Em 1730, vendiam-se na casa de
Rodrigo da Maya, um livreiro que teve a sua época, sediado no bairro oriental da
Sé de Lisboa, várias publicações de índole religiosas. Havia de tudo, desde
estampas e pagelas piedosas até aos sermões para a doutrinação ecuménica do
rebanho patriarcal. Para servir os leigos e profanos, ou seja, o público em
geral, não faltavam também ali os folhetos de cordel, pequenos fólios in-quarto,
relatando prodígios insólitos e rocambolescos, como assombrações, encantos, génios demoníacos e toda a casta de fenómenos,
caldeados com milagres e curas de origem divina.
Sé de Faro, no século XIX |
Na imprensa do tempo,
sobretudo na «Gazeta de Lisboa» publicavam-se pequenas notícias, pagas à linha
pelos livreiros e editores, dando conta da vinda a público desses folhetos e opúsculos
de inspiração religiosa. A intenção e expectativa era a de serem brindados pela
Patriarcal ou até pela Casa Real, com a suprema graça de uma compra por grosso
para distribuição pelas diversas casas de frades religiosos existentes na
diocese.
Foi um desses anúncios que vi
na edição nº 35, de quinta-feira 31-8-1730, a páginas 280 da «Gazeta» a
referência à seguinte publicação:
Oraçaõ
fúnebre, Laudatoria Historica, e Panegyrica nas Exequias do Summo Pontifice
Benedicto XIII, de gloriosa memoria, que na Sè da Cidade de Faro, Reyno do
Algarve, pregou o Padre Mestre Fr. Francisco da Cunha Augustiniano, mandou
celebrar o Emminentissimo Senhor Cardeal Pereira do Titulo de Santa Susana, do
Conselho de S. Magestade, dignissimo Bispo do dito Bispado fazendo nellas
Pontifical. Lisboa na oficina Augustiniana, 1730.
O que me prendeu-me a atenção foi
o facto de se tratar de um evento religioso realizado em Faro, certamente na
Sé, que deve ter sido presenciado pelos mais altos representantes das
autoridades civis e militares. Procurei indagar da sua existência na Biblioteca
Nacional tendo constatado que existe mais do que uma cópia disponível à leitura
pública.
O saudoso Abílio Gouveia, que
tinha na sua biblioteca uma vasta coleção de sermões e outros folhetos relativos
ao Algarve, disse-me que tinha um exemplar, mas não pude havê-lo à mão, para o
poder asseverar. Nessa altura, o Abílio Gouveia era já bastante idoso, reservava-se
na sua residência como um eremita, e tinha a sua biblioteca muito a recato dos
olhares alheios.
Acerca do autor deste folheto,
Frei Francisco da Cunha, padre mendicante da Ordem dos Eremitas de Santo
Agostinho, consultei as obras em que se arrima o conhecimento geral de tudo quanto
no passado se publicou na lusa língua. Refiro-me à Biblioteca Lusitana, de Barbosa Machado (vol. II, p. 140), e ao Dicionário Bibliográfico Português, de
Inocêncio Francisco da Silva (vol IX, pp. 282-283).
Por eles coligi o pouco que se
conhece acerca deste Frei Francisco da Cunha, que nasceu em Lisboa, em data que
ignoro, mas que se presume ter sido ainda no século XVI. Consta que era filho
de Domingos de Araújo, que foi um honrado Escrivão dos Feitos da Coroa, e de
Bárbara da Cunha, os quais presumo terem sido ambos de boa e reconhecida
índole. Ainda muito jovem estudou Humanidades e Latim, antes de dar entrada, a
6-03-1714, no convento da Graça, em Lisboa, na sagrada congregação dos Eremitas
de Santo Agostinho. Na reclusão do cenóbio dedicou-se com perseverança ao
estudo da teologia, da exegese bíblica, da filosofia aristotélica e da
escolástica. O seu sacrifício foi coroado com a nomeação para Leitor de
Teologia no convento onde professara. Pouco depois foi requestado para o
exercício das mesmas funções no convento da sua ordem em Leiria, passando depois
a Prior daquela prestigiada casa religiosa.
