quarta-feira, 12 de agosto de 2009

20 livros de Ferradeira de Brito


José Carlos Vilhena Mesquita *

A vida é feita de experiências e para tudo existe uma primeira vez, com que nos defrontamos com o desconhecido, num desafio à coragem e à perseverança, num apelo ao destemor da nossa personalidade e da nossa inteligência. Não foi, porém, assim que me senti ou que pensei, quando de bom grado aceitei o convite para apresentar estes 20 livros de Ferradeira de Brito. Mas é assim que me sinto agora, consciente da leviandade que constitui o facto de ter aceitado tamanho desafio. A coragem com que de imediato me disponibilizei para apresentar os livros, falece-me porém agora, no momento em que dela mais necessito. É a força da consciência a fazer jus à minha irreflectida e muito imprudente anuência à hercúlea tarefa de apresentar 20 livros numa única sessão pública. A tudo isso acresce ainda a criteriosa atenção com que me escuta esta numerosa e prestigiada assembleia, na qual vejo alguns escritores movidos talvez pela curiosidade de testemunharem de um acto singular, nunca antes presenciado não só no Algarve como em todo o país.
Convenhamos que publicar 20 livros de uma assentada é acima de tudo um acto de coragem, de um autor que pretende marcar uma posição, não só pela firme evidência do seu talento e da sua polivalência literária, como ainda pela singularidade artística do seu gesto. Parece um golpe de marketing publicar 20 livros de uma só vez. Mas não. Trata-se apenas de um gesto de arte, uma manifestação da mais pura e inocente vontade de criação artística. Não se trata de uma promoção pessoal e muito menos duma estratégia comercial, ou não estivéssemos nós num país em que os hábitos de leitura são baixíssimos, como diminutos são também os índices de consumo cultural. O livro no nosso país é um produto de última necessidade. Por isso publicar 20 livros é um gesto de coragem, uma expressão de Arte e uma aventura editorial.
Apresentá-los a todos numa sessão pública não é fácil, digamos mesmo que é humanamente impossível... Começando pelo autor, importa dizer que o conheci em 1998, tendo constatado que é uma pessoa de fina sensibilidade cultural e estética, muito interessado em colaborar nas iniciativas que pudessem contribuir para o engrandecimento da sua cidade natal. Porém, apercebi-me logo do seu coração sofredor, macerado pelo desgosto de ter perdido um filho na flor da idade, sentindo-se a partir daí como um naufrago, solitário e triste, sem esperança de sobreviver incólume às tempestades da vida. Verifiquei depois que a poesia, emergente da dor que lhe corroía a alma, despontava-lhe espontânea, sincera, dolente e profunda, como uma âncora a que o naufrago de outrora se agarrava agora para escapar aos negrumes da tristeza que lhe devorava o espírito. Apoiado e incentivado pelo poeta Tito Olívio – a quem os mais próximos chamam Mestre, na mais fiel tradição humanista – acolheu-se ao convívio da Tertúlia Hélice, onde tem pontificado não só pela sua assiduidade, como também pela sua produtiva contribuição poética. Começou por escrever quadras, no mais genuíno sentimento popular, como uma espécie de humilde tentame de quem não se sente com a eloquência necessária para professar o culto de Orfeu. Mas fê-lo com tão surpreendente qualidade filosófica, talvez por inspiração aleixiana, que logo o “Mestre” o aconselhou a publicá-las em livro. Foi assim que no ano 2000 surgiu o seu primeiro livro, sugestivamente intitulado Minha Voz, a voz do povo. Tive nessa altura, tal como agora, a honra de ter apresentado a obra na já inexistente Livraria Odisseia, perante numerosa assistência.
Os escolhos da vida impediram-no todavia de continuar a publicar de uma forma mais constante a sua vasta e relevante obra poética. Acompanhei esses anos a par e passo, comungando não só das ilusões como também dos frustrantes desapontamentos, suscitados pelo alheamento a que as instituições responsáveis votavam os autores locais, dando todo o apoio, financeiro e logístico, aos que de Lisboa, com o ar superior da sua emproada soberba, nos vêem tratar como inferiores e provincianos. Quantas vezes ouvi na tertúlia os queixumes de natural repúdio contra essa espécie de colonialismo cultural a que temos estado sujeitos. Vivemos ainda hoje debaixo do centralismo, ditatorial e castrador, que caracterizou o regime anterior, cujos defeitos estranhamente continuamos a imitar. Tarda em surgir no horizonte político o verdadeiro libertador desta opressão alisbonada a que se tem submetido a cultura algarvia.
Apesar de tudo isso, e remando sempre contra a maré, Ferradeira de Brito foi dando a público, nos órgãos regionais, algumas das suas produções líricas, principalmente no «Jornal Escrito» e no «Nó Vital» fundados pela AJEA para dar maior repercussão aos escritores algarvios. As suas produções poéticas e os seus textos dramatúrgicos foram-se acumulando até hoje, em que felizmente puderam ver a luz da estampa.
