Fez a escolaridade básica na sua terra-natal, mas o falecimento da mãe não lhe permitiu prosseguir os estudos. Casou-se muito jovem, mais por necessidade do que por amor, e teve uma filha, Clotilde, cuja morte prematura a deixou destroçada para o resto da vida. Partiu para Faro, onde também não foi muito feliz, seguindo depois para Lisboa. Na capital conheceu o advogado João de Caires, um homem fino, delicado e com razoáveis posses financeiras. Casaram, tiveram um filho e pode dizer-se que foram felizes. Pelo menos proporcionou à jovem Luthgarda os meios necessários para dar azo ao seu talento, podendo a partir de então dedicar-se em exclusivo ao culto de Orfeu. A música e as Belas Letras, eram notoriamente a sua verdadeira paixão.
Tocava razoavelmente bem alguns instrumentos de
cordas, como harpa, cítara e violino. Mas era no piano e no órgão que se
entretinha a compor as melodias para as quais escrevia os seus poemas. Não
sendo cantora lírica, pois que para isso não recebera instrução, possuía,
porém, uma voz de cristalino timbre que fazia as delícias do marido e do filho,
seus principais admiradores. Mas a sua negra sina depressa lhe ensombrou mais
esse pormenor de felicidade. Sentindo fortes dores de garganta, supostamente
resultantes de pólipos nas cordas vocais, foi, por conselho médico, submetida a
uma desastrosa intervenção cirúrgica, que a impediria de voltar a cantar. Esse
triste episódio da sua vida retratou-o com pungente realismo no seu romance O
Doutor Vampiro, publicado em 1921, no qual a classe médica e a sua vontade de
explorar os doentes constituíam o centro da trama romanesca. A imprensa e a
crítica especializada teceram-lhe rasgados elogios, concordando com a maioria
das críticas endossadas aos clínicos, que de forma pouco correcta encaravam a
medicina como um negócio.
Passou então a dedicar-se exclusivamente às letras e
às obras de caridade, que aliás constituíram o lenitivo da sua vida. Creio que
a sua estreia literária se terá efectuado por volta de 1905 nas colunas de
vários jornais lisboetas, não se sabendo ao certo qual o primeiro, mas sei, com
toda a certeza, que foram «O Século», e quase em simultâneo o «Diário de
Notícias», os alvos preferenciais da sua prestimosa colaboração. Como desde
logo revelasse um estilo de prosa muito fino e elegante, só ao alcance dos
grandes escritores, tornou-se objecto de comentário nos meios intelectuais da
época. Os jornais brasileiros, que então mantinham acesa cooperação intelectual
com o nosso país, foram igualmente contemplados com a generosa colaboração
dessa tão precoce quanto misteriosa musa das letras.
Como mulher culta e ilustrada, mostrou-se
interessada pelos grandes temas sociais do seu tempo, nomeadamente pela luta
sufragista e emancipadora das mulheres, nitidamente imbuída do espírito que
moviam outras figuras notáveis, como Ana de Castro Osório ou a sua
comprovinciana Maria Veleda. Sabendo, através das suas correspondentes
francesas, mulheres instruídas e modernas, do que se estava a passar na pátria
de Rousseau e Voltaire, decidiu escrever para os jornais portugueses e
estrangeiros entusiásticos artigos a defender os direitos e os interesses
femininos, desde há séculos depreciados e até vilipendiados por uma sociedade
masculinizada, a que os poderes públicos e a própria constituição davam
legitimidade e protecção legal. Aliás, no decorre da sua vida, iniciou nas
colunas da imprensa lisboeta verdadeiras batalha cívicas contra o analfabetismo
que assolava preferencialmente o sexo feminino; contra a falta de direitos das mulheres,
que se agravavam quando adquiriam o estatuto de esposas, passando quase a ser
encaradas como objectos ou bens de propriedade dos maridos; contra o
desvalimento das mulheres solteiras, das viúvas e abandonadas; contra a falta
de protecção das mães solteiras, que por falta de meios de subsistência se viam
muitas vezes compelidas a enjeitar os filhos ou a condená-los à mendicidade.