Voltou anos depois a Lisboa,
onde foi prior do convento da Penha de França. Sabe-se que quando os agostinianos
se reuniram em assembleia magna, na cidade de Perugia, na Itália, o nosso Frei
Francisco da Cunha foi nomeado para presidir ao Capítulo Geral da Ordem, o que terá
sido para ele uma subida honra. Após a sua estadia na capital da Úmbria, foi
nomeado Procurador da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho em Lisboa para
integrar a Cúria Romana, junto do Sumo Pontífice. Esse terá sido o momento áureo
da sua carreira religiosa.
Quando voltou à pátria lusa, não
foi longo o seu repouso na tranquilidade conventual, pois seria pouco depois nomeado
Vigário Provincial do Reino do Algarve, com assento na Sé de Faro. É durante a
sua estadia no Algarve que se estreia nas letras da fé católica, através da publicação
do opúsculo acima referido.
O prelado desta diocese, o
cardeal José Pereira de Lacerda (1662-1738), de quem foi amigo pessoal,
nomeou-o para o exercício da alta dignidade de Examinador Sinodal da Bispado de
Faro. Os seus dotes de orador fizeram-se destacar nas festas religiosas e nas
celebrações ecuménicas da fé católica, pronunciando no púlpito da Sé de Faro notáveis
sermões de que é exemplo o que aqui pronunciou por ocasião do Natal de 1731:
Sermam
Panegyrico do Glorioso grande, ou mayor Santo S. Joseph fundado no Decreto da Sagrada
Congregaçaõ dos Emminentissimos Cardeaes em 19 de Dezembro de 1726, pelo que se
manda pòr S. Jozé na Ladainha dos Santos depois de S. Joaõ Bautista, prégado na
Sé de Faro, pelo P. M. Fr. Francisco da Cunha, na Festa que lhe faz o Cardial
Pereira. Lisboa, na Officina Augustiniana, 1731.
Embora já sem importância para
o Algarve, o frade eremita calçado dos agostinianos, Francisco da Cunha,
publicou em 1743 a sua mais reputada e extensa obra, cujo interesse literário
excede largamente as anteriores, até pelo facto de na época causar alguma
celeuma contestatória nos meios profanos e da autonomia popular. Aqui vai
citada nos termos em que a descreve o Dicionário
Bibliográfico de Inocêncio da Silva:
Oraçaõ
academica panegyrica histórica encomiástica profano-sacra, pelos felicissimos sucessos
e victoriosas armas da Serenissima Rainha de Bohemia, com a descripçaõ do mesmo
Reyno, e corte de Praga, e das suas victorias do Panaro e Mano, adornada de
varias poesias e muitos versos dos melhores engenhos portuguezes.
Lisboa, na Officina Alvarense, 1743.
Sei que publicou ainda, com o
pseudónimo de Ricardo Fineca Fascunh, que mais não é do que o anagrama de
Francisco Cunha, um opúsculo intitulado:
Relaçam da prodigioza
navegaçam da nao chamada S. Pedro, e S. Joam da Companhia de Macao, por merce
da milagrozissima Imagem de N. S. de Penha de França, com a explicaçam, e
pintura da grande cobra, que se achou na dita nao, e se criou dentro em huma
pipa de agoa..., escrita por hum devoto domestico da mesma Senhora, Ricardo
Fineça Fascunh. Lisboa, na oficina de Jozé da Silva da Natividade, 1743.
Curiosamente, nesse mesmo ano
deu à estampa um outro opúsculo, no mesmo estilo dos anteriores, e de carácter
laudatório e histórico, dedicada à rainha consorte de D. João V, que só por
mera curiosidade passo a citar:
Oraçam
academica, panegyrica, historica, encomiastica, profana-sacra, consagra,
tributa e oferece à mesma soberana e Senhora D. Maria Theresa Augusta,
Christina, Amélia Walburga de Austria / O.M. Fr. Francisco da Cunha
Augustiniano. Lisboa, na Oficina Alvarense, 1743.
E nada mais conheço deste
frade agostiniano, que tenha verdadeiro interesse para o estudo do Algarve ou
que mereça constar na «Algarviana». Como se vê e comprova, apenas publicou
cinco trabalhos, todos eles de inspiração religiosa, cujo interesse e valor histórico-cultural,
se pode considerar muito reduzido.
Para terminar devo acrescentar
que em 1759 há notícia de Frei Francisco da Cunha ainda vivo, ignorando-se onde
e em que ano terá perecido.
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