sábado, 30 de outubro de 2010

Peste em Tavira no século XVII e o auxílio dos Franciscanos no seu combate


O surto pestífero que assolou o Algarve em 1646 foi trazido por um “navio de courama” oriundo do Norte de África que entrando pela foz do Gilão aportou junto à ponte de Tavira. A enfermidade espalhou-se imediatamente pela população dizimando a maior parte dos seus moradores. Dizem os relatos da época, certamente com grande exagero, que nessa altura, e só na cidade de Tavira, pereceram 5000 pessoas, não havendo chão sagrado que chegasse para soterrar tantas vítimas. E o desastre só não foi maior porque os frades franciscanos saíram do seu convento em auxílio dos pestíferos, providenciando-lhes conforto humano e religioso, fornecendo-lhes alimentos, agasalhos e até alguns poucos medicamentos, porque o contágio foi de tal forma acelerado que não subsistiam curativos médicos nem mesinhas caseiras que chegassem para acudir a tantos doentes.
O sacrifício dos padres franciscanos revelou-se inexcedível e eficaz, mas para isso tiveram de pagar um preço demasiado alto em vidas humanas, contando-se entre as vítimas alguns dos mais notáveis religiosos da Província da Piedade no Algarve. Lembro por exemplo o próprio Guardião do Convento, Frei Luiz de Beringel, que foi Pregador de grande reputação e não menos afamado Teólogo que morreu em cheiro de santidade. Mas também não devemos esquecer entre as vítimas da peste o notável Frei André de Cernache, que foi Confessor e decano do convento, muito querido entre o povo de Tavira pelas suas qualidades morais e sobretudo pelas suas manifestações de bondade. A eles se juntaram, no infortúnio da morte, outros religiosos, nomeadamente o Confessor Frei Manoel de Estremoz, Frei Basílio da Pedreira e Frei Luiz de Vila de Frades, ambos irmãos leigos. Estes frades foram inexcedíveis na sua dedicação aos habitantes da cidade, mostrando total despojamento pelas suas próprias vidas, pois que se expuseram ao contágio, acolhendo os doentes na Casa da Saúde da cidade, cujas ruas e praças ficaram quase desertas pelo terror da mortandade, num silêncio fúnebre e tenebroso, só entrecortado pelo som das campainhas que os pestíferos traziam ao peito para anunciarem a sua passagem.
Convém acrescentar que existiam naquela cidade cerca de três conventos, mas nenhum deles quis associar-se aos irmãos de S. Francisco com medo de perecerem no contágio da peste, facto que suscitou do rei D. João IV o seguinte desabafo: «Os meus frades (assim chamava sempre aos da Piedade) são bons religiosos, esperão a morte a pé quedo e não desamparão seus conventos».
Durante esse fatídico ano de 1646 a peste circunscreveu-se apenas à cidade de Tavira, mas nos anos seguintes estendeu-se a outras localidades do Algarve, principalmente a Faro, Loulé e Lagos, escapando milagrosamente Vila Nova de Portimão. E no heróico combate ao surto pestífero sempre se distinguiram os frades franciscanos, havendo até a registar o facto do povo de Portimão não querer deixar que os seus frades fossem acudir os seus irmãos religiosos no denodado esforço de lutarem contra o desenvolvimento do surto epidémico.
Perante o flagelo, el-rei D. João IV mandou de Lisboa ao Algarve os seus cirurgiões estrangeiros mais experimentados na cura desta epidemia, assim como medicamentos, boticários e enfermeiros especializados no combate ao contágio. Curiosamente estes emissários reais vinham todos destinados ao convento de franciscanos de Vila Nova de Portimão, cujo Guardião os mandava distribuir pelas várias localidades do Algarve, conforme achasse mais conveniente.
Pouco depois dava-se por extinto o surto epidémico em todo o Reino do Algarve, não chegando, felizmente, a estender-se o contágio à província do Alentejo. Todavia, e apesar dos seus nefastos resultados, desconhece-se ainda hoje o número, certo ou aproximado, das vítimas da peste no Algarve. Presumo que tenham sido alguns milhares.
Para se saber mais acerca deste surto epidémico, dos seus perniciosos estragos e, sobretudo, do esforço evidenciado pelos frades franciscanos no combate ao contágio, veja-se, como fonte histórica, a obra de Frei Manoel de Monforte, Chronica da Província da Piedade, Primeira Capucha de Toda a Ordem, & Regular Observância de Nosso Seraphico Padre Francisco, Lisboa, Officina de Miguel Deslandes, impressor de Sua Magestade, 1696, pp. 752-755.

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