveu o auxílio às crianças doentes no Hospital da Estefânia, em cujo seguimento criou em 1924 o Natal do Hospitais, com o apoio logístico e financeiro do «Diário de Notícias». Tudo começou quando, por sua iniciativa, o «Diário de Notícias» abriu uma subscrição para comprar brinquedos para as crianças doentes nos hospitais. Foi uma bola de neve, que anualmente crescia de sucesso, a tal ponto que os artistas de circo e do teatro infantil se disponibilizaram para ir aos hospitais confortar as crianças. A partir daí nunca mais parou de crescer esta brilhante iniciativa, que hoje é transmitida pela televisão para o país, e por cabo para o mundo inteiro.
Também pugnou na imprensa pela abolição do uso de capuz, e às vezes de máscara, a que obrigatoriamente estavam sujeitos os presos da penitenciária de Lisboa. Essa prática foi efectivamente abolida quando o Dr. Rodrigo Rodrigues dirigiu o referido estabelecimento penal, por concordar com as objecções tecidas na imprensa pela poetisa Luthgarda de Caires. Também viu satisfeitas as suas críticas tecidas às vexatórias grades que defendiam as janelas do Aljube, então destinado ao internamento das mulheres condenadas por crimes públicos. Parecia-lhe que seria suficiente reduzir para apenas uma, em vez de três, as grades com que se pretendia impedir a fuga das prisioneiras, o que só muito raramente havia acontecido.
Na imprensa nacional, Luthgarda de Caires colaborou assiduamente no «Diário de Notícias», «O Século», «A Capital», «Correio da Manhã», «Ecos da Avenida», nas revistas «Brasil e Portugal», «Enciclopédia do Lar», etc., etc...
Monumento erigido a Luthgarda de
Caires no Jardim de V.R.Stº António
 
No âmbito da imprensa algarvia, Luthgarda de Caires colaborou sobretudo em poesia, em «Districto de Faro» (1911), «O Heraldo» (1912), «Correio Teatral» (1923), «Correio do Sul» (1924) e «O Algarve», todos de Faro; «A Província do Algarve» (1914) de Tavira e a revista «Nossa Terra» fundada em Maio de 1931 em Vila Real de St.º António. Mas a b em dizer foi o «Correio do Sul» que após a morte de Luthgarda se tornou no principal divulgador da sua nobre actividade social em prol das crianças, assim como da sua talentosa obra poética.
Moderna estátua de Luthgarda de
 Caires, erigida no cais de VRSA 
A relevância da sua obra literária e da sua acção cívica em prol das crianças, justificaram que por parte do governo fosse condecorada com as comendas de Santiago e da Ordem da Benemerência. Curiosamente, foi o ditador Oliveira Salazar quem, em 1931, lhe atribuiu o Oficialato da Benemerência. Também no Brasil havia sido há muito homenageada com a medalha de prata, pela excelsa magnitude da sua obra literária, aquando das comemorações do Centenário da Independência, realizadas em 1922.
Em 20-5-1936, um ano após a sua morte, a autarquia vilarealense aprovou por unanimidade uma proposta apresentada pelo presidente Matias Sanches, na qual atribuiu o nome da poetisa sua conterrânea ao antigo Largo da Fonte, junto do qual se situava aliás a casa onde nascera. Mais tarde, em Abril de 1966, voltou a autarquia a homenagem a sua memória, descerrando um busto, da autoria do consagrado escultor Raul Xavier, na pequena praça que tem o seu nome.
Existe actualmente uma estátua a corpo inteiro na poetisa, num recanto do jardim que se estende ao longo da bela marginal do seu “Rio Encantado”, em Vila Real de Santo António.
Para terminar, devemos acrescentar que foi casada com o Dr. João de Caires e era mãe do distinto médico Dr. Álvaro Guimarães de Caires, que foi um notável investigador e crítico de arte.
Acima de tudo Luthgarda de Caires foi uma mulher de campanhas nacionais. E como já aqui dissemos ficará para sempre lembrada como a criadora do Natal dos Hospitais, que actualmente já não se confina a Lisboa mas a todo o país, continuando o «Diário de Notícias», tal como na sua origem, a promover aquela que foi, e continua a ser, a mais louvável das suas iniciativas.
Em resumo, a obra literária de Luthgarda de Caires compõe-se dos seguintes títulos: Glycinias, 1910; A bandeira portuguesa, 1910; Papoulas, 1912; A dança do destino, contos e narrativas, 1913; A revolta, da autoria de Nelly Roussel, adaptação em verso de Luthgarda de Caires, 1914; Sombras e cinzas, 1916, (2.ª ed. 195?) O Doutor Vampiro, romance, 1923 Violetas, 1925 O palácio das três estrelas, novela infantil, 1931.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

