segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O aborto, uma questão civilizacional


José Carlos Vilhena Mesquita

No mês passado, era meu propósito escrever sobre aquilo a que chamo a questão civilizacional do aborto. Se não me expressei em devido tempo, isto é, antes do referendo, foi porque entendi que como professor não o devia fazer. Seria eticamente reprovável. Contive-me, por isso, no silêncio da responsabilidade, evitando abordar o assunto, até mesmo na privacidade do lar. Um tema de tão melindrosa e susceptível análise ético-religiosa exigia uma profunda reflexão, íntima, ajuizada e prudente.
Na verdade, nunca expressei publicamente a minha opinião sobre o aborto porque um professor, seja qual for o grau de ensino em que exerce o seu múnus profissional, é sempre uma referência, um modelo, um exemplo a imitar. Não só para os seus alunos, como até para a sociedade em geral, já que desde os alicerces da civilização clássica se confiou ao “pedagogo” a prestigiosa função social de educar os jovens no salutar espírito da defesa da verdade, da honra e da pátria. Foram esses, aliás, os supremos valores que embasaram as grandes civilizações e insuflaram a ética social no mundo ocidental. Com a Revolução Francesa e a consequente formação do estado moderno, aos valores sociais e direitos cívicos acrescentaram-se os deveres e as responsabilidades colectivas da administração pública, as quais são basilarmente quatro: educação, trabalho, saúde e habitação. Estes foram, e continuam a ser, os vectores sociopolíticos de cuja convergência resulta a plena consecução da Liberdade e da Cidadania.
Analisando esses vectores tradicionais, verificamos o quanto estão hoje pervertidos em nome da lógica economicista que tutela os destinos do Estado.
A educação atravessa uma crise de eficácia e de abaixamento de qualidade, porque o governo elegeu os professores como inimigos públicos, vilipendiando-os aos olhos da sociedade e diminuindo-lhes a autoridade profissional. Quando um país desprestigia socialmente os seus professores, é certo e sabido que o seu futuro está irreversivelmente hipotecado à ignorância, à insolência, à desfaçatez e ao desprezo pelos valores da ética social. A educação neste país corre a passos largos na direcção da sarjeta.
O trabalho, como um direito social – sobretudo como pedra angular da dignidade familiar, fonte de honra e orgulho para o trabalhador – está cada vez mais longe da esfera de protecção e fomento do Estado. Aliás tem-se assistido à forma vergonhosa como o governo tem combatido os moldes do antigo contrato social, tentando imitar os paradigmas nórdicos, absolutamente antinómicos com a nossa mentalidade latina. Para não arcar com as custas de protecção ao trabalhador, o governo tem procurado legislar a favor da precariedade do emprego, entregando nas mãos dum patronato sujeito à lógica do lucro, o destino de milhares de famílias.
A saúde, até aqui moldada num paradigma de protecção nacional aos cidadãos mais desfavorecidos, tem sido sistematicamente trucidada pela lógica economicista da actual administração pública. Faltam médicos, sobretudo na periferia, encerram-se maternidades, desumanizam-se os hospitais-centrais que passam a ser geridos como empresas, transformam-se os antigos hospitais das vilas e cidades de província em inconsequentes centros de saúde, onde a aspirina é remédio santo para todos os males. O pobre vai para o centro de saúde, o remediado para o hospital e o rico para a clínica privada. A saúde, tal como o país, não funciona nem beneficia os mais carenciados, porque o sector está submetido a uma teia de influências suscitadas pelas Ordens (dos médicos e dos farmacêuticos), cujos interesses corporativos se sobrepõem aos do próprio Estado.
A habitação, como obrigação social do Estado, tem vindo a perder o fulgor a que nos habituara em décadas anteriores. Apenas nas autarquias se assiste à construção de bairros sociais, ao apoio logístico das cooperativas habitacionais e, por vezes, à subsidiarização de projectos com relevância local. Ao contrário disso, o Estado acabou com os apoios ao “crédito jovem” e ao “juro bonificado” para os casais de baixos rendimentos que desejassem adquirir casa própria. Por outro lado, reduziu para metade os apoios ao “arrendamento jovem”, de que muito beneficiavam alguns estudantes pobres deslocados para as diversas universidades do país.
