Encontrei há anos na Biblioteca Nacional de Lisboa um interessante códice manuscrito sobre um episódio político ocorrido na cidade de Lagos em 1784. A época em que decorre a trama narrativa prendeu-me imediatamente a atenção, pois decorre no período historicamente designado por «Viradeira», isto é, nos anos subsequentes ao consulado pombalino. Está escrito em verso, repartido em cantos, como se tratasse de Os Lusíadas, em versão reduzida, num estilo crítico-jocoso. Ignoro o seu autor, porque nada consta que o identifique, o que me faz pressupor tratar-se de uma obra clandestina que nunca deve ter visto a luz do prelo.
Desse raro e valioso códice extratei um breve apontamento, no qual anotei os dizeres do rosto:
Brasão antigo de Lagos atribuído por D. Manuel em 1504 |
A
MINISTRADA
Poêma
critico
dado á luz
Por hum amador da tranquilidade Lacobri-
gence. Anno
MDCCLXXXIV. (1)
Trata-se de um longo poema épico repartido por seis cantos e dividido em estrofes, narrando certos acontecimentos populares, marcados por gestos de rebeldia e atitudes de amotinação colectiva, que aglutinaram a maioria dos habitantes de Lagos. A contestação popular dirigia-se principalmente contra um vereador e o Juiz de Fóra da cidade, que desempenhavam os seus cargos de forma despótica com violência e arbitrariedade. Todos os factos e personagens nele descritos são identificados e classificados em dezenas de notas que figuram no término de cada Canto. Em boa verdade, não é apenas uma obra poética que ficou inédita por razões políticas, mas antes um verdadeiro documento histórico, embora de cariz literário, urdido no género mais caro à tradição nacional e ao gosto popular. Sendo as estrofes escritas com objectivos políticos, ainda que em tom crítico-jocoso, este códice torna-se numa fonte de informação notável para a história regional, particularmente para a história da cidade de Lagos, acrescendo com isso a necessidade de o publicar.
Este códice manuscrito abre com a seguinte "Introdução", uma espécie de nota explicativa, que passo a transcrever:
«Os tumultos de Lagos originados das paixões de alguns Ministros, como pela ellevação da Caza do Vereador Bento de Azevedo, tem sido objecto de rizo para huns, e de trabalho para outros; mas de lastima para todos aquelles bons, e sinceros animos que se interessão no publico socego. A ultima dezordem que occazionou, e deu logar a este pequeno Poêma, em que mais se observão as leis da Verdade do que as Regras da Arte, se lhe fez de alguma utilidade, dando a conhecer os males e dezordens, a que nos conduz a discordia, e a ambição, e preencherá o fim do seu Author, unico e singular, que se propoz em ordenálo; e se alguém duvidar da variedade dos factos que nelle se apontão, o Author não tem duvida em apprezentar provas autenticas de todos elles, em qualquer Archivo, ou livraria publica da Corte.»
Confesso que não consegui identificar o autor deste poema crítico-jocoso, muito embora presuma que se trate de um adversário político, talvez um antigo membro das anteriores vereações, cujo espírito progressista e burguês, certamente favorável ao reformismo pombalino, se opunha à mentalidade do monarquismo absolutista que com D. Maria I retornara ao poder, abjurando e derruindo a maioria das conquistas sociais alcançadas durante a administração josefina.
Não obstante o manuscrito se apresentar anónimo - como aliás convinha ao seu carácter clandestino e aos seus objectivos subversivos - encontrei no final da "Introdução" que acima se transcreve uma assinatura de um único nome: Valle. Fiquei, porém, na dúvida se seria a identificação do autor ou do copista, já que desta «Ministrada» circularam vários exemplares manuscritos.
Seja como for, uma coisa é certa, este códice necessita de ser estudado e analisado por um historiador especializado no conhecimento da época, que prepare a sua publicação numa edição que elucide os leitores de todas as dúvidas que a sua leitura possa suscitar. As notas aduzidas no fim de cada Canto, são muito úteis e importantes para a identificação dos intervenientes na acção política, e sobretudo na contestação social descritas no poema, mas pareceram-me por vezes dúbias, algo veladas e pouco esclarecedoras para a compreensão da diegética histórico-literária. Só um especialista na matéria é que poderá dissipar todas as dúvidas, e até talvez identificar o seu autor.
____________________________
(1) Biblioteca Nacional de Lisboa, reservados, códice nº 6058.
Sem comentários:
Enviar um comentário