Quem pesquisar no velho «Dicionário de Morais»
a palavra Poesia, verificará que o seu significado, e sentido lexical, se
traduz na «descripção ou pintura da
Natureza, em estilo harmónico e métrico, diverso do prosaico». Quer isto
dizer que poeta é aquele que sabe descrever a natureza com as tintas da
harmonia, captando a beleza natural das coisas que compõem a vida, através da
forma sensível como distribui as palavras. O poema constrói-se através da euritmia
entre as imagens e as metáforas, na cadência musical da métrica rimática. Convenhamos
então que a poesia é muito distinta da prosa, diria mesmo que é muito mais
difícil e exigente, por ser toda ela imaginação, fantasia e sensibilidade, na
dosagem certa para alcançar na autenticidade de um verso o êxtase da vida. Como
disse Florbela Espanca, ser poeta «é ter
de mil desejos o esplendor, e não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro
um astro que flameja, é ter garras e asas de condor!»
Este livro, até pela eloquência do seu autor,
está longe da poesia popular. Mas como também não obedece aos cânones formais
da poesia clássica, não pode considerar-se como poesia lírica nem parnasiana.
Está também muito longe daquelas versalhadas intimistas e obscuras, opacas e
surreais, que deixam o leitor sem perceber nada do que o autor quer dizer.
No fundo, talvez se possa designar O Perfume
da Esteva como um livro de poesia naturalista. Em todos os sentidos da
estética lírica, parece inspirada num ecologismo realista, num sentimento de
preservação ambiental, cuja mensagem incide no conhecimento e divulgação da
diversidade cinegética do Algarve. O objectivo subjacente à mensagem poética é,
tão simplesmente, o da protecção da natureza e da preservação da vida selvagem
na serra algarvia.
O escritor António Venda fazendo o meu escorço biográfico |
Advogado,
professor, caçador… e poeta
O autor, Paulo Rosa, é um homem de leis, com banca
de advocacia e militância no foro da «Trindade Maravilhosa» do nosso turismo,
que se triangula entre Monchique (o pulmão do Algarve), a Praia da Rocha
(embrião do turismo algarvio) e Lagos (base naval dos Descobrimentos
Portugueses).
Mas, Paulo Rosa, também é professor por paixão,
e jornalista por dedicação, vontade e talento. Por isso, tem responsabilidades
na direcção do «Jornal de Monchique», um dos poucos órgãos de imprensa que
ainda resistem no Algarve, e preside desde há um quarto de século à «Rádio
Fóia». Quem o conhece, sabe que é um homem que a tudo mete ombros e que com
todos colabora, de forma voluntária e fraterna. Por isso, cargos não lhe
faltam. Todos graciosos, como é próprio dos homens que servem, sem o interesse
de se servirem. Talvez por causa desse espírito de dar sem cuidar de receber, é
que Camilo Castelo Branco disse a certa altura: «os poetas são capazes de povoar um céu devoluto, mas não têm iguais
faculdades criadoras para algibeiras vazias».
Associativista e ambientalista, são os
atributos que melhor caracterizam o espírito e o carácter de Paulo Rosa. E na
vila de Monchique todos os têm por amigo sincero, afável e disponível, quer
seja para esclarecer dúvidas burocráticas, preencher papéis, sugerir soluções,
ou simplesmente para o convívio de uma boa e amena cavaqueira.
O livro, em si, é surpreendente, não só pela
temática cinegética, como ainda pela eloquência com que analisa o ambiente e
descreve a fauna - felizmente ainda subsistente na serra algarvia. A nomeação
desses animais (que eu nem sabia que ainda existiam), as suas características e
personalidade, os seus comportamentos e hábitos alimentares, os seus instintos
de sobrevivência, são pormenores de suprema importância, descritos neste livro
com o brilho e o realismo, que nem sempre as metáforas líricas permitem retratar.