Neste caso, importa referir que a habitação é acima de tudo um negócio, que faz parte de um próspero sector económico, o da construção civil, que movimenta anualmente biliões de euros. Tem sido, aliás, um dos principais factores de enriquecimento da banca. Creio, muito particularmente, que o sector da construção, com toda a sua envolvência empresarial, adquiriu já o estatuto de Capitalismo Imobiliário, com uma abrangência universal muito semelhante (senão mesmo superior), ao dos tradicionais capitalismos: agrário, comercial, industrial e bancário ou financeiro. Mas isso são contas de um outro rosário, que não interessa trazer aqui à colação.
Acontece, como já todos nos apercebemos, que o mundo actual está em total remodelação. O paradigma político alterou-se profundamente. O Estado-social, paternalista e protector, está moribundo. Acabou a Guerra-Fria. Morreu o socialismo. Instalou-se a globalização.
Hoje tudo se perverteu. Os sindicatos perderam força junto dos quadros médios, e os próprios operários deixaram de confiar nos dirigentes laborais. Por outro lado, os partidos desacreditaram-se nos seus jogos de poder, nos interesses privados dos seus líderes, e nas teias da corrupção suscitados pelos grandes grupos económicos, cada vez mais internacionalistas e apátridas. Os chamados “grupos de pressão” deixaram de ser político-sociais, passando a ser exclusivamente económicos. E o Estado português tornou-se numa presa fácil da Banca e dos grandes grupos económicos, cujos lucros anuais são verdadeiramente escandalosos e imorais. Os políticos pactuam com os indecorosos lucros da Banca, porque sabem que quando saírem do governo terão à sua espera pingues empregos, para exercerem a perniciosa traficância de influências junto dos diversos poderes político-administrativos.
Por tudo isto, avizinha-se um novo contrato social, cada menos humanista e cada vez mais imoral. E nesse âmbito se inscreve a questão nacional do aborto, que, na lógica dos comportamentos globais, não podia ter outro resultado senão aquele que legitimamente os portugueses escolheram.
Face à crescente desresponsabilização do Estado na protecção da família, a opção favorável à Interrupção Voluntária da Gravidez, vulgo aborto, era a mais viável e a mais necessária aos interesses estabelecidos.
Um Estado, ou melhor, um governo, que não incentiva o crescimento das famílias porque não ampara as mães na flexibilidade das suas responsabilidades laborais, nem as apoias financeiramente no sustento e educação dos seus filhos, não pode deixar de incitar as mulheres ao aborto.
Bem sei que o aborto é imoral. Mas também sei que o estigma que impende sobre a consciência moral das mulheres deve ser tormentoso. Todavia, a prática do aborto é hoje, e cada vez mais, uma realidade incontornável. A alternativa é a clandestinidade, nas mãos abjectas duma abortadeira, raramente integrada num quadro clínico seguro, sendo em qualquer das circunstâncias altamente vexatório para a mulher.
As causas que levam a mulher a optar pelo aborto já foram amplamente debatidas.
A verdade é que ser mãe deve ser uma opção consciente, reflectida e assumida. A liberdade de decisão é, neste caso, absolutamente fulcral. Uma mulher que se sinta infeliz com a responsabilidade de ser mãe, é preferível que o não seja.
Todos sabemos que o espectro social do aborto incide especialmente nas mulheres jovens e nas mães pobres. As primeiras abortam porque não estão preparadas para serem mães, e as segundas, porque são geralmente casadas e já com mais do que dois filhos, não dispõem de meios financeiros, para sustentarem o crescimento da família.
Perante as circunstâncias actuais de carácter económico, social e comportamental, torna-se lógico aceitar o resultado deste referendo. Foi por isso que votei sim. A questão do aborto é hoje um fenómeno civilizacional, faz parte dos supremos desígnios da liberdade e da responsabilização social da mulher. Como cidadão, como marido e como pai, defenderei sempre os direitos da mulher, especialmente na sua livre opção de ser mãe.

