Faleceu
na manhã do dia 29 de Novembro de 2018, no hospital distrital de Faro, aos 92
anos de idade o meu bom e querido amigo Dr. Manuel dos Santos Serra. Foi um dos
mais notáveis médicos do Algarve, cuja vida profissional dedicou inteiramente
ao bem comum. A qualquer hora do dia ou da noite recebia chamadas para acudir
aos seus doentes, nunca deixando de comparecer, mesmo nos sítios mais
recônditos do interior algarvio, para onde, nos primórdios da sua vida de
"João Semana", se deslocava a cavalo ou, mais tarde, na sua pequena
viatura, que por vezes serviu de ambulância nos casos mais urgentes.
Fixou
residência e abriu consultório na pitoresca vila de Albufeira, quando ainda não
se falava de turismo, mas que o seu espírito visionário já identificava e
proclamava aos sete ventos como a Saint-Tropez do Algarve.
Todavia,
no início dos anos cinquenta do século passado, quando iniciou a sua carreira
médica, Albufeira era ainda uma vila pobre, ignorada e desconhecida no extremo
sul do nosso país. E nesses tempos difíceis do pós-guerra, em que a ditadura
apertava a vigilância sobre as figuras que mais se distinguiam na sociedade,
nomeadamente no cultivo das letras e das artes ou no apoio aos mais
desfavorecidos, é lógico que o Dr. Santos Serra foi alvo do escrutínio e da
desconfiança salazarista. Não foram, por isso, fáceis os seus primeiros anos de
vida profissional, numa sociedade amordaçada pelo medo e pela miséria.
Nas
circunstâncias mais difíceis, carenciado de meios de higiene e de protecção ao
contágio, dedicou-se durante anos ao combate da tuberculose, que grassava com
especial incidência no seio dos lares mais desfavorecidos. Comparecia
assiduamente nos bairros pobres, sobretudo dos marítimos, onde estudava o surto
das doenças pulmonares, prestando os serviços de assistência médica de forma
graciosa, por vezes correndo riscos de contágio durante os períodos mais
intensos da tuberculose.
Apesar
de todas as perseguições de que foi alvo, conseguiu levar por diante a sua
cruzada em prol da saúde e da prestação graciosa de cuidados médicos aos
pobres, aos velhos e às crianças, ajudando a Misericórdia de Albufeira a
cumprir a sua missão de apoio aos mais carenciados.
Após o 25 de Abril seria nomeado Director do Centro de Saúde de Albufeira, cargo que desempenhou durante 22 anos com grande competência e a maior dedicação, razão pela qual recebeu oficialmente os mais subidos louvores.
Apresentando um dos seus livros, ao lado do poeta e do presidente da Câmara de Albufeira, ambos já desaparecidos |
Como aconteceu com muitas das figuras mais proeminentes da vida nacional, decidiu filiar-se no Partido Socialista, que, diga-se em abono da verdade, ajudara a fundar ainda antes
da Revolução dos Cravos. E, sem nunca ter sido propriamente um político, aceitou presidir durante três mandatos à Assembleia Municipal
de Albufeira.
Além de ter sido um grande médico foi também um notável poeta, em
meu entender um dos maiores do seu tempo, com uma obra vasta e de grande valor
literário, que tive a honra de ressaltar nos vários eventos em que fiz a
apresentação dos seus livros. Foi acima de tudo um cidadão exemplar, que muito
amou a sua terra adoptiva - Albufeira, merecendo por tudo quanto fez pela saúde
pública e pela cultura algarvia, uma homenagem que perpetue a sua memória,
nomeadamente a atribuição do seu nome a uma rua, a um prémio literário que
glorifique a poesia no Algarve, e se possível ao Centro de Saúde de Albufeira.
Esta última sugestão foi já satisfeita pela actual Ministra da Saúde, nos dias
imediatos ao falecimento do Dr. Santos Serra, o que me apraz aqui registar.
Resta-me
acrescentar que o Dr. Santos Serra, havia-me pedido para fazer no dia 1 de
Dezembro de 2018, a apresentação do seu último livro, a ANTOLOGIA POÉTICA - uma
selecção, por si elaborada, dos poemas que compunham a sua vasta obra lírica.
Recebi na semana anterior ao seu falecimento um exemplar dessa obra, para que
pudesse preparar a minha palestra de apresentação. Infelizmente, foi nesse mesmo
dia que se realizou o seu funeral. Curvo-me em sua homenagem, com o coração dilacerado,
apresentando a sua esposa, seus filhos e netos os meus sinceros e sentidos
pêsames.
Aqui
deixo a biografia que escrevi sobre Manuel dos Santos Serra, para figurar na
ALGARVIANA, se algum dia essa obra vier a ser publicada:
Manuel
dos Santos Serra, médico e poeta, nasceu em Silveira, freguesia de Espinhal,
concelho de Penela, em 23-1-1926, e faleceu no Hospital de Faro a 29 de
Novembro de 2018, aos 92 anos de idade.
