quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Efemérides Algarvias - 3 de Fevereiro


O Castelo de Porches e o seu foral

No dia 3 de fevereiro de 1250, D. Afonso III, o primeiro a usar o título de Rei de Portugal e do Algarve, doou ao seu Chanceler, Estevam Annes, o Castrum de Porches e as terras envolventes, em honra dos serviços prestados. Significa isto que em Porches existia um castelo, certamente um antigo reduto militar romano, depois reconstruído e colonizado pelos almorávidas, que no século XIII se submeteu aos espatários de D. Paio Peres Correia.
Rei D. Afonso III, conquistador do Algarve
O documento desta doação está firmado pelo monarca em «sancta Mariam de faarom» em benefício do seu Chanceler, uma espécie de primeiro-ministro de agora, dando-lhe posse de «todos os terrenos e pertenças novas e antigas, estragadas ou conservadas (…) vinhas, figueiras e oliveiras, com todas as pescarias (…), com o direito do padroado sobre a igreja ou igrejas que dentro do mesmo Castro e seus limites se venham a edificar, salvando para nós o privilégio da preparação do ouro e prata, minério e fundições». Acrescenta, ainda, que os moradores do Castrum de Porches ficavam «isentos e livres de todos os direitos do serviço real, de qualquer tributo, de qualquer obrigação servil, e isto por forma que para o futuro nenhum foro será lançado ao castelo por nós ou por nossos sucessores ou pelos nossos homens que nele devam habitar».(1)
Significa isto que o Chanceler ficava com o benefício do rendimento daquelas terras (vinho, azeite, figo e pesca), reservando o rei a mineração dos metais, caso existissem, para a amoedação. Aos seus moradores dava-lhes o privilégio da isenção fiscal e do serviço real ou servil, isto é, livres de impostos e das obrigações feudais que humilhavam os camponeses, como era o caso das “banalidades”, das “corveias”, das “talhas” e outras “miunças”. Repare-se que estavam livres do serviço real, isto é, do “fossado”, que consistia na prestação do serviço militar contra os invasores sarracenos.
Estes incentivos devem ter facilitado o desenvolvimento de Porches, que foi crescendo em população, tornando-se num pequeno centro pesqueiro com um porto comercial, no qual se abriram os talhos do sal com que se conservavam as pescarias da sardinha e do atum. As salinas de Porches e Alvor foram, aliás, muito consideradas no valor e qualidade da sua produção. O sal era aquilo a que se pode chamar o "ouro branco" da época, tal era a sua escassez e alto preço.
Aos antigos se acrescentaram novos privilégios, reconhecidos e concedidos por D. Dinis, em 20-08-1286, no foral de usos e costumes outorgado a Porches, em igualdade de circunstâncias com o de Silves, que era, por sua vez, um decalque do que fora atribuído a Lisboa. O foral dionisíaco tem vários pormenores dignos de relevo, que não vou aqui escalpelizar, até porque a Doutora Maria de Fátima Botão, já escreveu um exaustivo trabalho sobre este assunto.

