terça-feira, 21 de maio de 2019

O Perfume da Esteva – elegia poética da serra algarvia


Quem pesquisar no velho «Dicionário de Morais» a palavra Poesia, verificará que o seu significado, e sentido lexical, se traduz na «descripção ou pintura da Natureza, em estilo harmónico e métrico, diverso do prosaico». Quer isto dizer que poeta é aquele que sabe descrever a natureza com as tintas da harmonia, captando a beleza natural das coisas que compõem a vida, através da forma sensível como distribui as palavras. O poema constrói-se através da euritmia entre as imagens e as metáforas, na cadência musical da métrica rimática. Convenhamos então que a poesia é muito distinta da prosa, diria mesmo que é muito mais difícil e exigente, por ser toda ela imaginação, fantasia e sensibilidade, na dosagem certa para alcançar na autenticidade de um verso o êxtase da vida. Como disse Florbela Espanca, ser poeta «é ter de mil desejos o esplendor, e não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, é ter garras e asas de condor!»
 Pois bem, a questão primacial que aqui se coloca é exactamente a de saber se estamos perante um poeta, cujo livro, que agora se apresenta a público, deve ou não considerar-se com valor e merecimento, para figurar no galarim da literatura algarvia. Essa é uma questão a que só o tempo e a opinião pública poderão dar satisfatória resposta. Pela minha parte, e mercê da minha experiência, posso afiançar que O Perfume da Esteva é um livro de poesia, que vale a pena ler. Ora, sendo o Algarve uma nação de poetas, poder-se-á pensar que este é mais um livro de versos. Não, nada disso. Este é um livro para ficar, por se tratar de uma poesia inspirada na vida real, não das pessoas, mas dos animais, que tal como nós têm inteligência e sagacidade, têm personalidade, hábitos e sentimentos, a que chamamos instintos, por alegado cientismo.
Este livro, até pela eloquência do seu autor, está longe da poesia popular. Mas como também não obedece aos cânones formais da poesia clássica, não pode considerar-se como poesia lírica nem parnasiana. Está também muito longe daquelas versalhadas intimistas e obscuras, opacas e surreais, que deixam o leitor sem perceber nada do que o autor quer dizer.
No fundo, talvez se possa designar O Perfume da Esteva como um livro de poesia naturalista. Em todos os sentidos da estética lírica, parece inspirada num ecologismo realista, num sentimento de preservação ambiental, cuja mensagem incide no conhecimento e divulgação da diversidade cinegética do Algarve. O objectivo subjacente à mensagem poética é, tão simplesmente, o da protecção da natureza e da preservação da vida selvagem na serra algarvia.
O escritor António Venda fazendo o meu escorço biográfico

Advogado, professor, caçador… e poeta

O autor, Paulo Rosa, é um homem de leis, com banca de advocacia e militância no foro da «Trindade Maravilhosa» do nosso turismo, que se triangula entre Monchique (o pulmão do Algarve), a Praia da Rocha (embrião do turismo algarvio) e Lagos (base naval dos Descobrimentos Portugueses).
Mas, Paulo Rosa, também é professor por paixão, e jornalista por dedicação, vontade e talento. Por isso, tem responsabilidades na direcção do «Jornal de Monchique», um dos poucos órgãos de imprensa que ainda resistem no Algarve, e preside desde há um quarto de século à «Rádio Fóia». Quem o conhece, sabe que é um homem que a tudo mete ombros e que com todos colabora, de forma voluntária e fraterna. Por isso, cargos não lhe faltam. Todos graciosos, como é próprio dos homens que servem, sem o interesse de se servirem. Talvez por causa desse espírito de dar sem cuidar de receber, é que Camilo Castelo Branco disse a certa altura: «os poetas são capazes de povoar um céu devoluto, mas não têm iguais faculdades criadoras para algibeiras vazias».
Associativista e ambientalista, são os atributos que melhor caracterizam o espírito e o carácter de Paulo Rosa. E na vila de Monchique todos os têm por amigo sincero, afável e disponível, quer seja para esclarecer dúvidas burocráticas, preencher papéis, sugerir soluções, ou simplesmente para o convívio de uma boa e amena cavaqueira.
O livro, em si, é surpreendente, não só pela temática cinegética, como ainda pela eloquência com que analisa o ambiente e descreve a fauna - felizmente ainda subsistente na serra algarvia. A nomeação desses animais (que eu nem sabia que ainda existiam), as suas características e personalidade, os seus comportamentos e hábitos alimentares, os seus instintos de sobrevivência, são pormenores de suprema importância, descritos neste livro com o brilho e o realismo, que nem sempre as metáforas líricas permitem retratar.
São belíssimos poemas, onde a natureza ganha o brilho resplandecente da vida. Escreveu-os o Paulo Rosa, ao ritmo da inspiração, sem a preocupação de os repartir ou ordenar numa estrutura taxionómica da espécie, género, família, ordem e classe. O fulcro poético incide na natureza, sobretudo na forma como os animais silvestres subsistem no ambiente fragoso e agreste da serra algarvia. No equilíbrio sempre periclitante da conservação ambiental, não raras vezes devastado pelos infernais incêndios da serra algarvia, cabe-nos a todos a responsabilidade de contribuir com o nosso esforço, dedicação e inteligência, para a sua preservação e desenvolvimento. Este livro, O Perfume da Esteva é um exemplo de esforço, dedicação e eloquência, de quem conhece a fauna e a flora que inunda de vida, de cor e de inebriantes odores, esta inigualável serra de Monchique. A poesia, neste caso, é um pretexto, uma estratégia, ou melhor, um subterfúgio para dizer em poucas palavras e de uma forma acessível a todos, essa enormíssima mensagem de que os animais também têm uma vida, também têm direitos, também merecem respeito, porque, afinal, animais somos todos.
O filho do autor lendo um poema do livro