São belíssimos poemas, onde a natureza ganha o
brilho resplandecente da vida. Escreveu-os o Paulo Rosa, ao ritmo da
inspiração, sem a preocupação de os repartir ou ordenar numa estrutura
taxionómica da espécie, género, família, ordem e classe. O fulcro poético
incide na natureza, sobretudo na forma como os animais silvestres subsistem no
ambiente fragoso e agreste da serra algarvia. No equilíbrio sempre periclitante
da conservação ambiental, não raras vezes devastado pelos infernais incêndios
da serra algarvia, cabe-nos a todos a responsabilidade de contribuir com o
nosso esforço, dedicação e inteligência, para a sua preservação e
desenvolvimento. Este livro, O Perfume da Esteva é um exemplo de
esforço, dedicação e eloquência, de quem conhece a fauna e a flora que inunda
de vida, de cor e de inebriantes odores, esta inigualável serra de Monchique. A
poesia, neste caso, é um pretexto, uma estratégia, ou melhor, um subterfúgio
para dizer em poucas palavras e de uma forma acessível a todos, essa
enormíssima mensagem de que os animais também têm uma vida, também têm
direitos, também merecem respeito, porque, afinal, animais somos todos.
O filho do autor lendo um poema do livro |
Animais de caça, numa
ligação poética de vida
Aqui e ali, por entre os degraus do poema, corre
e salta a lebre, numa fuga desenfreada. Mais além, é a perdiz que voa sobre as
estrofes, deixando atónito o caçador, sem tempo para premir o gatilho. Lá no
alto vê-se o pato-real, que no seu roteiro migratório vem pousar nas águas
calmas das charcas agrícolas, para aqui fazer o ninho e criar a prole. Num voo
estonteante, ziguezagueia e arrulha a rola brava, no anil dos céus. À espera da
sua entrada estão os caçadores, mas só os mais exímios e experimentados
conseguem um tiro certeiro. Os outros, os inábeis só gastam chumbo – mas não o tio
Torrinha, que de tão cioso e avaro não desperdiçava um tiro, e assim “trazia o
chumbo todo para casa”.
No domínio dos ares desfila o tordo e a
galinhola, ecoa o silvo da águia-de-bonelli, despenha-se como um míssil sobre a
presa o falcão-peregrino, a que não escapa o pombo torcaz, para desprezo do
magro pisco. O guincho-da-tainha é uma ave falconiforme de perscrutante visão,
para a qual tudo o que rasteja é alimento. Não há serpente que lhe escape. A
cantar loas à vida, ouve-se ao longe, mas não se vê, o cuco canoro, que de
visita aos ninhos alheios, vai dando a prole para adopção. No seu libré de
cores garridas, esvoaça o gaio traiçoeiro de olhar perscrutante e assassino, à
cata de infante em ninho alheio. Desde o lusco-fusco até ao dealbar da
madrugada, impera “em domínios a olho e garra conquistados” o tenebroso e
perscrutante bufo-real.
Fazendo a apresentação e apreciação crítica da obra |
Nos domínios rasteiros, por entre os matos da
serra, serpenteia a víbora-cornuda de picada fatal para o rato do campo. Este
peçonhento ofídio, também designado por víbora das pedras, cuja cabeça
triangular serve de talismã aos crentes no mau olhado, também se converte em
cobiçado pitéu – quem diria – para o meigo ouriço cacheiro, para o intrépido saca-rabos
(escalavardo na gíria popular), e até para o voraz javali. Mas, entre os pedernais
da serra, também por ali vagueia a esquiva raposa, que persegue e mata o
coelho, devora quando pode o lebrão, afinfa o dente no rato e lambe os beiços
só de ver a capoeira do lavrador. Com o lince ibérico tudo o que mexe é
refeição, só não se sabe quando nos dá a honra da sua visita, porque na serra
algarvia o lince já foi mito e agora é uma fugaz realidade. Com o javali
(navalheiro) é preciso ter muito cuidado, por ser o mais vadio da serra. Não é
esquisito na dieta, que prefere satisfazer à noite, camuflado no mato, percorrendo
quilómetros no encalce das suas presas. É o mais voraz da fauna algarvia, não
lhe escapando a víbora e o licranço, a centopeia e a minhoca, o ninho da perdiz
incauta, e, à falta de melhor, não desdenha ter por refeição a carocha e a
formiga. Rabisca no chão a amêndoa, a castanha, o pinhão, e até mesmo a cevada,
o centeio e o milho, mas quando vislumbra no horizonte a macieira corre
lampeiro para abocanhar os frutos caídos, quando não investe pelo tronco acima
como os felinos da selva.