Não obstante, é bem certo que todas essas prerrogativas, regalias e benefícios concedidos no Foral, dão uma justa proporção da importância militar do castelo de Porches no século XIV. Não sei se nos seus trâmites correspondia à realidade militar então ali vigente, porque se tratava de um documento modelo usado noutras praças militares. Em todo o caso, parece-me que a vila de Porches foi no século XIV um importante posto de defesa militar da costa algarvia, conforme se atesta na confirmação desses privilégios concedida por D. Pedro I, em 1357. (2)
A esmagadora maioria dos privilégios concedidos no foral são de carácter militar, razão pela qual se infere a sua importância estratégica na protecção do litoral algarvio contra as incursões dos piratas e salteadores marroquinos.
De entre as regalias concedidas aos habitantes e militares de Porches, há uma particularidade que importa ressaltar, por dizer respeito às mulheres, que é a seguinte: «a mulher do soldado que enviúve tenha as honras de soldado até que se case, e se requerer conceda-se-lhe o foro do que requerer (…) Se porém a mulher do soldado, estando viúva, tiver um filho tal que, vivendo com ela em casa, possa cavalgar faça-o pela mãe…». (3)
Vemos, assim, que as viúvas dos soldados não ficavam na miséria, e que se quisessem voltar a casar tinham direito de manter as honras e privilégios do foro militar, obrigando-se, porém, a conduzir o filho varão para a vida castrense. É raro neste tipo de documentos dar-se destaque e protecção às mulheres, mas como se tratava de Porches, um porto marítimo, uma praça militar, alvo dos ataques corsários, situada em local extremado, é lógico que havia que manter-lhe a população para que não lhe desertassem os meios de sobrevivência social e económica.
Praia do Carvoeiro e a ermida de Nª Sª da Rocha
Já que falei nos privilégios militares contidos no foral de Porches, repare-se neste sobre a protecção do soldado que se incapacita por ferimento ou velhice: «O soldado que se enfraqueça ou de tal modo se debilite, que se não possa incorporar no exército, conserve-se-lhe as honras de soldado». Isto quer dizer que todo o soldado que for abatido ao efectivo tinha direito a manter o seu soldo e as suas dignidades militares. Para mim o mais notável de todos os privilégios concedidos pelo rei poeta, é este: «Os soldados de Porches ocupem a vanguarda do exército do rei». Tratava-se de uma honra distintíssima, uma prerrogativa militar pela qual se batiam as principais praças fortes do nosso país.
É claro que de tudo isto já só resta a memória do passado, porque do velho «Castrum» de Porches apenas ficou o documento da doação de D. Afonso III, em 1250, ao seu chanceler, logo após a anexação do Algarve. E o antigo foral dionisíaco, que nos permite avaliar a importância daquela praça forte, de que hoje já não existe testemunho material, a não ser a designação de "Porches Velho" dada pelo povo a um local próximo da praia do Carvoeiro, hoje conhecido por Nossa Senhora da Rocha. Mas isso são velhas lendas, outras dúvidas, mistérios e interrogações, para cuja discussão não será este o melhor palco.
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(1) ANTT, Chancelaria de D. Afonso III, Livro 1º, fl. 106.
(2) ANTT, Chancelaria de D. Pedro I, Livro 1º, fl. 21, que tem na ilharga da coluna a data de 9 de outubro, relativa aos mouros de Évora. Presumo que o reconhecimento dos privilégios do Castelo de Porches seja da mesma data, isto é, de 9 de outubro de 1357.
(3) ANTT, Chancelaria de D. Dinis, Livro 1º, fl. 173.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

João Peres publica as suas «Memórias militares no Estado Português da Índia»