Luthgarda, gravura de Manuel Cabanas |
Apesar do seu nome ser muito conhecido e respeitado
na imprensa da capital, sendo aliás apontado como sinónimo de mulher culta e
intelectualizada, o certo é que só em 1910 faria a sua verdadeira estreia em
livro, publicando uma compilação de versos intitulada Glicínias, que
teve estrondoso acolhimento nos meios literários da especialidade. Animada pelo
sucesso obtido e motivada pela implantação da República, publicou logo em
seguida o poemeto A Bandeira Portuguesa, através do qual se colocava ao
lado do poeta Guerra Junqueiro, defendendo de forma empolgada e entusiástica a
conservação das cores azul e branca no pendão nacional. Isto deu uma certa
polémica com Teófilo Braga, que sustentava o verde e vermelho para a nova
bandeira republicana, o que aliás veio a prevalecer. Acresce esclarecer que
Luthgarda de Caires nunca foi republicana, mas também nunca se imiscuiu em
quaisquer campanhas a favor do regresso à monarquia. Tornou-se politicamente
independente, nunca aplaudindo a política partidária que arruinaria o regime
republicano. Manteve-se pela vida fora à parte da política, e nem mesmo a
acalmia do Estado Novo a demoveu a mudar de opinião e muito menos a simpatizar
com a ditadura.
Em 1911 publicou o seu primeiro volume de prosa, uma
colectânea de contos intitulada Dança do Destino, igualmente muito bem
recebida pela crítica. Mas no ano seguinte voltou à poesia, dando à estampa um
novo livro, As Papoilas, mais romântico e pueril do que os anteriores.
Em 1916 dedicou à mãe e à sua filha Clotilde, tão prematuramente falecida, uma
bela obra de poesia a que deu o título de Sombras e Cinzas. Continuaria
depois a publicar novos livros de versos, que tal como os anteriores foram
sempre muito aplaudidos pela crítica, como foi o caso de Pombas Feridas,
Nossa Senhoras de Lourdes, e O Vagabundo. Por fim, em 1922,
publicou nova colectânea de perfumados versos, a que deu o sugestivo título de Violetas,
e no qual se insere o poema “Florinha das Ruas”, com que Luthgarda havia
recebido o 1.º prémio dos Jogos Florais de Ceuta. Esse poema, tornou-se aliás
bastante popular, a ponto de raras serem as senhoras, e até as crianças das
escolas, que não o soubessem declamar.Vem a propósito lembrar que a Condessa de Ribas e Madalena Brion, duas ilustres senhoras da primeira sociedade lisboeta, sugestionadas pela ética social do poema, e sobretudo pela popularidade que o mesmo atingira nos meios mais carenciadas, decidiram fundar uma instituição para a protecção de meninas pobres, à qual deram precisamente a designação de «Florinha das Ruas». Esse estabelecimento, criado à imagem das suas beneméritas instituidoras, esteve sediada num prédio no Campo de Santana, em Lisboa, que o tempo se encarregou de arruinar, e de assim fazer esquecer tão importante fundação.
Em prosa publicou ainda A Lenda de Guiomar, Árvores
Benditas, Águas Passadas... (novelas), e dois livros de contos para
crianças, intitulados Cavalinho Branco e o Palácio das Três Estrelas.
Acima de tudo, Luthgarda de Caires deixou uma obra
de incontestável valor literário, norteada pelos altos princípios morais que
modelaram a sua vida como cidadã e como mulher. Porém o seu nome será para
sempre lembrado pela sua grande dedicação a variadíssimas obras de caridade,
tendo-se principalmente à protecção das crianças e ao acompanhamento moral e
conforto social dos presos. Assim, não podemos esquecer que em 1914 foi ela
quem promoveu o auxílio às crianças doentes no Hospital da Estefânia, em cujo
seguimento criou em 1924 o Natal do Hospitais, com o apoio logístico e
financeiro do «Diário de Notícias». Tudo começou quando, por sua iniciativa, o
«Diário de Notícias» abriu uma subscrição para comprar brinquedos para as
crianças doentes nos hospitais. Foi uma bola de neve, que anualmente crescia de
sucesso, a tal ponto que os artistas de circo e do teatro infantil se
disponibilizaram para ir aos hospitais confortar as crianças. A partir daí
nunca mais parou de crescer esta brilhante iniciativa, que hoje é transmitida
pela televisão para o país, e por cabo para o mundo inteiro.