O caçador e o cão,
um laço de amizade eterna
Todavia, que seria do caçador sem o auxílio do
cão, que fareja a presa, que a persegue e faz levantar para o tiro certeiro do
seu amo. Sim, além de ser o melhor amigo do homem, o cão é o complemento
indispensável do caçador. E, nesse aspecto, o Paulo Rosa não se esqueceu de
evocar neste livro o perdigueiro português, por muitos considerado o melhor cão
de caça para a perdiz, capaz de superar todos os obstáculos, em terra, nos
rios, charcos e pântanos, para abocanhar a presa abatida e trazê-la, como
troféu, às mãos do caçador. E se nos densos matagais é capaz de rastejar,
silencioso e prudente, para fazer levantar a esquiva perdiz, o mesmo acontece
quando tem de se lançar à água para inquietar o pato-bravo até ao voo fatal. O
cão para o caçador depressa se torna no seu braço-direito, até que de tão
imprescindível convívio ascende ao conceito de pessoa humana, e mais do que
isso, ao amor de um irmão. Quando a morte, os separa a ambos, desencadeia-se o
drama da perda, a saudade que não se apaga. É assim para o caçador, mas também
é igual para o cão, que não consegue esquecer o seu amo até ao fim da vida. A
cadela Pitucha, consagrada neste livro com um belo poema, é o exemplo maior
dessa afeição, quase sanguínea, entre o homem e o animal, deixando com a sua
morte um vazio de saudade na perda duma amizade insubstituível: “Foste mas
ficaste em mim porém, que o laço do afecto, não desata a morte”.
O Dr. Paulo Rosa, autor do livro, na sua breve alocução pública,
explicando as razões que motivaram a publicação desta obra
|
O latim, na
erudição e na ciência
Nestes belos e sensíveis poemas, Paulo Rosa
recorre por vezes à mitologia e aos autores clássicos, para estabelecer pontes
e urdir comparações, entre civilizações e culturas aparentemente distantes. O
latim, a língua de Séneca, é também a expressão clássica dos jurisconsultos.
Mas, neste caso, usa-a com parcimónia e apenas para seguir a nomenclatura
binomial de Carlos Lineu. É de uso imprescindível para identificar os animais,
que descreve nos seus poemas. Como exemplo, atente-se na “Cyanopica cyanus”,
designação latina do popular “charneco”, isto é, da pega azul que julgo ter
sido importada da Ásia. Para ser mais preciso, a nossa pega azul tem a
designação de “Cyanopica cooki”, por ser uma sub-espécie daquela.
Mas, dizia eu, que o uso do latim demonstra
também que o Paulo Rocha é um homem culto, que não faz das leis e dos códigos o
seu exclusivo lenitivo de vida, sentindo que o foro é um convencional ajuste de
normas, regras e preceitos, no ordenamento estrutural dessa inquietante
dimensão que é a existência humana. Mas o espírito precisa da dúvida para
construir a verdade.
O melhor
reserva-se para o fim
Para mim os três últimos poemas, só por si,
justificam a edição deste livro. Diria até, como o Jorge Luís Borges, que valem
pelo livro todo, porque são a prova da existência de talento poético em Paulo
Rosa. Têm tudo o que a poesia necessita de ter para ser considerada como arte,
e constituir em si aquilo a que se convencionou designar por “Belas Letras”. Permitam-me
que destaque, de entre os três, o poema «A caçada dos escritores», no qual o
autor imaginou, como num quadro teatral, uma reunião entre homens de letras,
que em comum têm a paixão pela caça. O poema tem a imaginação dos grandes poetas.
A cena desenrola-se no céu, “num serão do
eterno descanso a recordar aventuras, jornadas, festarolas”. Em palco estão
Aquilino Ribeiro, Ramalho Ortigão, Bulhão Pato, Miguel Torga, e outros, “exímios no manejo da escopeta, do tacho e da
pena”.
O poeta retrata toda a cena, com o brilho da
ilustração e da vaidade, inerente às grandes celebridades: “Em tertúlia de lembranças e de relatos,
salpimentadas de excesso quanto baste e com dose de vaidade posta a gosto”.
A descrição tem a graça da ironia queirosiana, apimentada pelo chiste sardónico.
