sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Carlos da Silva Fernandes, um homem que se fez a si próprio

Carlos da Silva Fernandes
O trajecto de vida do cidadão Carlos da Silva Fernandes foi muito curioso, ao estilo do self-made man, que teve altos e baixos, sucessos e desilusões, que o levaram de uma situação de riqueza até quase ao descalabro. Mas enquanto outros desistem e se revoltam contra a vida e acusam os outros do seu infortúnio, com Carlos Fernandes aconteceu precisamente o contrário. Levantou-se do chão e voltou a vencer. O facto de ser um homem culto e de grande inteligência, associada à rara capacidade de fazer amigos e de prever os acontecimentos a uma certa distância no tempo, permitiu-lhe ter quase sempre do seu lado o sucesso nos negócios e um vasto leque de relações de trabalho.
Começou o seu trajecto de vida nos meios artísticos e culturais de Lisboa o que lhe permitiu tornar-se conhecido em certos sectores empresariais da capital, estabelecendo uma teia de afinidades que aproveitou para se lançar noutros voos. Avançou então no caminho da indústria, tornando-se proprietário de uma fundição que laborou muitíssimo bem até ao “25 de Abril”, com uma carteira de negócios ligada ao ultramar e a alguns países da Europa. Todavia, aguçou-se-lhe no espírito a paixão pela política, e por isso se desleixou com a direcção e volume de negócios da sua empresa. Fundou com outros utópicos democratas o Partido Republicano, e na ânsia da sua afirmação eleitoral fez-se à estrada e viajou pelo país inteiro, restabelecendo relações e amizades antigas. 
Mas a política tirou-lhe a disponibilidade para se dedicar à sua empresa, a tal ponto que a situação da fundição se tornou insustentável. A falência aconteceu num ápice e a quimera da política esfumou-se à mesma velocidade com que se esboroaram os negócios e o descalabro da sua empresa industrial.
Face à difícil situação económica em que se encontrava, decidiu vender os produtos fabricados que tinha em armazém, assim como os móveis e outros objectos que possuía em sua casa, tornando-se de um momento para o outro nem vendedor ambulante, que percorria as feiras e mercados do país. Estabeleceu novas relações e amizades constatando que entre os seus novos colegas de profissão não existia nem organização, nem ordem e muito menos um espírito solidário que os pudesse ajudar em situações imprevisíveis de crise. Assim, decide criar uma associação de vendedores ambulantes, da qual se tornaria num líder natural, não só pelos seus dotes de inteligência, como ainda pela sua cultura, pela sua lhaneza de trato e até pela sua anterior experiência política, num projecto que não obstante ter falhado sempre lhe proporcionou um vasto conhecimento das relações humanas. Tornou-se, assim numa espécie de porta estandarte dos vendedores ambulantes, e nessa qualidade visitou ministérios e foi presença activa em certos momentos na Assembleia da República.
Dessa sua actividade comercial, relacionada com os mercados e a venda ambulante, resultou a eleição para presidente da direcção da Feimercal - Associação dos Feirantes e Vendedores Ambulantes, à frente da qual prestou inestimável colaboração no sentido da abertura de um mercado mensal em Paderne.
Panorâmica da aldeia de Paderne
Em boa verdade, Carlos Fernandes tornara-se num padernense de alma e coração, nascendo esse amor e essa forte convicção regionalista a partir do jornal «Avezinha». Curiosamente, foi em Armação de Pêra que tomou contacto com a leitura deste semanário, sentindo desde logo uma forte empatia por este humilde órgão da imprensa regional algarvia, não só pela sua curiosa designação como, sobretudo, pelo seu forte pendor cultural. Procurando conhecer melhor as origens e os dirigentes do jornal, deslocou-se à freguesia de Paderne, onde depois de se relacionar com as pessoas tratou logo de colaborar com artigos e notícias, relacionados com a vida comercial da região e até com o fomento cultural, de que tanto carecia a freguesia pela qual logo se apaixonara.
Gostava tanto do jornal como da aldeia, pelo que tratou em breve de adquirir uma casa onde fixou a sua residência. Contrariando as origens e até as expectativas de grandes negócios, Carlos Fernandes deixou Lisboa, onde nascera e vivera muitos anos, transferindo-se para a província por uma questão de felicidade e de paz interior, que encontrou nessa pacata aldeia algarvia.
Arménio Aleluia Martins, director e refundador do jornal
 «Avezinha», hoje museu de imprensa em Paderne
Carlos Fernandes pela sua bagagem cultural, e até pelo seu porte físico, era um homem de forte personalidade, mas de grande afabilidade social, cuja dimensão humana era muito rara nos dias de hoje. Apesar de todas as vicissitudes da vida, soube sempre lutar e vencer os escolhos que teve de enfrentar no difícil mundo dos negócios e do comércio, sabendo sempre cativar e manter as relações humanas. Nem sempre abundante de meios financeiros, era a amizade o melhor capital que possuía.
A sua inclusão no meu «Dicionário dos Jornalistas e Homens de Letras do Algarve» é uma espécie de homenagem a um homem de fáceis relações humanas e de exuberante trato social, que fez da sua colaboração no jornal «A Avezinha» uma válvula de escape, uma forma de dar largas às suas inatas capacidades de homem de letras que nunca chegou a ser por desencontros do destino.
Carlos da Silva Fernandes, foi aquilo a que o vulgo chama "o homem dos sete instrumentos", pois que durante a sua vida desempenhou actividades profissionais de sucesso no mundo da indústria, do comércio e até da comunicação social, tendo sido um dedicado colaborador do jornal «A Avezinha», órgão sediado na humilde freguesia de Paderne, concelho de Albufeira, cuja audiência de leitores se espalhava pelo mundo inteiro. 
Resta-me acrescentar, para concluir, que Carlos da Silva Fernandes, nasceu em Lisboa, a 19 de Dezembro de 1921, e faleceu em Paderne, onde ficou sepultado, no concelho de Albufeira, a 17 de Junho de 2005, com 83 anos de idade.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Maria da Conceição Elói, uma mulher do povo que lutou pela educação e pela cultura algarvia