Não me podendo alongar nas apreciações críticas sobre cada um deles, decidi reparti-los pelos géneros literários em que se inscrevem. Assim, começando pela difícil arte do soneto, há que realçar a publicação de sete livros, ou seja, mais de um terço da sua obra insere-se no estilo mais clássico do lirismo lusíada, no qual Sá de Miranda, Camões e Bocage foram os expoentes máximos. O primeiro destes sete livros intitula-se Tempos do meu tempo, uma espécie de auto-retrato poético em que o autor enaltece a terra-mãe, recordando a sua mocidade e os seus sonhos de rapaz, até se aperceber que na marcha lenta dos instantes em que a felicidade lhe iluminou o caminho, também os desgostos lhe enlutaram a alma, branqueando-lhe os cabelos e enrugando-lhe as faces. Seguem-se outros títulos, como O Brilho da Alma, um conjunto de sonetos intimistas a merecer leitura atenta. A mesma atenção merecem os livros Vidas da Minha Vida e de Flores do Olimpo, no qual distingo o soneto «Pétalas Mortas», que considero do mais puro e fino quilate estético. Nos livros Desbravar do Sonho e Pedaços de Vidas, observamos a dor do poeta que lancinantemente sente como seu o sofrimento alheio, num mundo cada vez mais insensível e egoísta. Ainda no mesmo âmbito, um particular realce para o livro Canto Lírico, pela singularidade de comportar duas coroas de sonetos, isto é, dois conjuntos de catorze sonetos subordinados a um tema (neste caso, Amor e Coração) nos quais o último verso de cada soneto é igual ao verso do soneto seguinte, sendo o último de todos igual ao primeiro, formando assim um círculo de relações poéticas muito difícil de estabelecer.
O género mais popular e mais querido dos algarvios é a quadra, espécie de baptismo poético de Ferradeira de Brito ao regressa pontualmente como recreação da alma. Nesse estilo inserem-se quatro livros. Começo por Alma, Coração e Mágoa, que tal como o título indica descrevem sentimentos e emoções, por vezes tristes e amargos, quase todos de uma profunda melancolia, mais filosófica do popular. O livro Rosas do Meu Jardim, é mais alegre e positivo ainda que nunca deixe de ser sentencioso e bom conselheiro, ao jeito das tradições mais peculiares deste género poético. Segue-se-lhe Povo Meu Povo, que, como o título deixa transparecer, foi concebido ao jeito popular, com humor, ritmo e musicalidade, numa simbiose rimática muito agradável e prazenteira. Por fim, o livro Enquadrando a Vida, contém um misto de quadras alegres e joviais com outras mais judiciosas e de crítica acerada, dirigidas aos instalados e aos poderosos da política, que só pensam nos seus interesses descurando o bem público e o fraternalismo social. No computo dos quatro livros apuramos um total de 544 quadras, o que convenhamos não está ao alcance de todos os poetas, sabendo nós que as ideias nelas contidas raramente se assemelham ou se repetem, quer na estrutura rítmica quer no conteúdo da mensagem.
No género da poesia livre inserem-se mais quatro livros. Comecemos pelas Rimas Musicais, que seguem os modelos tradicionais da canção popular, repartindo-se os seus versos entre cinco e oito sílabas. São muito interessantes e fáceis de musicar, sobretudo as que têm no máximo vinte versos. O livro seguinte, Poesia Desperta, é muito mais elevado no seu conteúdo filosófico, inscrevendo-se por isso no género lírico; chamo a atenção para o poema intitulado «A Teia» que é do melhor que conheço no autor. O livro Palavras Coloridas, é semelhante ao anterior, mas mais positivo, mais apaixonado e menos depressivo. Por fim, Giestas e Rosmaninho, que tal como o título indica, tem uma inspiração mais popular e naturalista do que os anteriores, sendo que em todos eles é o parnasianismo, na sua expressão mais elevada, que os distingue e melhor diferencia no conjunto da obra de Ferradeira de Brito.
Por fim, há dois livros de poesia que se desligam do tronco comum das quadras e dos sonetos. O primeiro intitula-se Meu Canto Meu Pranto, é um livro de sextilhas muito curiosas, cheias de vida e de ritmo, que sem deixarem o classicismo que as inspira, tem um leve toque popular que lhes dá a alma e o sabor da tradição algarvia. O outro, Sabor a Terra, é um exercício de paciência e de inspiração poética, pois que contém dezoito poemas obrigados a mote, cuja concepção não é tarefa fácil, mesmo para os poetas mais experimentados.
Termino com os livros de teatro, que são três, sobre os quais muito haveria para dizer se a tanto nos disponibilizasse o tempo. O primeiro intitula-se O Poço, e tem um enquadramento muito regionalista, passado entre mareantes e agricultores segundo creio da freguesia do Montenegro. O segundo intitula-se O Boato, e refere-se àqueles primeiros tempos da revolução de Abril, em que o país estava em constante remodelação política. O melhor de todos os livros é O Milagre do Mar, uma obra que merece ser levada à cena talvez no nosso teatro municipal com uma companhia de actores profissionais que saibam expressar a qualidade regionalista da obra.



* Resumo do texto de apresentação pronunciado na Biblioteca Municipal de Faro

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