Também pugnou na imprensa pela abolição do uso de
capuz, e às vezes de máscara, a que obrigatoriamente estavam sujeitos os presos
da penitenciária de Lisboa. Essa prática foi efectivamente abolida quando o Dr.
Rodrigo Rodrigues dirigiu o referido estabelecimento penal, por concordar com
as objecções tecidas na imprensa pela poetisa Luthgarda de Caires. Também viu
satisfeitas as suas críticas tecidas às vexatórias grades que defendiam as
janelas do Aljube, então destinado ao internamento das mulheres condenadas por
crimes públicos. Parecia-lhe que seria suficiente reduzir para apenas uma, em
vez de três, as grades com que se pretendia impedir a fuga das prisioneiras, o
que só muito raramente havia acontecido.
Na imprensa nacional, Luthgarda de Caires colaborou
assiduamente no «Diário de Notícias», «O Século», «A Capital», «Correio da
Manhã», «Ecos da Avenida», nas revistas «Brasil e Portugal», «Enciclopédia do
Lar», etc., etc...
Monumento erigido a Luthgarda de Caires no Jardim de V.R.Stº António |
Moderna estátua de Luthgarda de Caires, erigida no cais de VRSA |
A relevância da sua obra literária e da sua acção
cívica em prol das crianças, justificaram que por parte do governo fosse
condecorada com as comendas de Santiago e da Ordem da Benemerência. Curiosamente,
foi o ditador Oliveira Salazar quem, em 1931, lhe atribuiu o Oficialato da
Benemerência. Também no Brasil havia sido há muito homenageada com a medalha de
prata, pela excelsa magnitude da sua obra literária, aquando das comemorações
do Centenário da Independência, realizadas em 1922.
Em 20-5-1936, um ano após a sua morte, a autarquia
vilarealense aprovou por unanimidade uma proposta apresentada pelo presidente
Matias Sanches, na qual atribuiu o nome da poetisa sua conterrânea ao antigo
Largo da Fonte, junto do qual se situava aliás a casa onde nascera. Mais tarde,
em Abril de 1966, voltou a autarquia a homenagem a sua memória, descerrando um
busto, da autoria do consagrado escultor Raul Xavier, na pequena praça que tem
o seu nome.
Existe actualmente uma estátua a corpo inteiro na
poetisa, num recanto do jardim que se estende ao longo da bela marginal do seu
“Rio Encantado”, em Vila Real de Santo António.
Para terminar, devemos acrescentar que foi casada
com o Dr. João de Caires e era mãe do distinto médico Dr. Álvaro Guimarães de
Caires, que foi um notável investigador e crítico de arte.
Acima de tudo Luthgarda de Caires foi uma mulher de
campanhas nacionais. E como já aqui dissemos ficará para sempre lembrada como a
criadora do Natal dos Hospitais, que actualmente já não se confina a Lisboa mas
a todo o país, continuando o «Diário de Notícias», tal como na sua origem, a
promover aquela que foi, e continua a ser, a mais louvável das suas
iniciativas.
Em resumo, a obra literária de Luthgarda de Caires
compõe-se dos seguintes títulos: Glycinias, 1910; A bandeira
portuguesa, 1910; Papoulas, 1912; A dança do destino, contos
e narrativas, 1913; A revolta, da autoria de Nelly Roussel, adaptação em
verso de Luthgarda de Caires, 1914; Sombras e cinzas, 1916, (2.ª ed.
195?) O Doutor Vampiro, romance, 1923 Violetas, 1925 O palácio
das três estrelas, novela infantil, 1931.
Sem comentários:
Enviar um comentário