segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

A Casa das Areias, de Luísa Monteiro


José Carlos Vilhena Mesquita
O romance, A Casa das Areias, da autoria de Luísa Monteiro, destina-se a um público adulto e culto, não é um livro banal nem ao alcance de todos. Para o lermos necessitamos de uma certa cultura e uma certa maturidade literária. Não é um livro difícil, quer na escrita quer na trama romanesca. Em todo o caso é um livro que exige do leitor uma certa capacidade intelectual para perceber a saga de duas famílias que se desenrola durante quase um século. Possui uma estrutura de longa duração, sem se tornar enfadonho, maçador, parado ou ronceiro. Bem pelo contrário. Desenvolve-se com alguma celeridade, dando não raras vezes às personagens retratadas uma vida efémera, sem pujança nem peso narrativo, mas com um vínculo por vezes mítico do amor inatingível, dilacerante e frustrante.
A grande lição a retirar sumariamente deste livro é que o amor não se cura no casamento. A liberdade de sentir e de amar sem peias nem regras constitui a essência do amor. Só é livre quem ama. Mas só verdadeiramente ama quem despojado de interesses materiais faz do amor o valor supremo da vida.
O cenário espácio-temporal desta obra é o século XX na região minhota, que aliás, retrata de forma magistral em todos os aspectos, quer no ambiente natural, quer na envolvência social embasada na má distribuição da riqueza. Mas incide mais concretamente no concelho de Vila Nova de Famalicão. Os campos, as culturas, os costumes, as tradições, a gastronomia, a religiosidade nos seus tabus e fetiches, em suma, os defeitos e virtudes da gente simples e humilde, que conceptualiza na verticalidade dos princípios éticos da honra, a bandeira duma alma popular erguida e defendida ao longo de séculos.
Existem na contextualidade narrativa dois vectores primaciais que conduzem como linhas de força todo o romance: um vector feminino dominado pela figura de Ana, cujas origens judaicas fazem dela uma mulher enigmática, cobiçada na sua irradiante beleza, invejável na sua fortuna, inimitável na sua sedutora sensualidade. Uma matrona de numerosa prole, escoriada em avultados cabedais que a tornam aos olhos do vulgo numa mulher poderosa, admirada e temida.
O lado narrativo masculino é dominado por Camilo Augusto, um brasileiro de torna-viagem, boçal e agressivo, dourado pela riqueza granjeada entre selvagens. Uma figura carregada de traços camilianos, que definhará mais tarde de paixão pela judia que repudia os seus encantos materiais por não lhe suportar a negritude da alma.
Visível é também neste livro o choque de culturas numa certa conflitualidade de gerações. O emancipalismo feminista de Ana espelhado na sua luta pela liberdade de pensamento e de acção, na sua independência, na integridade do seu território e no desprezo pelo macho, ainda que deixando-se possuir por ele, é sinónimo duma força de carácter que inspirará todos os seus descendentes.
Daí que a narrativa se reparta entre a riqueza e a pobreza, a independência moral e a subserviência dos que rodeiam as figuras sobre as quais assenta toda a estrutura romanesca. Neste ambiente social desenvolve-se um tempo diacrónico cujas balizas, ainda que difíceis de definir parecem estabelecer-se entre o fim do século XIX e os conturbados anos revolucionários do pós-25 de Abril. Como marcos surgem as duas guerras mundiais, que escalavraram a fortuna de ambas as famílias e moldaram novas mentalidades. A sucessão do tempo é também a substituição das personagens pelos seus descendentes que assumem progressivamente o papel de protagonistas na diegese narrativa. É disso exemplo o caso de Teresa, a filha de Ana, que vai sendo substituída pela radiosa figura de Esmeralda. O mesmo acontece ao vector masculino que tem em Augusto, filho de Camilo Augusto, que será substituído por Agostinho. Ou seja a narrativa passa de avós para netos numa incontrolável sucessão de tempo e de novas mentalidades. Em todo o caso, nota-se que é o vector feminino o vencedor, pela constância da sua força, do seu orgulho, da sua perseverança e do seu denodo. O vector masculino é retractado de uma forma mais torpe, mais desleal, mais sabuja.
A descrição da envolvência diegética é um dos pontos fortes deste livro. As cores, os cheiros, as formas, os sons e as texturas ressaltam do livro duma forma muito viva, muito real, que lhe dão a aparência da verdade através do constante recurso a imagens poéticas, extrapolações metafóricas e comparações analépticas.
Uma das facetas mais interessantes do livro é aquela que se prende com a arqueologia dos sentidos, atraindo a atenção do leitor para os cheiros, sabores, sons, texturas e visões de um Minho deslumbrante e sedutor. No contexto da estimulação sensitiva a autora recorre ao prazer gastronómico, fazendo constantes referências aos pratos e iguarias minhotas. A estratégia prandial foi aliás muito usada por Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz, Aquilino Ribeiro e tantos outros autores da nossa melhor safra literária.
Não menos curiosa é também a descrição dos moribundos, que tem algo de plangente e teatral, no fundo é a atracção lírica pela morte, como redentora da vida. A despedida da vida, quando não ocorre de forma repentina e acidental, tem algo de romântico, o que na literatura clássica se explorou quase até à exaustão. Com a Luísa Monteiro não é tanto assim, embora elabore quadros de morte profundamente sentidos. Não obstante poupa tempo e espaço com as personagens secundárias que surgem de forma quase espontânea, mas também morrem num ápice, deixando breve rasto na narrativa. Para dar uma certa autenticidade ao romance insere-lhe figuras reais como, por exemplo, Adolfo Casais Monteiro, nomes de empresas, de indústrias de ruas, freguesias e locais que verdadeiramente ainda hoje existem, deixando o leitor intrigado, confuso e surpreendido, pela ousadia de se misturar a realidade com a ficção. Mas isso é mais uma estratégia ou recurso literário para construir a saga destas duas famílias que atravessam todo o século XX, perdendo paulatinamente o seu protagonismo económico, para se esvaecerem na voragem do tempo e nas mudanças socias operadas.
Merece também que destaquemos o recurso ao rifoneiro popular, citando com a parcimónia necessária alguns provérbios adequados à construção narrativa. O mesmo acontece com a frugal utilização de vocábulos minhotos carregados de conotações brejeiras, eróticas, sarcásticas ou ridicularizantes. Tudo usado na proporção do quanto baste, sem exageros enfastiantes que, não raramente, banalizam e diminuem a qualidade da obra.
Por fim, e após sucessivas alterações geracionais dá-se a reunião dos dois vectores iniciais: o feminino da judia Ana e o masculino do brasileiro de torna-viagem Camilo Augusto. As duas narrativas que evoluem de forma distinta até ao último terço do romance acabam por confluir no casamento dos netos de ambos, Agostinho da parentela masculina e Esmeralda da feminina. O fruto de ambos, Eduarda, personifica a libertação e a vitória das mulheres num mundo dominado pelos homens. «Por isso, aos dezasseis anos despediu-se da família, ajustou o violino às costas e deu gás à lambreta azul que lhe ofereceram no aniversário. Para trás, uma geração densa de Evas, que ao longo de décadas assumiram o sacrifício de uma vida fora do Paraíso, ao lado de homens e rodeadas de filhos. Mas a genética tem caprichos muito curiosos e, de vez em quando, produz seres cujos comportamentos denotam uma intoxicação qualquer das marcas da eugenia, resultando daí personalidade pouco comum à árvore da genealogia».

[texto de apresentação da obra «A Casa das Areias», de Luísa Monteiro, proferido a 8-7-2000 no auditório da Câmara Municipal de Albufeira]

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