quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

SERRA, Manuel dos Santos


Faleceu na manhã do dia 29 de Novembro de 2018, no hospital distrital de Faro, aos 92 anos de idade o meu bom e querido amigo Dr. Manuel dos Santos Serra. Foi um dos mais notáveis médicos do Algarve, cuja vida profissional dedicou inteiramente ao bem comum. A qualquer hora do dia ou da noite recebia chamadas para acudir aos seus doentes, nunca deixando de comparecer, mesmo nos sítios mais recônditos do interior algarvio, para onde, nos primórdios da sua vida de "João Semana", se deslocava a cavalo ou, mais tarde, na sua pequena viatura, que por vezes serviu de ambulância nos casos mais urgentes.
Fixou residência e abriu consultório na pitoresca vila de Albufeira, quando ainda não se falava de turismo, mas que o seu espírito visionário já identificava e proclamava aos sete ventos como a Saint-Tropez do Algarve.
Todavia, no início dos anos cinquenta do século passado, quando iniciou a sua carreira médica, Albufeira era ainda uma vila pobre, ignorada e desconhecida no extremo sul do nosso país. E nesses tempos difíceis do pós-guerra, em que a ditadura apertava a vigilância sobre as figuras que mais se distinguiam na sociedade, nomeadamente no cultivo das letras e das artes ou no apoio aos mais desfavorecidos, é lógico que o Dr. Santos Serra foi alvo do escrutínio e da desconfiança salazarista. Não foram, por isso, fáceis os seus primeiros anos de vida profissional, numa sociedade amordaçada pelo medo e pela miséria.
Nas circunstâncias mais difíceis, carenciado de meios de higiene e de protecção ao contágio, dedicou-se durante anos ao combate da tuberculose, que grassava com especial incidência no seio dos lares mais desfavorecidos. Comparecia assiduamente nos bairros pobres, sobretudo dos marítimos, onde estudava o surto das doenças pulmonares, prestando os serviços de assistência médica de forma graciosa, por vezes correndo riscos de contágio durante os períodos mais intensos da tuberculose.
Apesar de todas as perseguições de que foi alvo, conseguiu levar por diante a sua cruzada em prol da saúde e da prestação graciosa de cuidados médicos aos pobres, aos velhos e às crianças, ajudando a Misericórdia de Albufeira a cumprir a sua missão de apoio aos mais carenciados.
Após o 25 de Abril seria nomeado Director do Centro de Saúde de Albufeira, cargo que desempenhou durante 22 anos com grande competência e a maior dedicação, razão pela qual recebeu oficialmente os mais subidos louvores.
Apresentando um dos seus livros, ao lado do poeta e do
presidente da Câmara de Albufeira, ambos já desaparecidos
Como aconteceu com muitas das figuras mais proeminentes da vida nacional, decidiu filiar-se no Partido Socialista, que, diga-se em abono da verdade, ajudara a fundar ainda antes da Revolução dos Cravos. E, sem nunca ter sido propriamente um político, aceitou presidir durante três mandatos à Assembleia Municipal de Albufeira. 
Além de ter sido um grande médico foi também um notável poeta, em meu entender um dos maiores do seu tempo, com uma obra vasta e de grande valor literário, que tive a honra de ressaltar nos vários eventos em que fiz a apresentação dos seus livros. Foi acima de tudo um cidadão exemplar, que muito amou a sua terra adoptiva - Albufeira, merecendo por tudo quanto fez pela saúde pública e pela cultura algarvia, uma homenagem que perpetue a sua memória, nomeadamente a atribuição do seu nome a uma rua, a um prémio literário que glorifique a poesia no Algarve, e se possível ao Centro de Saúde de Albufeira. Esta última sugestão foi já satisfeita pela actual Ministra da Saúde, nos dias imediatos ao falecimento do Dr. Santos Serra, o que me apraz aqui registar.
Resta-me acrescentar que o Dr. Santos Serra, havia-me pedido para fazer no dia 1 de Dezembro de 2018, a apresentação do seu último livro, a ANTOLOGIA POÉTICA - uma selecção, por si elaborada, dos poemas que compunham a sua vasta obra lírica. Recebi na semana anterior ao seu falecimento um exemplar dessa obra, para que pudesse preparar a minha palestra de apresentação. Infelizmente, foi nesse mesmo dia que se realizou o seu funeral. Curvo-me em sua homenagem, com o coração dilacerado, apresentando a sua esposa, seus filhos e netos os meus sinceros e sentidos pêsames.