Veio
com seus pais e irmãos em 1933 para a vila de Albufeira, onde desde então fixou
a sua residência, sentindo-se por isso um algarvio de convicção e pura
consciência regionalista. Fez a instrução primária em Albufeira, de se
transferiu para o Liceu de Faro, concluindo na capital do Algarve os seus
estudos secundários. Partiu depois para a Universidade de Coimbra, onde fez
parte da Direcção da Associação Académica, concluindo em 1950 o curso de
Medicina. Na Lusa Atenas fez amigos para o resto da vida, e nas esquinas da
Universidade aprendeu os primeiros rudimentos de contestação ao regime
salazarista. Os princípios revolucionários de luta pela Liberdade, pela
Igualdade e pelos Direitos Humanos acompanharam-no para o resto da vida, mesmo
que por vezes tivesse sofrido a ignomínia da perseguição política.
Admirador
da cultura e das Belas Letras, cedo se apaixonou pelas musas e se deixou
impressionar pela imagem de Orfeu, que o acompanhou nas horas mortas em que o
seu talento se libertava da sisudez científica do médico para se espraiar no
sonho, na sensibilidade e no lirismo amoroso do poeta. Dessa paixão pela poesia
despontou a sua vontade interveniente na cultura, participando em tertúlias de
poetas e literatos, nas quais defendeu sempre os lídimos valores do humanismo,
da liberdade e da democracia, até mesmo quando falar dessa temática era quase
um crime público.
Na
sua especialidade colaborou no «Jornal do Médico» e apesar de muito assoberbado
no trabalho clínico, sempre marcou a sua presença, em prosa e em poesia, nas
colunas dos jornais regionais, publicando sobretudo crónicas de intervenção
política e alguns contos literários. Na imprensa regional algarvia colaborou,
entre outros, no «Correio do Sul», «Jornal de Albufeira», «Notícias de Albufeira»,
«Jornal Escrito», etc.
Assumidamente
desafecto ao salazarismo, sofreu o acostumado ostracismo institucional que o
impediu de dar melhor contributo à sociedade algarvia. Após a «Revolução de
Abril» foi, durante três mandatos (1983-87, 1992-96, 1997-2001), Presidente da
Assembleia Municipal de Albufeira e director do Centro de Saúde de Albufeira
desde 1975 a 1997.
Dedicando um dos seus livros ao escritor Manuel Ribeiro |
Relativamente
à sua obra, podemos dizer que no primeiro livro, Romance Residual, nota-se uma
espécie de decantação de flashes vivenciais para curtas sintetizações poéticas,
sem peias estilísticas nem regras de composição. No segundo livro, A Desordem
da Harmonia, assistimos a um apuro da forma e a uma beleza convulsiva na
imagética lírica, sentindo-se um certo amadurecimento do próprio poeta. No
terceiro livro, Mosaico de Palavras Oblíquas, os poemas, ainda que livres e
fluidos, emanam duma luz interior, como sonhos peregrinos que evidenciam uma
personalidade em busca de um ideal maior ou de um ente supremo. No seu mais
recente livro, Sobreposições, nota-se uma certa evolução na sua poesia para
níveis mais elevados, seguindo modelos estéticos cada vez mais próximos dos
figurinos clássicos.
Em
toda a sua obra o Dr. Manuel dos Santos Serra mostra-se possuidor de um
espírito esclarecido e erudito, mas parece algo inconsciente da inatingível
mensagem da sua poesia. Entre o real e a utopia espraiam-se os versos, por
vezes longos, por vezes curtos, sem respeitar cânones nem limites. A poesia
acontece... livre.
Pertence
à Ordem dos Médicos, à Associação Portuguesa de Escritores, à Associação dos
Escritores Médicos, ao Círculo Teixeira Gomes, à Associação dos Jornalistas e
Escritores do Algarve, e à Associação dos Amigos de Albufeira.
Da
sua lista de obras fazem parte os seguintes títulos:
Romance Residual, 1991; A Desordem da Harmonia, 1992; Mosaico de Palavras Oblíquas, 1997, Sobreposições, 2001; À Sombra do Silêncio, 2005; Albufeira
1950 – monografia médica, 2007; O
Olhar das Palavras, 2007; Os
Labirintos da Memória, 2009; Pomar de
Pedras, 2011; Miradouro do Tempo,
2013; Retalhos de Cidadania, 2013; Navio Ancorado ao Sol, 2015; Arquipélago de Vozes, 2015; As Margens do Rio de Horas, 2017 e Antologia Poética, 2018. A partir de 2005
todos os seus livros foram editados exclusivamente pela editora Caleidoscópio.
Acerca
de Manuel dos Santos Serra publiquei no Dicionário Cronológico de Autores
Portugueses, vol. V, pp. 495-496, a respectiva notícia biográfica, cujos
informes naturalmente aqui se aproveitam.
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