segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O ensino secundário em Faro no século XIX

 Perguntou-me um aluno como era o ensino secundário em Faro no século XIX. Respondi-lhe que se trata de um assunto algo delicado, porque temos tendência a encará-lo com os olhos e o pensamento actual. Na verdade, não são comparáveis, devido à diferença como se organizava a sociedade e a ordem política. Todavia, é bem certo que a falta de equipamentos escolares e de coordenação entre os diversos níveis de ensino, não facilitaram o acesso e muito menos o prosseguimento do ensino primário para o ensino secundário, encontrando-se nessa circunstância a razão que melhor explica o atraso cultural e o bloqueio socioeconómico da região algarvia nos últimos duzentos anos. A educação até quase aos nossos dias consistia em combater o analfabetismo, pelo que a formação de charneira ao ensino universitário foi descurada até aos anos cinquenta do século XX. O ensino da matemática, é um caso de confrangedor atraso nacional, por ter sido sempre descurado pelo poder central. É essa quanto a mim, uma das razões principais do nosso atraso científico e da nossa falência educativa, em face dos nossos parceiros europeus. Desde o estabelecimento do ensino jesuítico e da implantação da Inquisição, que sempre neste país se deu primazia ao Latim e aos estudos clássicos, em detrimento da Matemática, do experimentalismo (madre das coisas, como dizia Duarte Pacheco Pereira) e da ciência em geral.
Até à implantação definitiva do liberalismo em Portugal, o ensino não era propriamente uma obrigação do Estado. Todavia, antes disso, o Marquês de Pombal criou uma rede de escolas primárias que abarcava todo o país. Eram as chamadas escolas de “aprender a ler, escrever e contar” que, desde então, passaram para a responsabilidade e encargo das autarquias. A maioria delas, sobretudo nas aldeias pobres do interior, encerraram poucos anos depois, reabrindo mais de dois séculos depois, já no tempo da ditadura.
Por isso, o ensino não constituía um encargo público, a não ser o primário, cabendo tradicionalmente à Igreja, ou aos quartéis, a difusão de um ensino mais elevado, e especializado no caso dos militares. Digamos que até à revolução setembrista, em 1836, e ao governo de Passos Manuel, o aparelho educativo encontrava-se desorganizado, desarticulado, e pouco eficiente. Nos conselhos do interior, não existia “a casa da escola”, improvisando-se as instalações paroquiais para esse efeito, e só abriam portas caso houvesse a disponibilidade de um professor, o que era raro. Devemos aos nossos emigrantes no Brasil o benemérito financiamento da construção de escolas destinadas a resgatar do analfabetismo os seus pobres conterrâneos. Nas Beiras, em Trás-os-Montes e, sobretudo, no Minho, conheço dezenas de escolas construídas pelos brasileiros de torna-viagem, verdadeiros mecenas do ensino e da cultura lusíada.

Antiga escola construída em Lagos no âmbito do legado do Conde de Ferreira, para a educação das crianças. Este edifício apresenta uma lápide com a data da sua inauguração, 24 de Março de 1866. Actualmente encontra-se ali instalada a Sociedade Filarmónica Lacobrigense, onde estudam música dezenas de crianças daquela cidade.

Aqui no Algarve, porém, não conheço exemplos semelhantes, a não ser do portuense Conde de Ferreira, que legou a fortuna amealhada para a construção de 90 escolas para os pobres de todo o país. Dessas 90 escolas ainda subsistem 70 edifícios, que conservam a traça original, adaptados a outros fins, geralmente de carácter cultural e educativo. No Algarve só conheci duas escolas, a de Lagos (actual sede da Filarmónica Lacobrigense) e a de Loulé, recentemente demolida.

Postal antigo de Lagos, onde se vê (à esquerda) a antiga escola primária construída com o legado do Conde de Ferreira.  É o mesmo edifício da foto anterior.

