sexta-feira, 19 de junho de 2020

CAIRES, Luthgarda de

Poetisa, escritora e publicista, Luthgarda Guimarães de Caires, de seu nome completo, nasceu em Vila Real de St.º António, a 15-11-1871, e faleceu em Lisboa, a 30-3-1935, com 63 anos de idade.
Fez a escolaridade básica na sua terra-natal, mas o falecimento da mãe não lhe permitiu prosseguir os estudos. Casou-se muito jovem, mais por necessidade do que por amor, e teve uma filha, Clotilde, cuja morte prematura a deixou destroçada para o resto da vida. Partiu para Faro, onde também não foi muito feliz, seguindo depois para Lisboa. Na capital conheceu o advogado João de Caires, um homem fino, delicado e com razoáveis posses financeiras. Casaram, tiveram um filho e pode dizer-se que foram felizes. Pelo menos proporcionou à jovem Luthgarda os meios necessários para dar azo ao seu talento, podendo a partir de então dedicar-se em exclusivo ao culto de Orfeu. A música e as Belas Letras, eram notoriamente a sua verdadeira paixão.
Tocava razoavelmente bem alguns instrumentos de cordas, como harpa, cítara e violino. Mas era no piano e no órgão que se entretinha a compor as melodias para as quais escrevia os seus poemas. Não sendo cantora lírica, pois que para isso não recebera instrução, possuía, porém, uma voz de cristalino timbre que fazia as delícias do marido e do filho, seus principais admiradores. Mas a sua negra sina depressa lhe ensombrou mais esse pormenor de felicidade. Sentindo fortes dores de garganta, supostamente resultantes de pólipos nas cordas vocais, foi, por conselho médico, submetida a uma desastrosa intervenção cirúrgica, que a impediria de voltar a cantar. Esse triste episódio da sua vida retratou-o com pungente realismo no seu romance O Doutor Vampiro, publicado em 1921, no qual a classe médica e a sua vontade de explorar os doentes constituíam o centro da trama romanesca. A imprensa e a crítica especializada teceram-lhe rasgados elogios, concordando com a maioria das críticas endossadas aos clínicos, que de forma pouco correcta encaravam a medicina como um negócio.
Passou então a dedicar-se exclusivamente às letras e às obras de caridade, que aliás constituíram o lenitivo da sua vida. Creio que a sua estreia literária se terá efectuado por volta de 1905 nas colunas de vários jornais lisboetas, não se sabendo ao certo qual o primeiro, mas sei, com toda a certeza, que foram «O Século», e quase em simultâneo o «Diário de Notícias», os alvos preferenciais da sua prestimosa colaboração. Como desde logo revelasse um estilo de prosa muito fino e elegante, só ao alcance dos grandes escritores, tornou-se objecto de comentário nos meios intelectuais da época. Os jornais brasileiros, que então mantinham acesa cooperação intelectual com o nosso país, foram igualmente contemplados com a generosa colaboração dessa tão precoce quanto misteriosa musa das letras.
Como mulher culta e ilustrada, mostrou-se interessada pelos grandes temas sociais do seu tempo, nomeadamente pela luta sufragista e emancipadora das mulheres, nitidamente imbuída do espírito que moviam outras figuras notáveis, como Ana de Castro Osório ou a sua comprovinciana Maria Veleda. Sabendo, através das suas correspondentes francesas, mulheres instruídas e modernas, do que se estava a passar na pátria de Rousseau e Voltaire, decidiu escrever para os jornais portugueses e estrangeiros entusiásticos artigos a defender os direitos e os interesses femininos, desde há séculos depreciados e até vilipendiados por uma sociedade masculinizada, a que os poderes públicos e a própria constituição davam legitimidade e protecção legal. Aliás, no decorre da sua vida, iniciou nas colunas da imprensa lisboeta verdadeiras batalha cívicas contra o analfabetismo que assolava preferencialmente o sexo feminino; contra a falta de direitos das mulheres, que se agravavam quando adquiriam o estatuto de esposas, passando quase a ser encaradas como objectos ou bens de propriedade dos maridos; contra o desvalimento das mulheres solteiras, das viúvas e abandonadas; contra a falta de protecção das mães solteiras, que por falta de meios de subsistência se viam muitas vezes compelidas a enjeitar os filhos ou a condená-los à mendicidade.
