quarta-feira, 13 de maio de 2020

Dois sermões proferidos por Fr. Francisco da Cunha na Sé de Faro, no séc. XVIII


Em 1730, vendiam-se na casa de Rodrigo da Maya, um livreiro que teve a sua época, sediado no bairro oriental da Sé de Lisboa, várias publicações de índole religiosas. Havia de tudo, desde estampas e pagelas piedosas até aos sermões para a doutrinação ecuménica do rebanho patriarcal. Para servir os leigos e profanos, ou seja, o público em geral, não faltavam também ali os folhetos de cordel, pequenos fólios in-quarto, relatando prodígios insólitos e rocambolescos, como assombrações, encantos, génios demoníacos e toda a casta de fenómenos, caldeados com milagres e curas de origem divina.
Sé de Faro, no século XIX
Na imprensa do tempo, sobretudo na «Gazeta de Lisboa» publicavam-se pequenas notícias, pagas à linha pelos livreiros e editores, dando conta da vinda a público desses folhetos e opúsculos de inspiração religiosa. A intenção e expectativa era a de serem brindados pela Patriarcal ou até pela Casa Real, com a suprema graça de uma compra por grosso para distribuição pelas diversas casas de frades religiosos existentes na diocese.
Foi um desses anúncios que vi na edição nº 35, de quinta-feira 31-8-1730, a páginas 280 da «Gazeta» a referência à seguinte publicação:
Oraçaõ fúnebre, Laudatoria Historica, e Panegyrica nas Exequias do Summo Pontifice Benedicto XIII, de gloriosa memoria, que na Sè da Cidade de Faro, Reyno do Algarve, pregou o Padre Mestre Fr. Francisco da Cunha Augustiniano, mandou celebrar o Emminentissimo Senhor Cardeal Pereira do Titulo de Santa Susana, do Conselho de S. Magestade, dignissimo Bispo do dito Bispado fazendo nellas Pontifical. Lisboa na oficina Augustiniana, 1730.
O que me prendeu-me a atenção foi o facto de se tratar de um evento religioso realizado em Faro, certamente na Sé, que deve ter sido presenciado pelos mais altos representantes das autoridades civis e militares. Procurei indagar da sua existência na Biblioteca Nacional tendo constatado que existe mais do que uma cópia disponível à leitura pública.
O saudoso Abílio Gouveia, que tinha na sua biblioteca uma vasta coleção de sermões e outros folhetos relativos ao Algarve, disse-me que tinha um exemplar, mas não pude havê-lo à mão, para o poder asseverar. Nessa altura, o Abílio Gouveia era já bastante idoso, reservava-se na sua residência como um eremita, e tinha a sua biblioteca muito a recato dos olhares alheios.
Acerca do autor deste folheto, Frei Francisco da Cunha, padre mendicante da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, consultei as obras em que se arrima o conhecimento geral de tudo quanto no passado se publicou na lusa língua. Refiro-me à Biblioteca Lusitana, de Barbosa Machado (vol. II, p. 140), e ao Dicionário Bibliográfico Português, de Inocêncio Francisco da Silva (vol IX, pp. 282-283).
Por eles coligi o pouco que se conhece acerca deste Frei Francisco da Cunha, que nasceu em Lisboa, em data que ignoro, mas que se presume ter sido ainda no século XVI. Consta que era filho de Domingos de Araújo, que foi um honrado Escrivão dos Feitos da Coroa, e de Bárbara da Cunha, os quais presumo terem sido ambos de boa e reconhecida índole. Ainda muito jovem estudou Humanidades e Latim, antes de dar entrada, a 6-03-1714, no convento da Graça, em Lisboa, na sagrada congregação dos Eremitas de Santo Agostinho. Na reclusão do cenóbio dedicou-se com perseverança ao estudo da teologia, da exegese bíblica, da filosofia aristotélica e da escolástica. O seu sacrifício foi coroado com a nomeação para Leitor de Teologia no convento onde professara. Pouco depois foi requestado para o exercício das mesmas funções no convento da sua ordem em Leiria, passando depois a Prior daquela prestigiada casa religiosa.
