terça-feira, 10 de novembro de 2009

A VIAGEM da PARKER 51

José Carlos Vilhena Mesquita

A literatura infantil tem experimentado ultimamente no nosso país grande desenvolvimento, a ponto de haver conquistado um espaço de verdadeiro sucesso no sector comercial livreiro, o que a todos tem agradavelmente surpreendido. Não há hoje nenhum adolescente, minimamente instruído, que não tenha lido as pedagógicas páginas literárias de um qualquer livro assinado por Matilde Rosa Araújo, Alice Vieira, Isabel Alçada ou Ana Maria Magalhães. Aliás estas duas últimas escritoras são em larga medida responsáveis pela evidente propulsão da literatura infanto-juvenil, a ponto de haverem criado colecções temáticas que os miúdos compram e lêem numa espécie de cadeia sequencial, o que tem contribuído para a boa formação moral e cultural das camadas jovens.
Diga-se de passagem que este género literário sofreu um grande impulso no início da década de oitenta, quando a reforma curricular do ensino básico e os novos projectos de implementação didáctica, fundamentados em inovadoras estratégicas pedagógicas, passaram a fazer parte da formação científica dos professores e da formação cívica dos alunos. A sensibilização dos professores para a nova literatura infantil, que se produzia no país e no estrangeiro, foi decisiva para o desabrochar de um género literário que até aí parecia adormecido.
Com efeito, quando no século XIX se começou a falar de pedagogia e João de Deus surgiu com a sua Cartilha, assistiu-se, precisamente com o poeta do Campo de Flores, ao aparecimento dos primeiros indícios de uma nova corrente literária. Antero de Quental apareceu logo a seguir com um insípido Tesouro Poético da Infância, em cujo género surgiria mais tarde Afonso Lopes Vieira com o Bartolomeu Marinheiro e sobretudo com os Animais Nossos Amigos, que fizeram as delícias de sucessivas gerações, nas quais me incluo. Era a República, então emergente, a dar os primeiros passos na formação pedagógica estudantil, através de uma certa exaltação dos valores patrióticos e das virtudes lusitanas, ressuscitando heróis e mitos do passado histórico.
Daí por diante assistiu-se a uma certa aceleração da literatura infantil pela mão de notáveis escritoras, envolvidas nas "guerras" sufragista e emancipalista das mulheres. Cito de memória a Ana de Castro Osório, com o livro de contos Para as Crianças, Virgínia de Castro e Almeida de que me lembro da História da Dona Redonda e da sua Gente, Maria Sofia de Santo Tirso (apadrinhada por Maria Amália Vaz de Carvalho) com a Boneca Cor de Rosa e outros livros de que não me recordo, mas que me lembro de ser visita esporádica na casa de meus pais. Seria, porém, injusto não deixar de referenciar outros nomes sonantes da literatura infantil como, por exemplo, Maria Archer (que viveu em Faro), António Boto que escreveu em prosa O Livro das Crianças, Emília de Sousa Costa com o Tagaté às do Futebol, Fernanda de Castro com as Aventuras da Mariazinha, Raul Brandão com o Portugal Pequenino, António Sérgio com Na Terra e no Mar, Aquilino Ribeiro de quem recebi em mão a oferta do Romance da Raposa e da Arca de Noé, Adolfo Simões Müller com as Aventuras do Trinca Fortes que era uma biografia de Camões, o Padre Moreira das Neves e António Manuel Couto Viana, de que fui amigo de ambos, escrevendo peças de teatro infantil que representávamos nas escolas, e tantos outros que a memória agora atraiçoa. Não posso passar adiante sem lembrar o Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos de Alves Redol e as Aventuras Maravilhosas de João Sem Medo de José Gomes Ferreira, que foram escritores que marcaram a minha juventude e a minha formação intelectual.
No caso da literatura algarvia não há muitos e bons exemplos para aqui trazer à colação. Apenas destaco os livros Leonel Neves dedicados à literatura infanto-juvenil, como por exemplo Histórias do Zé Palão, O Polícia Bailarino, João Careca Mestre Detective e outros, infelizmente pouco conhecidos e mal divulgados, a necessitar de uma compilação em livro para oferecer às escolas, pelo menos as do Algarve. Mais recentemente duas escritoras algarvias, Maria Teresa Ramos com O Senhor Ambiente, e Maria Armanda Tavares Belo, com A Cebolinha Perdida e Outras Histórias, deram à literatura infantil um pequeno mas significativo contributo que merece ser aqui louvado.
A juntar aos autores citados cumpre agora destacar a obra de Idália Farinho Custódio, uma escritora natural de Loulé, que considero de incontestável talento e uma verdadeira mais-valia no actual panorama da literatura algarvia. A sua paixão pela literatura infantil advém certamente da sua formação profissional, pois como professora sentiu-se atraída para novas vias de motivação pedagógica de entre as quais a escrita é, certamente, a mais efectiva e proficiente. Começou há duas décadas atrás a publicar poesia para crianças, dando à estampa o livro Carrocel Superstar (1980) a que mais tarde daria seguimento com O Menino que era Poeta (1989). Dedicou-se também ao conto infantil publicando mais quatro livros: O Rouxinol e a Rosa (1981), A Viagem da Parker 51 (1985), O Segredo da Rainha (1991) e As Mãos do Meu Irmão (1997).