Luthgarda, gravura de Manuel Cabanas
Apesar do seu nome ser muito conhecido e respeitado na imprensa da capital, sendo aliás apontado como sinónimo de mulher culta e intelectualizada, o certo é que só em 1910 faria a sua verdadeira estreia em livro, publicando uma compilação de versos intitulada Glicínias, que teve estrondoso acolhimento nos meios literários da especialidade. Animada pelo sucesso obtido e motivada pela implantação da República, publicou logo em seguida o poemeto A Bandeira Portuguesa, através do qual se colocava ao lado do poeta Guerra Junqueiro, defendendo de forma empolgada e entusiástica a conservação das cores azul e branca no pendão nacional. Isto deu uma certa polémica com Teófilo Braga, que sustentava o verde e vermelho para a nova bandeira republicana, o que aliás veio a prevalecer. Acresce esclarecer que Luthgarda de Caires nunca foi republicana, mas também nunca se imiscuiu em quaisquer campanhas a favor do regresso à monarquia. Tornou-se politicamente independente, nunca aplaudindo a política partidária que arruinaria o regime republicano. Manteve-se pela vida fora à parte da política, e nem mesmo a acalmia do Estado Novo a demoveu a mudar de opinião e muito menos a simpatizar com a ditadura.
Em 1911 publicou o seu primeiro volume de prosa, uma colectânea de contos intitulada Dança do Destino, igualmente muito bem recebida pela crítica. Mas no ano seguinte voltou à poesia, dando à estampa um novo livro, As Papoilas, mais romântico e pueril do que os anteriores. Em 1916 dedicou à mãe e à sua filha Clotilde, tão prematuramente falecida, uma bela obra de poesia a que deu o título de Sombras e Cinzas. Continuaria depois a publicar novos livros de versos, que tal como os anteriores foram sempre muito aplaudidos pela crítica, como foi o caso de Pombas Feridas, Nossa Senhoras de Lourdes, e O Vagabundo. Por fim, em 1922, publicou nova colectânea de perfumados versos, a que deu o sugestivo título de Violetas, e no qual se insere o poema “Florinha das Ruas”, com que Luthgarda havia recebido o 1.º prémio dos Jogos Florais de Ceuta. Esse poema, tornou-se aliás bastante popular, a ponto de raras serem as senhoras, e até as crianças das escolas, que não o soubessem declamar.
Vem a propósito lembrar que a Condessa de Ribas e Madalena Brion, duas ilustres senhoras da primeira sociedade lisboeta, sugestionadas pela ética social do poema, e sobretudo pela popularidade que o mesmo atingira nos meios mais carenciadas, decidiram fundar uma instituição para a protecção de meninas pobres, à qual deram precisamente a designação de «Florinha das Ruas». Esse estabelecimento, criado à imagem das suas beneméritas instituidoras, esteve sediada num prédio no Campo de Santana, em Lisboa, que o tempo se encarregou de arruinar, e de assim fazer esquecer tão importante fundação.
Em prosa publicou ainda A Lenda de Guiomar, Árvores Benditas, Águas Passadas... (novelas), e dois livros de contos para crianças, intitulados Cavalinho Branco e o Palácio das Três Estrelas.
Acima de tudo, Luthgarda de Caires deixou uma obra de incontestável valor literário, norteada pelos altos princípios morais que modelaram a sua vida como cidadã e como mulher. Porém o seu nome será para sempre lembrado pela sua grande dedicação a variadíssimas obras de caridade, tendo-se principalmente à protecção das crianças e ao acompanhamento moral e conforto social dos presos. Assim, não podemos esquecer que em 1914 foi ela quem promoveu o auxílio às crianças doentes no Hospital da Estefânia, em cujo seguimento criou em 1924 o Natal do Hospitais, com o apoio logístico e financeiro do «Diário de Notícias». Tudo começou quando, por sua iniciativa, o «Diário de Notícias» abriu uma subscrição para comprar brinquedos para as crianças doentes nos hospitais. Foi uma bola de neve, que anualmente crescia de sucesso, a tal ponto que os artistas de circo e do teatro infantil se disponibilizaram para ir aos hospitais confortar as crianças. A partir daí nunca mais parou de crescer esta brilhante iniciativa, que hoje é transmitida pela televisão para o país, e por cabo para o mundo inteiro.
