segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Benfica-Sporting, farsa em um acto

A propósito do dérbi que se disputou esta semana na capital, entre o Benfica e o Sporting, lembrei-me de trazer aqui à colação dos meus leitores, a existência de um raro folheto, que guardo ciosamente na minha «Algarviana», intitulado Benfica-Sporting – Farsa em um Acto, da autoria de António Augusto dos Santos, editado em 1958 na velha tipografia União, propriedade da diocese de Faro.
O autor, que conheci muito bem, era então um jornalista da velha guarda, culto e inteligente, cavalheiro educado, gentil e sempre bem vestido, ao estilo britânico. Era alto, de recorte atlético, seco de carnes com voz de tenor, que se curvava ou descobria a cabeça, sempre que se cruzava com gente da sua privança. E do seu trato comum, a bem dizer, era só gente grada. O que não era o meu caso, visto ser então um jovem obscuro, ao contrário dele, que era um respeitável ancião. Ainda assim, tínhamos amigos comuns, como o Aníbal Guerreiro, antigo jornalista e um dos mais prestigiados empresários de Faro, o João Leal, hoje decano da imprensa algarvia, o Dr. Joaquim Magalhães, antigo reitor do Liceu, o Dr. Pinheiro da Cruz, professor da Tomás Cabreira, o Brito Figueiras, um gentleman que servia de mestre de cerimónias nos eventos da cidade, e tantos outros, que à memória não afluem neste instante.
O certo é que, por via da nossa frequência nas colunas dos jornais, tornamo-nos amigos com direito a cordiais cumprimentos e breves palavras de circunstância, porque a diferença de idades e estatuto de cidadania faziam-me muito pequeno a seu lado, mais do que a sua estatura física permitia aquilatar.
A única forma que tive de o compensar pela admiração que lhe dedicava, foi ter-lhe atribuído há cerca de dez anos, como membro da Comissão de Toponímia de Faro, uma praceta com o seu nome, algo distante do centro da cidade, é certo, mas ainda assim na freguesia de São Pedro, de que foi devoto e tanto acarinhou enquanto munícipe. A sua biografia, que anexo no final desta breve evocação de António Augusto Santos, escrevi-a para o meu «Dicionário dos Jornalistas e Colaboradores da Imprensa Algarvia», que permanece ainda inédito, e certamente assim permanecerá até ao fim dos meus dias.
António Augusto Santos
Resta-me acrescentar que esta “farsa em um acto” sobre uma suposta final da Taça de Portugal em 1958, não pretendia, segunda as palavras do próprio António Augusto Santos, caricaturar ninguém em particular, e muito menos os clubes em contenda, pelos quais tinha o maior apreço. Apenas escolheu os clubes da capital por serem os mais populares, e os que congregam, ainda hoje, mais adeptos. A peça só tem dois personagens.
Um é material, aqui designado como “T.S.F.”, que se percebe ser um rádio (ou telefonia, como se diz no Algarve), que o cidadão remediado possuía na sala de visitas para ouvir as notícias, as variedades ao almoço, os parodiantes de Lisboa, o folhetim radiofónico, e, aos domingos, o sacramental relato da bola, que entre as 15 e as 17 horas fazia as delícias e arrelias dos bons chefes de família.
O outro é físico, designado como Pedro Lagarto Verdelhão, de 45 anos de idade, identificado no texto simplesmente como “Lagarto”. Sem constituir uma personagem, aparecem também no meio da peça as interjeições da “Família”, que se presume ser a voz da esposa do “Lagarto”, pronunciada numa outra sala da casa, perguntando-lhe o resultado, se foi golo e de quem, ou, quando este grita com maior veemência, mandando-o calar porque o Zéquinha está prestes a pegar no sono. Ainda por cima a “Família” trata-o por “Lagartinho”, o que é de arrancar os cabelos.