Voltou anos depois a Lisboa, onde foi prior do convento da Penha de França. Sabe-se que quando os agostinianos se reuniram em assembleia magna, na cidade de Perugia, na Itália, o nosso Frei Francisco da Cunha foi nomeado para presidir ao Capítulo Geral da Ordem, o que terá sido para ele uma subida honra. Após a sua estadia na capital da Úmbria, foi nomeado Procurador da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho em Lisboa para integrar a Cúria Romana, junto do Sumo Pontífice. Esse terá sido o momento áureo da sua carreira religiosa.
Quando voltou à pátria lusa, não foi longo o seu repouso na tranquilidade conventual, pois seria pouco depois nomeado Vigário Provincial do Reino do Algarve, com assento na Sé de Faro. É durante a sua estadia no Algarve que se estreia nas letras da fé católica, através da publicação do opúsculo acima referido.
O prelado desta diocese, o cardeal José Pereira de Lacerda (1662-1738), de quem foi amigo pessoal, nomeou-o para o exercício da alta dignidade de Examinador Sinodal da Bispado de Faro. Os seus dotes de orador fizeram-se destacar nas festas religiosas e nas celebrações ecuménicas da fé católica, pronunciando no púlpito da Sé de Faro notáveis sermões de que é exemplo o que aqui pronunciou por ocasião do Natal de 1731:
Sermam Panegyrico do Glorioso grande, ou mayor Santo S. Joseph fundado no Decreto da Sagrada Congregaçaõ dos Emminentissimos Cardeaes em 19 de Dezembro de 1726, pelo que se manda pòr S. Jozé na Ladainha dos Santos depois de S. Joaõ Bautista, prégado na Sé de Faro, pelo P. M. Fr. Francisco da Cunha, na Festa que lhe faz o Cardial Pereira. Lisboa, na Officina Augustiniana, 1731.
Embora já sem importância para o Algarve, o frade eremita calçado dos agostinianos, Francisco da Cunha, publicou em 1743 a sua mais reputada e extensa obra, cujo interesse literário excede largamente as anteriores, até pelo facto de na época causar alguma celeuma contestatória nos meios profanos e da autonomia popular. Aqui vai citada nos termos em que a descreve o Dicionário Bibliográfico de Inocêncio da Silva:
Oraçaõ academica panegyrica histórica encomiástica profano-sacra, pelos felicissimos sucessos e victoriosas armas da Serenissima Rainha de Bohemia, com a descripçaõ do mesmo Reyno, e corte de Praga, e das suas victorias do Panaro e Mano, adornada de varias poesias e muitos versos dos melhores engenhos portuguezes. Lisboa, na Officina Alvarense, 1743.
Sei que publicou ainda, com o pseudónimo de Ricardo Fineca Fascunh, que mais não é do que o anagrama de Francisco Cunha, um opúsculo intitulado:
Relaçam da prodigioza navegaçam da nao chamada S. Pedro, e S. Joam da Companhia de Macao, por merce da milagrozissima Imagem de N. S. de Penha de França, com a explicaçam, e pintura da grande cobra, que se achou na dita nao, e se criou dentro em huma pipa de agoa..., escrita por hum devoto domestico da mesma Senhora, Ricardo Fineça Fascunh. Lisboa, na oficina de Jozé da Silva da Natividade, 1743.
Curiosamente, nesse mesmo ano deu à estampa um outro opúsculo, no mesmo estilo dos anteriores, e de carácter laudatório e histórico, dedicada à rainha consorte de D. João V, que só por mera curiosidade passo a citar:
Oraçam academica, panegyrica, historica, encomiastica, profana-sacra, consagra, tributa e oferece à mesma soberana e Senhora D. Maria Theresa Augusta, Christina, Amélia Walburga de Austria / O.M. Fr. Francisco da Cunha Augustiniano. Lisboa, na Oficina Alvarense, 1743.
E nada mais conheço deste frade agostiniano, que tenha verdadeiro interesse para o estudo do Algarve ou que mereça constar na «Algarviana». Como se vê e comprova, apenas publicou cinco trabalhos, todos eles de inspiração religiosa, cujo interesse e valor histórico-cultural, se pode considerar muito reduzido.
Para terminar devo acrescentar que em 1759 há notícia de Frei Francisco da Cunha ainda vivo, ignorando-se onde e em que ano terá perecido.

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