Aqui deixo a biografia que escrevi sobre Manuel dos Santos Serra, para figurar na ALGARVIANA, se algum dia essa obra vier a ser publicada:
Manuel dos Santos Serra, médico e poeta, nasceu em Silveira, freguesia de Espinhal, concelho de Penela, em 23-1-1926, e faleceu no Hospital de Faro a 29 de Novembro de 2018, aos 92 anos de idade.
Veio com seus pais e irmãos em 1933 para a vila de Albufeira, onde desde então fixou a sua residência, sentindo-se por isso um algarvio de convicção e pura consciência regionalista. Fez a instrução primária em Albufeira, de se transferiu para o Liceu de Faro, concluindo na capital do Algarve os seus estudos secundários. Partiu depois para a Universidade de Coimbra, onde fez parte da Direcção da Associação Académica, concluindo em 1950 o curso de Medicina. Na Lusa Atenas fez amigos para o resto da vida, e nas esquinas da Universidade aprendeu os primeiros rudimentos de contestação ao regime salazarista. Os princípios revolucionários de luta pela Liberdade, pela Igualdade e pelos Direitos Humanos acompanharam-no para o resto da vida, mesmo que por vezes tivesse sofrido a ignomínia da perseguição política.
Admirador da cultura e das Belas Letras, cedo se apaixonou pelas musas e se deixou impressionar pela imagem de Orfeu, que o acompanhou nas horas mortas em que o seu talento se libertava da sisudez científica do médico para se espraiar no sonho, na sensibilidade e no lirismo amoroso do poeta. Dessa paixão pela poesia despontou a sua vontade interveniente na cultura, participando em tertúlias de poetas e literatos, nas quais defendeu sempre os lídimos valores do humanismo, da liberdade e da democracia, até mesmo quando falar dessa temática era quase um crime público.
Na sua especialidade colaborou no «Jornal do Médico» e apesar de muito assoberbado no trabalho clínico, sempre marcou a sua presença, em prosa e em poesia, nas colunas dos jornais regionais, publicando sobretudo crónicas de intervenção política e alguns contos literários. Na imprensa regional algarvia colaborou, entre outros, no «Correio do Sul», «Jornal de Albufeira», «Notícias de Albufeira», «Jornal Escrito», etc.
Assumidamente desafecto ao salazarismo, sofreu o acostumado ostracismo institucional que o impediu de dar melhor contributo à sociedade algarvia. Após a «Revolução de Abril» foi, durante três mandatos (1983-87, 1992-96, 1997-2001), Presidente da Assembleia Municipal de Albufeira e director do Centro de Saúde de Albufeira desde 1975 a 1997.
Dedicando um dos seus livros ao escritor Manuel Ribeiro
Relativamente à sua obra, podemos dizer que no primeiro livro, Romance Residual, nota-se uma espécie de decantação de flashes vivenciais para curtas sintetizações poéticas, sem peias estilísticas nem regras de composição. No segundo livro, A Desordem da Harmonia, assistimos a um apuro da forma e a uma beleza convulsiva na imagética lírica, sentindo-se um certo amadurecimento do próprio poeta. No terceiro livro, Mosaico de Palavras Oblíquas, os poemas, ainda que livres e fluidos, emanam duma luz interior, como sonhos peregrinos que evidenciam uma personalidade em busca de um ideal maior ou de um ente supremo. No seu mais recente livro, Sobreposições, nota-se uma certa evolução na sua poesia para níveis mais elevados, seguindo modelos estéticos cada vez mais próximos dos figurinos clássicos.
Em toda a sua obra o Dr. Manuel dos Santos Serra mostra-se possuidor de um espírito esclarecido e erudito, mas parece algo inconsciente da inatingível mensagem da sua poesia. Entre o real e a utopia espraiam-se os versos, por vezes longos, por vezes curtos, sem respeitar cânones nem limites. A poesia acontece... livre.
Pertence à Ordem dos Médicos, à Associação Portuguesa de Escritores, à Associação dos Escritores Médicos, ao Círculo Teixeira Gomes, à Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve, e à Associação dos Amigos de Albufeira.
Da sua lista de obras fazem parte os seguintes títulos:
Romance Residual, 1991; A Desordem da Harmonia, 1992; Mosaico de Palavras Oblíquas, 1997, Sobreposições, 2001; À Sombra do Silêncio, 2005; Albufeira 1950 – monografia médica, 2007; O Olhar das Palavras, 2007; Os Labirintos da Memória, 2009; Pomar de Pedras, 2011; Miradouro do Tempo, 2013; Retalhos de Cidadania, 2013; Navio Ancorado ao Sol, 2015; Arquipélago de Vozes, 2015; As Margens do Rio de Horas, 2017 e Antologia Poética, 2018. A partir de 2005 todos os seus livros foram editados exclusivamente pela editora Caleidoscópio.
Acerca de Manuel dos Santos Serra publiquei no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol. V, pp. 495-496, a respectiva notícia biográfica, cujos informes naturalmente aqui se aproveitam.

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