Tem vivacidade narrativa através do requinte do pormenor, quer seja no aprumo
da indumentária, quer seja no primor das armas. Tem movimento na forma como
dialogam e como impõem a sua presença aos demais. Tem ritmo na sequência das
interlocuções, nos dichotes e interpelações. Por exemplo, o Bulhão Pato que
conhecemos como notável gastrónomo, demanda o Torga, exímio caçador de
perdizes, para asseverar que: “as
perdizes glorifico eu «à castelhana» e à minha moda tratarei de a sublimar, e
um «arroz opulento» endeusarei se vindimos paspalhões se levantarem”. O
auge da hilaridade e do picaresco chega na voz do Ramalho, que como bom
portuense aproveitou logo para farpear os lisboetas, acusando-os de devorarem
os perdigotos, ainda mal saídos do ninho, impedindo que as perdizes cresçam e a
natureza progrida: “E vejam lá que em
Lisboa até os servem que nem piscos, de alhada, nas tabernas”. E depois
daquela truculenta cavaqueira, é mestre Aquilino Ribeiro quem organiza a linha
e o rumo da caçada num marcial grito: «atenção avante em frente, e o resto é
quimera, sonho e poesia».
O outro poema, intitulado «Um olhar de Ortega y
Gasset», é uma composição lírica, séria, compacta e segura, uma espécie de
homenagem à integridade moral e à honradez, daquele que foi o maior filósofo
espanhol do século XX. Nesta composição o Paulo Rosa faz uma alusão ao
perspectivismo e à teoria da razão vital, que enformou o pensamento filosófico
de Gasset, cujo objectivo final era o de encontrar o “ser fundamental”. Ora, a
resposta oferece-a o poeta nas palavras simples dos seus versos: «Muito estimável é a preocupação pelo que
dever / mas só após esgotar o respeito pelo que é / pois um homem pode
envilecer até com a sublimidade».
Por fim, o poema «A caça à mesa» é a recriação
poética de uma caçada real, principal distração lúdica da nobreza cortesã. O
poema constitui uma ode à rica gastronomia com que se deleitavam o rei e a sua
vasta corte, após extenuante caçada em correrias de cães e cavalos, por entre
serranias, campinas e moitedos. Tudo ali é fantasia e criação, num frémito de
exaltação lírica, em que o coração ofegante do poeta, sente, recria e revive, o
prazer da mesa e do convívio no lauto repasto das viandas cinegéticas. O poema
que encerra o livro ilustra a forma como terminam todas as caçadas, isto é, num
alegre convívio gastronómico, em que se consolidam amizades para o resto da
vida.
O poeta Américo Telo proferindo a intervenção de encerramento da sessão |
Concluindo com a
outro grande poeta e caçador
Acima de tudo, estamos perante um livro que é
uma elegia à natureza, e à biodiversidade ambiental do nosso Algarve. Nunca
tinha lido nada igual ou até semelhante na poesia portuguesa. De tantos poetas
famosos, que viveram de forma apaixonada o prazer da caça, raros foram, porém,
os que escreveram com tanto entusiasmo, como o fez neste livro o Paulo Rosa. O
caso mais recente, e o mais conhecido, é o livro de poemas de Manuel Alegre, um
exímio caçador, dedicado ao seu cão de caça, um “Spaniel Bretão”, que de tanto
conviver com a família, e por ter sido criado dentro de portas, se transformou
num humano de quatro patas, que “ladrava quando queria falar”. Teve uma vida
longa e feliz, com dezenas de prodigiosas caçadas, em que demonstrou o seu
decisivo contributo para o sucesso final. Quando morreu toda a família ficou
com a alma a sangrar de desgosto. É que tinham perdido um membro da família,
que por acaso era cão. Daí que o poeta Manuel Alegre tenha escrito em 2002, um
livro fabuloso, intitulado «Cão como nós» que é uma das mais primorosas obras
poéticas do nosso tempo, inspirada num profundo e genuíno sentimento de amizade.
O facto de ter este livro como único protagonista um cão, e ter como único
homenageado um cão, faz desta obra um exemplo singular, que julgo ninguém mais
irá imitar.
Para terminar, em nome da cultura, da
preservação do ambiente, da natureza e da biodiversidade, faço aqui uma viva
recomendação para a leitura deste livro de Paulo Rosa, O Perfume da Esteva, publicado pela editora «On y va», na primavera
de 2019.
© José Carlos
Vilhena Mesquita
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