A farsa em si, ocupa catorze páginas de um denso diálogo, entre os dois personagens, pronunciado na intimidade das paredes do lar, entre o “Lagarto” que critica a tácita e as escolhas do treinador, que desconfia da verdade desportiva, e que, por fim, vocifera contra o árbitro em desaprovação das suas decisões. Por vezes chama-lhe bandido, gatuno, urso de pelo… até chegar ao ponto de lhe desejar a morte. Como se percebe, o personagem físico é um sportinguista ferrenho, diria antes fanático, que deposita as suas esperanças nos violinos comandados pelo Peyroteo. O Sporting termina a primeira parte a vencer por 3-1, mas na segunda o Benfica, com Arsénio e Corona em destaque, chegou ao empate. Para desespero do Lagarto, que ouve pela rádio as incidências do desafio, o árbitro parece ter sido o culpado do triste desenlace, já que anulou aos 95 minutos um golo ao Sporting, prolongou a contenda até aos 112, altura em que Jesus Correia do Sporting centra para a área e Félix, defesa do Benfica, corta a bola com a mão. Penalti grita o povo, mas o árbitro fez “vista grossa” e deu por encerrada a contenda. O público insurge-se nas bancadas, mas a polícia e a guarda republicana “puseram termo ao conflito distribuindo «mãozinhas» de cavalo à portuguesa”.
Enquanto as equipas descansam por dez minutos até se reatar a partida com um prolongamento, o árbitro faz declarações à rádio para justificar as suas polémicas decisões. Mas, quando o árbitro teve o desplante de confessar à antena: “Neste 2º tempo, o Benfica, sabe… jogou mais”. Aí foi longe de mais, e o “Lagarto” não se conteve, caindo sobre ele a pés juntos esmagando-o numa ânsia de vandalismo: “Ah gatuno que ainda tens arrojo de falar desse modo”. E pronto, acabou-lhe com as válvulas, com o apito e com o pio. O prolongamento e o resultado final é que jamais saberemos, porque a TSF ficou em cacos aos pés do Lagarto.
Frontespício do folheto
Depois de ler esta “farsa” percebi o talento e as intenções do António Augusto Santos, ao caricaturar as dores e o sofrimento mental dos adeptos de futebol, perante as incidências dramáticas do nosso desporto rei, colocadas nas mãos de um único juiz, de que todos desconfiam, quer da competência quer sobretudo da isenção e honestidade. A ironia é um dos principais condimentos literários desta peça, a outra é a crítica exasperada à nossa proverbial desconfiança da integridade moral de quem decide, de quem ajuíza, face à paixão e fanatismo que caracteriza o adepto de futebol. Acrescento, porém, que para as gerações actuais deve ser difícil perceber quem foram os jogadores aqui citados, porque já todos faleceram, embora deva dizer que se fossem hoje atletas do Benfica e do Sporting, seriam dos melhores entre os melhores do mundo. Disso não tenho a menor dúvida.
Termino com esta saborosa descrição do cenário em que decorre a farsa «Benfica-Sporting»:
«Escritório em estilo Peyroteo, com o que há de mais requintado em Azevedo I. Estante, floreiras, cadeiras e secretária em estilo Jesus Correia. Carpete com um grande leão ás listas – o que há de mais Travassos II. Telefonia da marca R.A.D.I.O… . Sobre um sofá, um violino que não é propriamente um Stradivarius, mas uma recordação saudosa da velha orquestra de Alvalade. Albano e os restantes companheiros de equipa, não foram esquecidos. Vemo-los por todos os ângulos do escritório, dispostos aos pares em escalas diversas…»
Ah, já me esquecia de dizer, nesse ano de 1958 quem ganhou a Taça de Portugal foi o meu F. C. do Porto, que derrotou o Benfica por 1-0.
A biografia de António Augusto Santos poderá ser consultada, e descarregada, no meu blogue «Algarve - História e Cultura», através do seguinte link: 
http://algarvehistoriacultura.blogspot.com/2023/01/antonio-augusto-santos-jornalista-poeta.html

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