Animais de caça, numa ligação poética de vida

Aqui e ali, por entre os degraus do poema, corre e salta a lebre, numa fuga desenfreada. Mais além, é a perdiz que voa sobre as estrofes, deixando atónito o caçador, sem tempo para premir o gatilho. Lá no alto vê-se o pato-real, que no seu roteiro migratório vem pousar nas águas calmas das charcas agrícolas, para aqui fazer o ninho e criar a prole. Num voo estonteante, ziguezagueia e arrulha a rola brava, no anil dos céus. À espera da sua entrada estão os caçadores, mas só os mais exímios e experimentados conseguem um tiro certeiro. Os outros, os inábeis só gastam chumbo – mas não o tio Torrinha, que de tão cioso e avaro não desperdiçava um tiro, e assim “trazia o chumbo todo para casa”.
No domínio dos ares desfila o tordo e a galinhola, ecoa o silvo da águia-de-bonelli, despenha-se como um míssil sobre a presa o falcão-peregrino, a que não escapa o pombo torcaz, para desprezo do magro pisco. O guincho-da-tainha é uma ave falconiforme de perscrutante visão, para a qual tudo o que rasteja é alimento. Não há serpente que lhe escape. A cantar loas à vida, ouve-se ao longe, mas não se vê, o cuco canoro, que de visita aos ninhos alheios, vai dando a prole para adopção. No seu libré de cores garridas, esvoaça o gaio traiçoeiro de olhar perscrutante e assassino, à cata de infante em ninho alheio. Desde o lusco-fusco até ao dealbar da madrugada, impera “em domínios a olho e garra conquistados” o tenebroso e perscrutante bufo-real.
Fazendo a apresentação e apreciação crítica da obra
Nos domínios rasteiros, por entre os matos da serra, serpenteia a víbora-cornuda de picada fatal para o rato do campo. Este peçonhento ofídio, também designado por víbora das pedras, cuja cabeça triangular serve de talismã aos crentes no mau olhado, também se converte em cobiçado pitéu – quem diria – para o meigo ouriço cacheiro, para o intrépido saca-rabos (escalavardo na gíria popular), e até para o voraz javali. Mas, entre os pedernais da serra, também por ali vagueia a esquiva raposa, que persegue e mata o coelho, devora quando pode o lebrão, afinfa o dente no rato e lambe os beiços só de ver a capoeira do lavrador. Com o lince ibérico tudo o que mexe é refeição, só não se sabe quando nos dá a honra da sua visita, porque na serra algarvia o lince já foi mito e agora é uma fugaz realidade. Com o javali (navalheiro) é preciso ter muito cuidado, por ser o mais vadio da serra. Não é esquisito na dieta, que prefere satisfazer à noite, camuflado no mato, percorrendo quilómetros no encalce das suas presas. É o mais voraz da fauna algarvia, não lhe escapando a víbora e o licranço, a centopeia e a minhoca, o ninho da perdiz incauta, e, à falta de melhor, não desdenha ter por refeição a carocha e a formiga. Rabisca no chão a amêndoa, a castanha, o pinhão, e até mesmo a cevada, o centeio e o milho, mas quando vislumbra no horizonte a macieira corre lampeiro para abocanhar os frutos caídos, quando não investe pelo tronco acima como os felinos da selva.