4 comentários:

  1. ÒH professor, desculpe-me meter-me consigo sobre este tema !

    O Profº deu uma volta dos diabos, utilizando uns argumentos baseados na mecanização da vida , para justificar a legalização do aborto!

    Essa lenga lenga, imposta ao longo dos anos que de forma inconsciente entrou nas cabeças de todo o mundo ocidental , considera que para se ter um filho há que ter antes as condições económicas e sóciais que os " donos do mundo" acham como minimas.

    Pegando nesse raciocinio , então os ciganos já tinham desaparecido da superficie da Terra, os Africanos estariam em extinção, A América Latina seria um deserto, Os chineses eram meia duzia deles e por ai fora !!!

    Não lhe parece que esse argumentório, depois de totalmente revelado na sua essência, não é mais do que apoiar o genócideo em massa e destabilização das sociedades ???

    Eu sei que esta ideia não é só sua é antes uma corrente de opinião que ligitimou o Sim ao Aborto e não é minha intenção rebatê-la , mas antes , pensar de forma lateral a fim de tentar ver a parte escondida da história!

    Aborto, Eutanásia, Casamentos Gays, Adopção de Gays são coisa diferentes mas fazem parte da mesma história.
    O Profº sabe que os regimes Nazistas e Estalinistas , matavam todos os bebés que nascecem de uniões não ligitimadas pelo apuramento da raça e todos aqueles bebés que eles consideravam ter defeitos para a sociedade. Os bebés eram medidos e haviam medidas padrão e o que estivesse fora era morto !!!

    Àquela data isto era aceite pela sociedade com muita normalidade por causa das lavagens cerebrais que a propaganda dava no povo !!!

    Hoje , estamos na mesma , só que com processos diferentes e argumentos diferentes !!!

    Para mim, como PAi, é muito pior para um bebé, as vacinas, os antibióticos e anti_ inflamatórios que o Sistema de Saúde dá em doses industriais que qualquer precariedade social . Hoje somos envenenados à nascença e nem notamos .

    As crianças de hoje são zombies comparadas com as de à 50 anos !
    Hoje , numa qualquer sala da 1ª classe , metade das crianças usam óculos ! Porque será ?
    SErá pelas melhores condições económicas dos PAis ?

    Um abraço

    Vitor Xelim

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  2. Muitíssimo obrigado Vitor pela sua colaboração e pela sua activa participação neste Blog.
    Eu sou a favor do aborto, porque acho que só à mãe compete decidir se deve ou não assumir o nascimento do seu filho. O factor económico não é decisivo para o impedir, embora deva sempre ser tomado em linha de conta.
    Se a minha esposa decidisse fazer um aborto eu tentaria tudo para a convencer do contrário, isto é, fazendo-lhe ver o lado positivo da vida. Mas se ela insistisse em não ser mãe, eu confesso que iria ajudá-la com todas as minhas forças a cumprir essa decisão.
    Não devemos impor às mulheres a sua intrínseca e inalienável vocação natural para serem mães. Esse desígnio da natureza só a elas pertence. Deixemos, pois, que sejam elas, e só elas, a decidirem.
    Vou-lhe contar uma história. Em 1980, era eu professor na Escola Secundária de Loulé, houve uma aluna que engravidou de alguém que ela nunca conheceu verdadeiramente. Numa participação nos «Jogos sem Fronteiras» envolveu-se com um dos concorrentes estrangeiros e algumas semanas depois soube que estava grávida. A família deu-lhe todo o apoio para prosseguir com a sua vida, até porque era uma jovem de 18 anos. O próprio namorado, que era um rapaz bem formado, compreendeu a situação, e por extremo amor que sentia por ela propôs-se casar de imediato, assumindo como sua essa paternidade.
    Todavia, ela não aceitava nenhuma proposta alternativa, e queria fazer um aborto porque achava que aquele filho não tinha sido fruto nem do amor nem da sua vontade de ser mãe. E este argumento, vontade de ser mãe, pesava forte na sua decisão. Tudo fizemos para a demover, mas ninguém foi capaz de a levar a uma clínica, em Lisboa ou em Espanha, para fazer o aborto. Algumas semanas depois ela desfechou a espingarda de caça do pai contra o peito, indo bater no tecto do quarto. A sua lição mudou todo o sentido que eu dava à questão do aborto, numa altura em que era altamente proibido. Afastei-me da Igreja e do catolicismo para pensar pela minha cabeça. Hoje sou absolutamente favorável ao aborto, à eutanásia, ao casamento Gay e até mesmo à adopção de crianças por casais gays, desde que estas sejam devidamente acompanhadas, com regulares entrevistas, por psicólogos.
    Para mim o que prevalece é o livre arbítrio. Todos devemos ser livres para decidir o que fazer da nossa vida, mas com absoluta responsabilidade.
    O argumento do crescimento demográfico dos ciganos, dos africanos e dos chineses, desculpe que lhe diga, mas é falacioso. A explicação não é somente económica, mas também cultural, religiosa e até política. Já há quem diga que o aumento demográfico das famílias islâmicas, a ponto de em 2050 poderem dominar a Europa, é um desígnio conspirativo do mundo árabe. Isto, para mim é mais uma falácia.
    Enfim, muito mais haveria para dizer. Mas o que importa é a sua colaboração.
    Volte sempre.
    Um abraço do Vilhena Mesquita