A utilidade e valor da obra de Idália Farinho no âmbito da formação ético-cultural das crianças não merece contestação. Muito pelo contrário, é de insofismável interesse pedagógico e a merecer todo o apoio das entidades oficiais, mormente da Direcção Regional de Educação do Algarve. Digo isto porque outros autores existem dedicados à literatura infantil no Algarve e por esse país fora, mas raras são as editoras sediadas na capital que apostam nos autores de província. E quem não publica com a chancela da Editorial Caminho, da Editorial Notícias, das Edições Asa ou da Porto Editora, não só não ganha os direitos autorais como também nunca sairá do anonimato, porque em volta dessas editoras existe um apoio mediático que facilita a divulgação das obras e a credibilização literária dos respectivos autores.
Não devendo vassalagem a ninguém a Dr.ª Idália Farinho Custódio pode contar com a colaboração da AJEA para levar por diante a reedição desta Viagem da Parker 51 que merece, em primeiro lugar, uma nota bastante positiva pela sua apresentação gráfica, mercê dos belíssimos desenhos de José Maria Oliveira que valorizam artisticamente toda a obra. Em segundo lugar, merece também nota positiva a forma incisiva como a autora desenvolveu a sua narrativa, que sendo para crianças impõe-se que seja breve, alegre e empolgante, cativando a atenção dos miúdos e enchendo as páginas com pouco texto para que estes as conquistem até ao último folgo, como quem vence a batalha da leitura.
Num livro de sessenta páginas é preciso pensar também na paciência e no esforço intelectual das crianças, que devem ver no livro um objecto de distracção e na leitura uma acção de prazer. É claro que para nós, mais velhos, o livro é uma fonte de conhecimentos, mas para as crianças é quase sempre uma prova de paciência e de esforço intelectual, porque exige que a leitura seja acompanhada do recurso à abstratização de imagens e à associação de ideias, tornando-se para isso imprescindível a concatenação dos conhecimentos adquiridos anteriormente. Por essa razão é que os livros infantis devem ter um público-alvo muito bem definido, segundo o escalão etário e a sua competente formação escolar. Atenta certamente a todos esses factores a autora construiu uma narrativa muito viva, carregada de peripécias, surpresas e imprevistos, numa sucessão de quadros ao jeito duma peça teatral, usando um vocabulário acessível mas rigoroso, quer na construção semântica quer na elaboração sintáctica das frases e sobretudo dos diálogos, que não sendo curtos são, porém, completos.
A ideia base que nos parece subjacente a este livro incide nos valores da amizade, da confiança, do respeito mútuo e, fundamentalmente, do amor. O personagem principal é a Caneta - como objecto indutor da escrita - que realiza uma viagem propiciadora de novos conhecimentos, de novos relacionamentos e de trocas culturais, que resultam no sucesso e na felicidade da protagonista. A frase lapidar ou mensagem global do livro – que a autora pretende fazer passar como “moral da história” – é tão sugestiva quanto apelativa: «Não deixes morrer a palavra AMOR! Ela tem que ser a Estrela Universal.» E, de facto, não haverá maior bandeira no ideário dum hipotético humanismo universal do que o Amor.
Na verdade, estamos perante uma fábula dos tempos modernos, pois que a Caneta assume um papel humanizado, nos seus defeitos e virtudes, que se deixa seduzir pelo mistério duma viagem a Nova Iorque, ao longo da qual se confronta com as fraquezas que nos são peculiares, como a inveja, o desprezo, a indiferença, o racismo, o egoísmo e a ambição. É curioso que nesta história a Caneta também tinha a sua presenção e vaidade, ao ser apontada como uma Parker - que é sinónimo de sucesso e prestígio - cuja risca dourada lhe dava um toque de classe e distinção. Em todo o caso assume a sua humildade de emigrante num país de oportunidades, onde por fim alcança o almejado sucesso numa companhia de circo, mercê da sua inteligência e dos seus dotes de escrita.
O surrealismo desta fábula, que é um misto de materialismo e espiritualidade, envolve o livro numa aura de simpatia e felicidade, que induz o leitor a penetrar num mundo de fantasia que lhe é querido e, nas idades mais jovens, muito peculiar. Vê-se que a autora estudou claramente os pontos de maior sensibilidade na narrativa para prender a atenção dos seus jovens leitores. E conseguiu-o até com os mais velhos, que nesta «Viagem» gostariam certamente de estar no papel da Parker 51. Para eles “os menos jovens” existe um certo saudosismo nesta caneta, pois recordo-me perfeitamente de possuir nos idos de sessenta uma Parker azul com um anel dourado, que emprestava aos seus possuidores um toque de requinte e um brilho de distinção, um pouco à imagem da protagonista desta bela história infantil.
Sugestivo é também o facto desta Caneta, no seu lusitanismo anglófilo, se ter cruzado com os nossos emigrantes na América, onde foi bem recebida e tratada com admiração, por força da sua mestria na arte da escrita. Tornou-se pois numa estrela de circo - aqui simbolicamente representado como fonte primordial do nosso imaginário infantil - devido à sua capacidade para escrever as palavras que o público lhe ditava. Curiosamente recusou-se a escrever a palavra «Guerra», por ser a mais maldita, a mais trágica e detestável do vocabulário humano, mas recebeu do público um estrondoso aplauso quando escreveu com luminosas cores a palavra «Amor».
O livro encerra com uma mensagem de fraternidade e amor, num amplexo que deve unir toda a humanidade, quaisquer que sejam as suas coordenadas geográficas ou as suas diferenças étnicas, culturais e religiosas. É por isso um livro recomendável para a educação e formação moral dos nossos filhos. Essa é também uma das razões pela qual a AJEA se orgulha de ter dado à estampa mais uma obra de sucesso, cuja autora, sendo louletana e algarvia de gema, merece todo o nosso apoio.