Poetisa e jornalista, Maria da Conceição de Sousa Elói nasceu em Paderne, freguesia do concelho de Albufeira, a 31-8-1898, e faleceu em Faro a 7-12-1979.
Desde criança, nos bancos da escola primária, que revelava aptidões para a poesia, escrevendo versos dedicados aos colegas e professores. Não tendo podido ir mais além nos estudos, conseguiu aumentar a sua educação através da leitura de autores clássicos e de algumas lições de francês e de piano, adquiridas na convivência com as famílias mais ilustradas de Paderne.
A vontade de auxiliar os pobres e de comunicar à sociedade a urgente necessidade de ajudar os mais desfavorecidos, levou-a editar, em Março de 1921, um jornal manuscrito inocentemente intitulado "a Avezinha", tendo como redactoras principais quatro meninas, e todas Marias, cujo coração transbordava de altruísmo e de amor pelo próximo. As quatro Marias, subscreviam os seus artigos e poesias, na pueril inocência das suas idades, com o pseudónimo de flores. Assim, além da Maria Conceição Elói, que assinava como Madressilva, colaboravam também a Maria Feliciana Marim Marques, como Violeta, a Maria da Conceição Mendes Costa Biker, como Rosa, e a Maria do Espírito Santo, como Hortênsia. Seguiu-lhes o exemplo, a ilustre Maria Francisca Arez Frias, que assinava os seus preciosos artigos com o pseudónimo de Gardénia. Ignoro, infelizmente, a identidade daquelas que assinavam com os criptónimos de Bonina, Urze, Assucena, Margarida, Camélia, Tília, etc. Pode mesmo dizer-se, que naquele pueril “jardim” despontou uma espécie de escola de jornalismo feminino.
Inspiravam-se as cândidas redactoras no culto da natureza, na bondade e na fraternidade, a tal ponto que parece estar na sua génese a intenção de angariar esmolas para uma velhinha que se encontrava cega, o que só se poderia fazer estendendo a triste notícia a todos os amigos padernenses espalhados pelo Algarve. A designação do jornal, algo infantil, demonstra a inocência das suas fundadoras, que julgando-se pobres criaturas indefesas e perdidas nos montes do barrocal, longe dos centros culturais e das grandes cidades, procuravam através do voo da sua “Avezinha” transmitir a todos os seus conterrâneos uma mensagem de amor e fraternidade, consentânea com o espírito cristão que a todas irmanava.
Depois da fase manuscrita, em que o jornalinho passava de mão em mão, com redobrados carinhos, o padre João Santos Silva, reconhecendo o esforço daquelas jovens e a utilidade daquele arauto da benemerência e da bondade, conseguiu que a diocese o aceitasse como boletim paroquial. Assim, em 17-7-1921, e sem quaisquer encargos para os seus fundadores, passou a editar-se em letra de forma, na tipografia União em Faro, aumentando o seu auditório e os seus horizontes de comunicação.
Tornou-se, deste modo, no primeiro jornal do povo de Paderne. E durante quinze anos foi cumprindo os seus objectivos, humanitários e culturais, até que a emigração para o Brasil da Maria Feliciana, e a morte do padre João dos Santos Silva, suscitaram em 28-12-1939 a mudança da sede do jornal para Faro, onde sobreviveu até à edição n.º 331 datada de 17-10-1953. Nesse período «a Avezinha» foi dirigida pelo padre Dr. Sesinando Oliveira Rosa, tendo estranhamente como proprietário do título o Padre José Gomes da Encarnação bondosíssima figura do presbitério diocesano. O apoio das suas fundadoras e dos seus beneméritos colaboradores foi esmorecendo até que se extinguiu.
Maria da Conceição Elói teve, felizmente, a alegria que ver ressurgir em Maio de 1977, a sua «Avezinha», pela mão de Arménio Aleluia Martins, seu dedicado amigo e admirador, que ainda tentou entregar-lhe o lugar de Directora que, modestamente, declinou. Continuou, porém, a colaborar até quase aos derradeiros dias da sua vida.
