quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Atestado de fidelidade miguelista


Nos primeiros meses da usurpação miguelista, durante o ano de 1828, houve uma espécie de febre nacional, muito incentivada pela propaganda, de adesão ao regime absolutista. Na «Gazeta de Lisboa», órgão oficial do governo, publicavam-se diariamente dezenas de listas provenientes de toda a parte do país, com nomes de homens e mulheres que pediam a sua Majestade lhes concedesse autorização para ostentarem – os homens nas lapelas da casaca e as mulheres no colo dos seus vestidos de seda – a «Real Efígie de D. Miguel», uma medalha que se vendia em grande sortido (ouro, prata, cobre, e latão policromado) nas ourivesarias e outros estabelecimentos reconhecidos pela Casa Real. 
Real Efígie de D. Miguel, grau ouro
Nunca houve um período como este, de autêntica histeria nacional pela figura política do infante D. Miguel, que em si representava o realismo tradicional, na sua acepção mais conservadora e autocrática. Essa imagem, esse estereótipo do rei amado e desejado pelo povo, foi muito bem explorada pelos áulicos do absolutismo, para espalharem interna e externamente a ideia de um povo amante do Trono e do Altar, uma expressão reveladora da coesão entre o regime e a igreja católica. Outra das mensagens mais divulgadas era a dos «inauferíveis direitos de D. Miguel» ao trono do seu augusto pai, D. João VI, visto que o seu primogénito, D. Pedro, se havia auto-proclamado imperador do Brasil, retirando ao império português a sua mais valiosa jóia colonial. Com esse gesto de rebeldia perdera o direito à herança do trono luso. 
O receio de uma coroa dualista ultrapassado com a abdicação do sucessor legítimo, D. Pedro, na pessoa de sua filha, D. Maria II, criou um conflito de interesses que degenerou num imbróglio político conhecido como a «Questão Portuguesa». Não é essa, porém, a questão que agora nos traz a esta tribuna, pois que a sua abordagem nos levaria mais longe do que o desejado. 
Por agora, o nosso propósito consiste na elaboração de um breve apontamento sobre o refinamento do regime absolutista, que perante a avassaladora onda de adesão de apaniguados, começou a temer o sucesso da sua própria propaganda. Tornou-se então necessário alardear a ideia de que só eram genuinamente portugueses os que provassem ser miguelistas, isto é, realistas católicos e antimaçónicos. 
Real Efígie de D. Miguel, grau ouro, verso
Assim, para obstar ao perigo da penetração interna de pessoas indesejadas pelas suas ideias políticas, passou a exigir-se aos servidores da causa pública uma espécie de atestado do seu próprio fanatismo. Para isso, o governo pediu às autoridades municipais que – em vez das intermináveis listas de homens e mulheres, de famílias e instituições, a pedirem a bênção real para exibirem a “Real Efígie” – aferissem e garantissem, através de documento público, a fidelidade dos seus moradores à causa dos “inauferíveis direitos” de D. Miguel ao trono pátrio. 
Foi então elaborado pela Coroa um documento oficial, para ser distribuído impresso pelas câmaras municipais, com espaço em branco para ser devidamente firmado, não só pelas autoridades como sobretudo pelos aderentes. Significa que esta espécie de atestado de fidelidade comprometia as autoridades locais a serem mais selectivas e cuidadosas na escolha das pessoas que poderiam assinar esses certificados de lealdade. Talvez por isso é que estes atestados de fidelidade miguelista e de puridade antimaçónica não tiveram tanto sucesso quanto seria espectável, porque raros foram os que se deram a público nas páginas da ‘«Gazeta de Lisboa» com a identidade dos seus subscritores. A maior parte dos exemplos reportam-se aos elencos camarários, a alguns funcionários e procuradores das instituições representadas na autarquia. 
Para os mais curiosos, sobretudo para os interessados na matéria, aqui deixamos transcrita apenas a parte inicial do referido documento de atestação de fidelidade ao trono e ao altar: 
«Nós os abaixo assignados Nobreza, Clero e Povo, attestamos que… [espaço em branco para os subscritores] … suas demonstraçoens d’Amor a Augusta e Real Caza de Bragança e por consequencia ao Serenissimo Senhor Dom Miguel ….[espaço em branco] … sempre conhecido oposto aos Inimigos do Altar e do Trono, e a sua detestação e horror a essas tenebrosas e occultas Associacoens aonde em Silencio se aluem os alicerces do mesmo Altar e Trono». 
Este tipo de palavreado introduzia o pedido de fidelidade ao regime absolutista, num atestado subscrito por vários cidadãos para comprovar ou afiançar a dedicação e submissão ao regime absolutista. 

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