CORREIA, Maria do Espírito Santo

Poetisa e fundadora do jornal «A Avezinha», nasceu na freguesia de Paderne, concelho de Albufeira, a 23-7-1895 e faleceu em Lisboa a 7-3-1968.
Muito embora não possa afirmar que Maria do Espírito Santo Correia foi uma figura das letras algarvias e muito menos uma publicista de talento, não tenho, porém, dúvidas sobre as suas qualidades intelectuais, já que era uma senhora de esmerada educação e de grande nível social. Convém frisar que era irmã do comendador António Libânio Correia (ver/nome), bastando esse cartão de apresentação para conviver com as figuras mais ilustres da sociedade intelectual lisboeta.
Durante a sua juventude, e enquanto viveu na freguesia de Paderne, sempre apoiou as iniciativas locais de solidariedade social, colaborando com a Igreja e o pároco nas acções de protecção das crianças, combate ao analfabetismo e ajuda aos pobres. No âmbito dessas acções surgiu a ideia de editar o jornal «A Avezinha» de que é uma das quatro fundadoras. Como era certamente a mais instruída e a mais habituada a lidar com dinheiros, coube-lhe a tarefa de administrar o jornal, sobretudo pagar as contas inerentes à sua edição, cobrar as assinaturas e recolher donativos. Apesar das tarefas administrativas, também cuidou de escrever algumas crónicas que, diga-se em abono da verdade, tinham grande qualidade literária, ainda que afinassem pelo mesmo diapasão das suas colegas, ou seja, eram profundamente inspiradas na moral cristã e perseguiam o objectivo de divulgarem os salutares valores da amizade, da honestidade, da caridade e da bondade para com os mais desafortunados.
Apesar dessas tarefas administrativas também se ocupou com a redacção das notícias locais e compôs algumas poesias de fino recorte estilístico e de incontestável beleza lírica. E se não deu mais nas vistas foi porque se sentia a “flor” mais burguesa daquele canteiro feminino que foi «A Avezinha». Talvez por ser a mais instruída e ilustrada, teve a honra de assinar o artigo de fundo com que se inaugurou a publicação do jornal. Como eram todas ainda muito jovens, o Padre João dos Santos Silva, considerava-as como umas florinhas daquele humilde e muito modesto jardim que era ao tempo a freguesia de Paderne. Por isso, coube-lhe o pseudónimo de “Hortênsia”, enquanto a Maria da Conceição Elói (ver/nome) era a “Madressilva, a Maria Feliciana Marques (ver/nome) era a “Violeta” e a Maria Costa Mendes (ver/nome) era a “Rosa”, havendo ainda outros pseudónimos não identificados como a “Bonina”, a “Margarida” a “Açucena”, a “Urze”, a “Camélia” e a “Tília”.
Na falta de meios financeiros, a Maria Correia pagava do seu bolso o que as verbas que estivessem em falta.
Creio que de todas as fundadoras do jornal é hoje a mais esquecida.
Após viver durante largos anos na companhia do irmão, decidiu voltar a fixar residência em Paderne, onde acabaria por casar-se com José Gonçalves Cruz, mais conhecido por José da Rita.