O talento, sobretudo poético, de Maria da Conceição Elói revelar-se-ia noutras colunas da comunicação social algarvia, nomeadamente na «Folha do Domingo» e «Correio do Sul» (ambos de Faro), no «Povo Algarvio» (de Tavira), na «Folha de Alte» (Loulé), nas revistas «Portugal Feminino» e «Almanaque de Santo António» (ambas de Lisboa) e em mais duas outras que se editavam no Brasil.
Consciente do seu valor, mas também desejosa de poder aferi-lo, concorreu a variadíssimos Jogos Florais, realizados tanto no Algarve como no resto do País, nomeadamente em Lisboa, Évora, Caldas da Rainha, Porto, Cascais. Desse modo obteve dezenas de prémios, entre 1ºs e 2°s lugares, assim como centenas de menções honrosas. Recebeu o último galardão em Lisboa, num concurso promovido pela revista «Mundo Rural», onde classificou em 2° lugar um dos seus contos. Ficou muito sensibilizada com o prémio atribuído e por isso decidiu ir a Lisboa, que foi dos raros actos públicos a que compareceu, pois o seu espírito modesto e simples não se compaginava com honrarias públicas.
Exerceu uma fecunda actividade literária durante quase setenta anos, escrevendo em verso todos os géneros de poesia, e em prosa redigiu belos contos literários e inúmeras crónicas jornalísticas. Como poetisa possuía especial apetência para a composição de sonetos.
No primeiro aniversário da sua morte o povo de Paderne homenageou-a com a colocação de uma lápida na casa onde nasceu, no sítio dos Montes Elóis, e uma placa evocativa junto do seu túmulo no cemitério local. Também lhe atribuiu o nome a uma das ruas da sua amada terra-natal.
Maria da Conceição Elói, na velhice
Em homenagem à sua obra poética, o Racal Clube de Silves escolheu-a para patrona dos VI Jogos Florais do Algarve, com a particularidade de ter sido a primeira mulher a receber essa distinção.
O jornal «a Avezinha», prestou-lhe, porém, a mais profunda e merecida homenagem de todas as que se haviam realizado, quando o seu director, Arménio Aleluia Martins, decidiu realizar o maior dos sonhos que a pobre poetisa nunca concretizou em vida - a publicação em livro dos seus versos. O título já ela o havia escolhido quando confidenciou à sua dilecta amiga Joselina: “Mal acordei esta manhã, passou-me pela mente, este pensamento com a rapidez de um relâmpago – se um dia publicasse um livro, gostaria que lhe pusessem: «Ecos da Minha Voz»...” Com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Albufeira o livro saiu a público em Janeiro de 1983, com o título de Ecos da Minha Voz, cumprindo-se a vontade da sua autora.
Acima de tudo Maria da Conceição Elói era uma mulher simples, alegre, afectuosa e expansiva. Tinha uma débil compleição física, era pequena e frágil, mas possuía um coração de ouro, uma alma de bondade e carinho, uma rara grandeza de espírito para uma mulher do campo, desprendida de vaidades e honrarias, que as mereceu, mas só as teve depois de morta.
Na sua lápide funerária incrustaram, em jeito de homenagem, este belo poema da sua autoria:
 
ANOITECEU...
 
Minha "irmã morte", quando tu chegares
Não tentes desviar o meu destino,
Nunca gostei de coisas singulares,
É tudo em mim, humilde e pequenino.
 
É tudo em mim, suave e cristalino,
Sem loucas alegrias, vãos pesares,
Eu canto a vida, como a voz do sino
Vai espalhando sons por esses ares...
 
Como regressa ao ninho uma andorinha
Ao pressentir que a noite se avizinha,
E para repousar ali desceu,
 
Numa campa rasa ó minha "irmã morte!"
Quisera um epitáfio desta sorte:
"Minha aldeia, voltei! Anoiteceu"...