O caçador e o cão, um laço de amizade eterna

Todavia, que seria do caçador sem o auxílio do cão, que fareja a presa, que a persegue e faz levantar para o tiro certeiro do seu amo. Sim, além de ser o melhor amigo do homem, o cão é o complemento indispensável do caçador. E, nesse aspecto, o Paulo Rosa não se esqueceu de evocar neste livro o perdigueiro português, por muitos considerado o melhor cão de caça para a perdiz, capaz de superar todos os obstáculos, em terra, nos rios, charcos e pântanos, para abocanhar a presa abatida e trazê-la, como troféu, às mãos do caçador. E se nos densos matagais é capaz de rastejar, silencioso e prudente, para fazer levantar a esquiva perdiz, o mesmo acontece quando tem de se lançar à água para inquietar o pato-bravo até ao voo fatal. O cão para o caçador depressa se torna no seu braço-direito, até que de tão imprescindível convívio ascende ao conceito de pessoa humana, e mais do que isso, ao amor de um irmão. Quando a morte, os separa a ambos, desencadeia-se o drama da perda, a saudade que não se apaga. É assim para o caçador, mas também é igual para o cão, que não consegue esquecer o seu amo até ao fim da vida. A cadela Pitucha, consagrada neste livro com um belo poema, é o exemplo maior dessa afeição, quase sanguínea, entre o homem e o animal, deixando com a sua morte um vazio de saudade na perda duma amizade insubstituível: “Foste mas ficaste em mim porém, que o laço do afecto, não desata a morte”.
O Dr. Paulo Rosa, autor do livro, na sua breve alocução pública, 
explicando as razões que motivaram a publicação desta obra

O latim, na erudição e na ciência

Nestes belos e sensíveis poemas, Paulo Rosa recorre por vezes à mitologia e aos autores clássicos, para estabelecer pontes e urdir comparações, entre civilizações e culturas aparentemente distantes. O latim, a língua de Séneca, é também a expressão clássica dos jurisconsultos. Mas, neste caso, usa-a com parcimónia e apenas para seguir a nomenclatura binomial de Carlos Lineu. É de uso imprescindível para identificar os animais, que descreve nos seus poemas. Como exemplo, atente-se na “Cyanopica cyanus”, designação latina do popular “charneco”, isto é, da pega azul que julgo ter sido importada da Ásia. Para ser mais preciso, a nossa pega azul tem a designação de “Cyanopica cooki”, por ser uma sub-espécie daquela.
Mas, dizia eu, que o uso do latim demonstra também que o Paulo Rocha é um homem culto, que não faz das leis e dos códigos o seu exclusivo lenitivo de vida, sentindo que o foro é um convencional ajuste de normas, regras e preceitos, no ordenamento estrutural dessa inquietante dimensão que é a existência humana. Mas o espírito precisa da dúvida para construir a verdade.