Também pugnou na imprensa pela abolição do uso de capuz, e às vezes de máscara, a que obrigatoriamente estavam sujeitos os presos da penitenciária de Lisboa. Essa prática foi efectivamente abolida quando o Dr. Rodrigo Rodrigues dirigiu o referido estabelecimento penal, por concordar com as objecções tecidas na imprensa pela poetisa Luthgarda de Caires. Também viu satisfeitas as suas críticas tecidas às vexatórias grades que defendiam as janelas do Aljube, então destinado ao internamento das mulheres condenadas por crimes públicos. Parecia-lhe que seria suficiente reduzir para apenas uma, em vez de três, as grades com que se pretendia impedir a fuga das prisioneiras, o que só muito raramente havia acontecido.
Na imprensa nacional, Luthgarda de Caires colaborou assiduamente no «Diário de Notícias», «O Século», «A Capital», «Correio da Manhã», «Ecos da Avenida», nas revistas «Brasil e Portugal», «Enciclopédia do Lar», etc., etc...
Monumento erigido a Luthgarda de
Caires no Jardim de V.R.Stº António
 
No âmbito da imprensa algarvia, Luthgarda de Caires colaborou sobretudo em poesia, em «Districto de Faro» (1911), «O Heraldo» (1912), «Correio Teatral» (1923), «Correio do Sul» (1924) e «O Algarve», todos de Faro; «A Província do Algarve» (1914) de Tavira e a revista «Nossa Terra» fundada em Maio de 1931 em Vila Real de St.º António. Mas a b em dizer foi o «Correio do Sul» que após a morte de Luthgarda se tornou no principal divulgador da sua nobre actividade social em prol das crianças, assim como da sua talentosa obra poética.
Moderna estátua de Luthgarda de
 Caires, erigida no cais de VRSA 
A relevância da sua obra literária e da sua acção cívica em prol das crianças, justificaram que por parte do governo fosse condecorada com as comendas de Santiago e da Ordem da Benemerência. Curiosamente, foi o ditador Oliveira Salazar quem, em 1931, lhe atribuiu o Oficialato da Benemerência. Também no Brasil havia sido há muito homenageada com a medalha de prata, pela excelsa magnitude da sua obra literária, aquando das comemorações do Centenário da Independência, realizadas em 1922.
Em 20-5-1936, um ano após a sua morte, a autarquia vilarealense aprovou por unanimidade uma proposta apresentada pelo presidente Matias Sanches, na qual atribuiu o nome da poetisa sua conterrânea ao antigo Largo da Fonte, junto do qual se situava aliás a casa onde nascera. Mais tarde, em Abril de 1966, voltou a autarquia a homenagem a sua memória, descerrando um busto, da autoria do consagrado escultor Raul Xavier, na pequena praça que tem o seu nome.
Existe actualmente uma estátua a corpo inteiro na poetisa, num recanto do jardim que se estende ao longo da bela marginal do seu “Rio Encantado”, em Vila Real de Santo António.
Para terminar, devemos acrescentar que foi casada com o Dr. João de Caires e era mãe do distinto médico Dr. Álvaro Guimarães de Caires, que foi um notável investigador e crítico de arte.
Acima de tudo Luthgarda de Caires foi uma mulher de campanhas nacionais. E como já aqui dissemos ficará para sempre lembrada como a criadora do Natal dos Hospitais, que actualmente já não se confina a Lisboa mas a todo o país, continuando o «Diário de Notícias», tal como na sua origem, a promover aquela que foi, e continua a ser, a mais louvável das suas iniciativas.
Em resumo, a obra literária de Luthgarda de Caires compõe-se dos seguintes títulos: Glycinias, 1910; A bandeira portuguesa, 1910; Papoulas, 1912; A dança do destino, contos e narrativas, 1913; A revolta, da autoria de Nelly Roussel, adaptação em verso de Luthgarda de Caires, 1914; Sombras e cinzas, 1916, (2.ª ed. 195?) O Doutor Vampiro, romance, 1923 Violetas, 1925 O palácio das três estrelas, novela infantil, 1931.

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