3 comentários:

  1. Caro Prof.

    Boa noite.

    Estive ontem na UATI, na minha primeira presença de aluno da terceira idade,situação com a qual tenho uma relação de convívio bastante boa.

    Digo isto,porque,dado a aula ter decorrido bem, no final,falando com colegas sobre as matérias leccionadas e sobre cultura em geral, citei, orgulhosamente e com muito gosto, os blogues do Professor Vilhena Mesquita, como lugares obrigatórios de presença, leitura e investigação.

    Muito obrigado por estes trabalhos fantásticos que nos apresenta. E estendo-lhe o meu abraço porque estão aqui muitas horas de estudo e ivestigação.

    A literatura infantil não está ao alcance de todos. Eu que fui professor desde o primário até ao superor não lhe toco nem em pensamento, simplesmente porque não sei nem tenho talento.

    “Escrevemos um livro sobre a adolescência com a manhosice de adulto ... “ disse Torga, e eu concordo.

    Na minha óptca, a literatura infantil exige grande visão e conhecimento do asunto.

    Não vou emitir opiniãosobre o texto, porque não sei e , fundamentalmente, por duas coisas:

    Deixar ao Professor JCVM um grande abraço de parabens pelos categorizados trabalhos que aqui apresenta.

    Igualmente aos escritres citados

    E dizer que o escritor Àlvaro Magalh~es do Porto é também um grande escritor para crianças.
    JOÃO BRITO SOUSA

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  2. Muitíssimo obrigado, Dr. Brito Sousa, pela inestimável colaboração que tem prestado a este Blog.
    As suas palavras, sempre excessivamente elogiosas, são difíceis de comentar. Mas tem razão quanto à literatura infantil, é um sector pouco estudado, e, talvez por isso mesmo, de difícil abordagem. A sua amiga Alice Vieira é um dos maiores monumentos da nossa literatura infanto-juvenil.
    Ainda bem que tem estado a frequentar as aulas aqui na UATI, onde tenho a grata honra de ser considerado como professor-fundador, epíteto esse que igualmente retenho para a minha presença na Universidade do Algarve.
    Um grande abraço do amigo e admirador, Vilhena Mesquita

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  3. acho que a historia "A Viagem da Parker 51 é interessante e o blog tambem mas uma coisa que este blog devia ter é um resumo da historia para quem ainda nao a leu ter mais ou menos a ideia do conto.
    obrigada pela atenção.

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