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  3. Meu caro profº

    fico agradado pelo seu humanismo reflectido na sua história mas penso que não percebeu o que esá por detrás da legalização do Aborto, dos casamentos Gays, adoptções de casais Gays , da eutanácia.

    A lei já previa antes a realização do aborto para o caso dessa estudante e se não previa devia prever, no entanto esse caso não aconteceu por causa da lei do Aborto, mas sim pelo constrangimento familiar e social que a miuda ficou envolvida pela inepcia dos seus pais em lidarem com a questão.

    Os abortos sempre se fizeram , mas a sua total liberalização e sobretudo com a propaganda social feita em seu prol , para mim é um instrumento de control populacional, como o é a pilula ou o preservativo!

    Já sei que vai alegar as teorias conspirativas , mas estas leis foram todas introduzinas nos paises por recomendação das ONU, assim como a introdução de cada vez mais vacinas no sistema nacional de saude, sem qualquer justificação e com conteudo duvidoso e isso não passa de politicas de exterminio das populações e de bancarrota dos Estados para os obrigar a submeterem-se à governação global, como aliás o profº e muito bem escreveu num texto seu , antevendo o futuro.

    A sim não lhe parece esquisito que as comidas de processamento industrial, com ingredientes cancerigenos às carradas, sejam vistas como boas pelas autoridades sanitárias e tudo o que é fresco e do dia é que é perseguido e confiscado por falta de condições de higiene ?

    Atente só para este caso de Pandemia da gripe, que é uma repetição do que já aconteceu em 1976 nos EUA, onde 3 semanas depois da vacinação tiveram que supender-la pelos efeitos adversos e indiminizações que estavam a ser pedidas pelas vitimas !

    Isto são ferramentas de engenharia social que só se entendem se vistas na globalidade e no seu encadeamento. Vistas isoladamente até parecem que fazem sentido !!!!

    Como o Profº referiu num dos seus textos, até Hitler e Mussolini foram eleitos por esmagadora maioria democratica!!!! Ou seja, os carneiros vão para onde a propaganda quer !

    Vito Xelim

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  4. Pronto Vitor. Cada um fica na sua razão.
    Mas olhe que o caso que lhe contei não teve aquele dramático desfecho pelas razões que você aponta. Aquela jovem não queria ser mãe, nem daquela criança nem naquele momento. É isto que temos de reconhecer: a mulher só deve ser mãe quando conscientemente assim o desejar.
    Além disso, o aborto não é, como diz, uma forma de controlo ou de planeamento familiar, como o é a pílula ou o preservativo. Não pense que uma mulher aborta de ânimo leve. Bem pelo contrário, só o fará em última circunstância e quando não estiverem reunidas todas as condições para poder assegurar, de forma digna e responsável, a plenitude do seu papel social de mãe.
    Creio que até nem o próprio Estado, através duma franca assistência hospitalar, tem feito tudo quanto deveria para garantir à mulher a opção segura, e o menos estigmatizante possível, do aborto.
    Enfim, a discussão deste caso é longa e difícil de dirimir.
    Pela minha parte continuo ciente de que deve atribuir-se à mulher a liberdade de decidir se deve ou não querer ser mãe.
    Com o devido respeito, mantemos inamovíveis as nossas posições em nome do amor que temos pelas mulheres e também pela vida. Lembro que um filho não desejado corre sempre o risco de não ser um filho inteiramente amado.
    Volte sempre, pois que os seus comentários são muito bem-vindos.
    Um abraço do Vilhena Mesquita

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