O melhor reserva-se para o fim

Para mim os três últimos poemas, só por si, justificam a edição deste livro. Diria até, como o Jorge Luís Borges, que valem pelo livro todo, porque são a prova da existência de talento poético em Paulo Rosa. Têm tudo o que a poesia necessita de ter para ser considerada como arte, e constituir em si aquilo a que se convencionou designar por “Belas Letras”. Permitam-me que destaque, de entre os três, o poema «A caçada dos escritores», no qual o autor imaginou, como num quadro teatral, uma reunião entre homens de letras, que em comum têm a paixão pela caça. O poema tem a imaginação dos grandes poetas. A cena desenrola-se no céu, “num serão do eterno descanso a recordar aventuras, jornadas, festarolas”. Em palco estão Aquilino Ribeiro, Ramalho Ortigão, Bulhão Pato, Miguel Torga, e outros, “exímios no manejo da escopeta, do tacho e da pena”.
O poeta retrata toda a cena, com o brilho da ilustração e da vaidade, inerente às grandes celebridades: “Em tertúlia de lembranças e de relatos, salpimentadas de excesso quanto baste e com dose de vaidade posta a gosto”. A descrição tem a graça da ironia queirosiana, apimentada pelo chiste sardónico. Tem vivacidade narrativa através do requinte do pormenor, quer seja no aprumo da indumentária, quer seja no primor das armas. Tem movimento na forma como dialogam e como impõem a sua presença aos demais. Tem ritmo na sequência das interlocuções, nos dichotes e interpelações. Por exemplo, o Bulhão Pato que conhecemos como notável gastrónomo, demanda o Torga, exímio caçador de perdizes, para asseverar que: “as perdizes glorifico eu «à castelhana» e à minha moda tratarei de a sublimar, e um «arroz opulento» endeusarei se vindimos paspalhões se levantarem”. O auge da hilaridade e do picaresco chega na voz do Ramalho, que como bom portuense aproveitou logo para farpear os lisboetas, acusando-os de devorarem os perdigotos, ainda mal saídos do ninho, impedindo que as perdizes cresçam e a natureza progrida: “E vejam lá que em Lisboa até os servem que nem piscos, de alhada, nas tabernas”. E depois daquela truculenta cavaqueira, é mestre Aquilino Ribeiro quem organiza a linha e o rumo da caçada num marcial grito: «atenção avante em frente, e o resto é quimera, sonho e poesia».
O outro poema, intitulado «Um olhar de Ortega y Gasset», é uma composição lírica, séria, compacta e segura, uma espécie de homenagem à integridade moral e à honradez, daquele que foi o maior filósofo espanhol do século XX. Nesta composição o Paulo Rosa faz uma alusão ao perspectivismo e à teoria da razão vital, que enformou o pensamento filosófico de Gasset, cujo objectivo final era o de encontrar o “ser fundamental”. Ora, a resposta oferece-a o poeta nas palavras simples dos seus versos: «Muito estimável é a preocupação pelo que dever / mas só após esgotar o respeito pelo que é / pois um homem pode envilecer até com a sublimidade».
Por fim, o poema «A caça à mesa» é a recriação poética de uma caçada real, principal distração lúdica da nobreza cortesã. O poema constitui uma ode à rica gastronomia com que se deleitavam o rei e a sua vasta corte, após extenuante caçada em correrias de cães e cavalos, por entre serranias, campinas e moitedos. Tudo ali é fantasia e criação, num frémito de exaltação lírica, em que o coração ofegante do poeta, sente, recria e revive, o prazer da mesa e do convívio no lauto repasto das viandas cinegéticas. O poema que encerra o livro ilustra a forma como terminam todas as caçadas, isto é, num alegre convívio gastronómico, em que se consolidam amizades para o resto da vida.

O poeta Américo Telo proferindo a intervenção de encerramento da sessão
Concluindo com a outro grande poeta e caçador

Acima de tudo, estamos perante um livro que é uma elegia à natureza, e à biodiversidade ambiental do nosso Algarve. Nunca tinha lido nada igual ou até semelhante na poesia portuguesa. De tantos poetas famosos, que viveram de forma apaixonada o prazer da caça, raros foram, porém, os que escreveram com tanto entusiasmo, como o fez neste livro o Paulo Rosa. O caso mais recente, e o mais conhecido, é o livro de poemas de Manuel Alegre, um exímio caçador, dedicado ao seu cão de caça, um “Spaniel Bretão”, que de tanto conviver com a família, e por ter sido criado dentro de portas, se transformou num humano de quatro patas, que “ladrava quando queria falar”. Teve uma vida longa e feliz, com dezenas de prodigiosas caçadas, em que demonstrou o seu decisivo contributo para o sucesso final. Quando morreu toda a família ficou com a alma a sangrar de desgosto. É que tinham perdido um membro da família, que por acaso era cão. Daí que o poeta Manuel Alegre tenha escrito em 2002, um livro fabuloso, intitulado «Cão como nós» que é uma das mais primorosas obras poéticas do nosso tempo, inspirada num profundo e genuíno sentimento de amizade. O facto de ter este livro como único protagonista um cão, e ter como único homenageado um cão, faz desta obra um exemplo singular, que julgo ninguém mais irá imitar.
Para terminar, em nome da cultura, da preservação do ambiente, da natureza e da biodiversidade, faço aqui uma viva recomendação para a leitura deste livro de Paulo Rosa, O Perfume da Esteva, publicado pela editora «On y va», na primavera de 2019.
© José Carlos Vilhena Mesquita

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