O meu amigo João Peres teve a amabilidade de me oferecer, com amável dedicatória, o seu último livro «Memórias, militares no Estado Português da Índia», prefaciado por Mário Proença, numa co-edição do Núcleo de Olhão da Liga dos Combatentes e do jornal «O Olhanense». Devo confessar que tenho pelo cidadão João Peres o maior apreço e consideração, não só pelas acções que tem desenvolvido em prol da sua cidade natal, como muito especialmente pelo povo de Olhão.
João Peres
O meu amigo João Peres foi um conceituado funcionário bancário até 2009, data da sua aposentação, mas foi como autarca que melhor o conheci e aprendi a admirar. Primeiro como vereador e depois como secretário executivo da Junta de Freguesia de Olhão. A seu convite participei em vários eventos e homenagens de índole histórica e cultural, quer a título individual quer como presidente da AJEA.
Manda a justiça realçar que, em todos os actos cívicos promovidos por aquela Junta, apercebi-me sempre da sua competência e do elevado zelo com que cuidada do mais ínfimo pormenor, para que tudo, no fim, corresse bem e fosse um sucesso. Pessoas com o sentido de responsabilidade do João Peres eram, nessa altura como ainda hoje, muito raras, porque em geral quem realiza e produz deixa-se seduzir pela ambição, que suscita a luz da vaidade. Nunca o João Peres se aproximava dos lustres da ribalta, para chamar a si a vã glória do sucesso ou do poder. A sua principal característica era a forma humilde, tímida até, como declinava os elogios que lhe eram devidos, endossando-os sempre para a sua Gracinda, que então presidia com enorme simpatia à Junta de freguesia de Olhão.
As circunstâncias do tempo e da política, acabariam por levá-lo depois a assumir a presidência do executivo da Junta, creio que por dois mandatos, e recentemente a presidir à assembleia da freguesia de Quelfes.
Mas de todas as conversas que com ele mantive, as que mais me emocionavam eram as suas recordações de África e da fatídica guerra colonial, da qual também eu guardava nefastas lembranças, quando no Natal de 1964 recebi a notícia da morte do meu irmão Álvaro Manuel Vilhena Mesquita, caído em combate na Guiné.
O João Peres é o exemplo do bom e modesto português, que apesar de todas as circunstâncias, nunca se arrependeu nem algum dia deixou de se orgulhar de ter defendido a Pátria na guerra colonial. Para defesa da honra e dignidade de todos os que a seu lado defenderam a nação lusíada, escreveu vários artigos na imprensa regional, nomeadamente no jornal «O Olhanense», elogiando aqueles que preservaram o nome e a glória de Portugal em África. E quando já quase nos íamos esquecendo dos que nas antigas colónias zelaram pela soberania nacional, o amigo João Peres bradava alto e com orgulho, que muitos dos seus camaradas haviam regressado à pátria diminuídos na sua integridade física, moral e psíquica. E foi com lucidez e coragem, que reivindicou o título de heróis nacionais para todos os soldados portugueses (brancos, negros e mestiços), que no capim da savana derramaram o próprio sangue, quando não perderam, na flor da idade, a sua própria vida.
Por causa dessa intransigente defesa dos valores, que enformam a pátria portuguesa, é que o João Peres foi eleito presidente do núcleo de Olhão da Liga dos Combatentes. Actualmente preside à Mesa da Assembleia-Geral, continuando a desenvolver acções de grande merecimento público, nos domínios da cultura e da acção social.
Para todos os que se interessam pela história da guerra colonial, lembro que o meu amigo João Peres já publicou outros trabalhos de grande interesse, nomeadamente «Retratos» em 2012, e «Memórias – Olhanenses na guerra do Ultramar», em 2013. Em 2016, complementou os trabalhos anteriores num livro de maior fôlego e abrangência intitulado «Memórias – combatentes na guerra do Ultramar», no qual analisa e descreve a vida, o sofrimento e sacrifício de alguns heróis que a seu lado combateram em África.
Este livro, que por amável deferência me ofereceu, narra com grande realismo as circunstâncias em que sobreviviam, com indizíveis dificuldades, as nossas forças militares nos antigos estados da Índia Portuguesa. A sua leitura é de um interesse fundamental, sobretudo para quem pretenda conhecer, ao pormenor, a bravura e a conduta heroica desenvolvida pelos soldados e oficiais algarvios nas antigas possessões do oriente. Neste livro relatam-se os sacrifícios e privações, o sofrimento e a saudade, a coragem e a valentia com que desempenharam as suas missões; mas também os momentos de lazer, os folguedos e tropelias, o bom humor com que tentavam dissipar a saudade e o temor da morte. Nele se descreve a acção militar, mas também o trajecto de vida de 27 jovens militares algarvios, que o João Peres resgatou do injusto esquecimento, a que todos nós votamos, aqueles que heroicamente defenderam a honra e glória de Portugal, na longínqua Goa, em Damão, Pequeno e Grande, e na mítica cidade de Diu.
Uma última palavra para as centenas de fotografias que ilustram este livro, muitas das quais são verdadeiros documentos para a história da nossa guerra no oriente.