No domínio do ensino, a que chamamos hoje secundário, e que no século XIX chamavam preparatório, porque dava acesso à universidade de Coimbra, única existente no país, existiam até ao início da década de 1840, isto é antes da criação do Liceu de Faro (oficialmente instituído em 1851, mas que funcionava a título experimental desde 1846, numas instalações próprias pertencentes ao seminário episcopal), as seguintes “aulas” ou disciplinas, que habilitavam os alunos ao ensino universitário: uma aula de Retórica e outra de Filosofia, ambas em Faro; nove de Latim na cidades e principais vilas. Era tudo o que oficialmente existia. Ora, para entrar na universidade os alunos precisavam de apresentar as suas “habilitações”, isto é, os comprovativos dos seus estudos preparatórios em Latim e Grego, Gramática, Retórica, Filosofia, Aritmética e Geometria, Geografia e História. O aluno só precisava de atestar o seu bom aproveitamento em apenas cinco destas disciplinas preparatórias, sendo que a maioria dos rapazes ao entrar em Coimbra jurava ter frequentado Gramática, Retórica e Filosofia. As outras duas já constituíam uma pré-especialização na vida escolar dos jovens universitários. Segundo os Estatutos da Universidade, o aluno podia matricular-se com a idade mínima de 16 anos, à excepção das Faculdades de Matemática e de Filosofia, cuja fasquia baixava para os 14 anos.
Já que apontei o início da década de quarenta, período marcado pelo Cabralismo, acrescento que o Algarve (já desprovido dos colégios dos jesuítas de Portimão e de Faro, cujos alunos se habilitavam directamente às universidades de Coimbra e de Évora, antes da sua extinção em 1759 por Pombal), apenas possuía 24 escolas de primeiras letras, sediadas nas cidades e vilas, assim como em algumas aldeias, alfabeticamente assim discriminadas: Algoz, Alte, Alvor, Esto, Estombar, Paderne, São Bartolomeu de Messines e São Brás (de Alportel, concelho de Faro) Oficialmente existam também duas escolas femininas de primeiras letras, em Lagos e em Faro, ao que parece ambas pouco frequentadas e com diminutos resultados práticos. No fundo, o aproveitamento geral em todas estas escolas era apontado como escasso e irregular, com parcos equipamentos e reduzida frequência. A razão que as entidades locais, sobretudo autárquicas, apontavam para o insucesso do aparelho educativo era a má remuneração pelo Estado dos professores, que não só auferiam pouco como tinham os seus vencimentos atrasados por longas temporadas. As escolas, como base essencial do progresso, eram no Algarve não só escassas, como eram também improvisadas, desconfortáveis e desprovidas de quaisquer apetrechos didácticos – recursos que tinham de ser providos pela boa vontade e dedicação dos próprios professores. Ora faltando-lhes uma remuneração compatível com a sua função, e nem sequer prestada a tempo e horas, não admira que os professores se sentissem desmotivados, a ponto de abandonarem a escola e o cumprimento das suas funções profissionais.
Planta do castelo de Faro, cuja traça original e os panos de muralha ainda se conservam na íntegralidade histórica. Trata-se de um documento importantíssimo para o estudo da cidade, e para o conhecimento da composição urbana do seu casco histórico.

A única “aula” de Matemática existente no Algarve, funcionava no Regimento de Artilharia de Faro, onde desde há muitas décadas funcionava uma escola especializada no cálculo matemático e na geométrica, destinada em exclusivo à instrução militar. Nela haviam recebido os preciosos ensinamentos da sua especialidade dezenas de jovens, que se distinguiram por todo o país. Nessa escola de matemática dos artilheiros de Faro ensinou, no séc XVIII, o célebre Coronel Theodozio da Silva Rebocho, cujos discípulos tiveram altas classificações, tendo alguns deles feito exame de admissão à Academia da Marinha, onde entraram facilmente e com distinção.
Edifício do Paço Episcopal de Faro, e ao seu lado direito o palacete onde se instalou a Câmara Municipal. Para o lado esquerdo do Paço encontra-se o edifício do antigo Seminário de São José, onde funcionou provisoriamente o primeiro Liceu de Faro em 1846 até 1849, passando depois para outras instalações na Rua do Município. Na foto, vê-se os antigos estudantes do Liceu, trajados com capa e batina, privilégio que lhes foi concedido pelos camaradas da Universidade de Coimbra.
Dessa plêiade de instruendos da escola de Faro merece que aqui se preste o devido destaque à memória do lente da aula do Regimento de Tavira, o brigadeiro do corpo de engenheiros, José Sande de Vasconcellos, e os seus discípulos, João Stuart, Domingos António de Castro, Jacinto Alexandre, José Justino Henrique e Francisco Xavier dos Reis, os quais compunham a equipa que elaborou as primorosas colecções de plantas das praças e fortalezas da costa do Algarve, que se encontram depositadas na Biblioteca Nacional e no Arquivo Histórico da Marinha.

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