José Carlos Vilhena Mesquita
Em tempos afirmei que o livro é uma espécie de elixir contra a impermanência da vida. Sustento ainda essa convicção. Creio que o livro, verdadeira fonte de vida, mágico objecto de culto e pedra angular da civilização humana, constitui a única forma de perpetuar a existência e de combater o esquecimento, a que inexoravelmente nos parece condenar o insondável devir do tempo.
Todas as culturas, filosofias e credos, legaram à posteridade a sua mensagem materializada sob a forma de livro, ainda que esse livro se pudesse revestir de diferentes configurações, diversos sentidos e distintas designações. Desde o papiro hierático da antiguidade clássica, passando pelo pergaminho medieval até à ocidentalização do papel, o objectivo do livro foi sempre o mesmo: comunicar o pensamento, transmitir o conhecimento e legar aos vindouros a herança da História. A transformação do saber e a comunhão dos mundos operou-se através da divulgação do livro, como objecto transmissor da memória e do conhecimento. Devemos a Gutemberg a passagem do saber regional para a mundialização da ciência.
Podemos hoje afirmar sem rebuço que não há culturas superiores nem civilizações desenvolvidas sem a popularização do livro. Entendamo-nos de uma vez por todas, o livro é o melhor e mais rentável investimento das sociedades modernas, pois que é o garante da conservação dos alicerces da História de um povo e da manutenção dos seus genuínos padrões culturais.
Por isso, saudamos vivamente a iniciativa da Câmara Municipal de Aljezur pelas edições que tem vindo a patrocinar, quer sejam de promoção e divulgação das suas potencialidades turísticas, do seu património arquitectónico e da sua notabilíssima herança histórico-cultural, quer sejam do intrínseco talento literário de alguns dos seus munícipes, que são naturalmente os obreiros e os veiculadores da autenticidade cultural do povo aljezurense. São já várias as obras que poderíamos trazer à colação. De entre todas merecem destaque as obras de Mestre Emmanuel Correia, os livros de poemas de Arselino Correia e os magníficos álbuns de João Mariano, que sendo de entre todos o mais jovem, é sem sombra para dúvidas, uma das mais prestigiadas figuras artísticas de Aljezur.
A razão que justifica a minha presença na lindíssima vila de Aljezur, é mais uma vez a publicação de uma obra literária, que merecendo a chancela do município reúne em si a responsabilidade de o representar no contexto da requintada, exigente e mui nobre poesia algarvia. A terra que une este povo foi berço de grandes vates da cultura árabe e da civilização cristã, permanecendo na memória de todos as notabilíssimas obras de João de Deus, Bernardo de Passos, João Lúcio, Cândido Guerreiro, Júlio Dantas, António Aleixo, António Pereira, Emiliano da Costa, João Brás, Vicente Campinas, e tantos outros.
Não é Aljezur um alfobre de poetas eruditos que se tenham celebrizado na literatura algarvia. Logicamente a isso não o permitiu a sua dimensão económica e o escasso aparelho educacional a que tiveram acesso os seus laboriosos habitantes. São os condicionalismos da interioridade e a factura não saldada de um passado que não vale a pena dissecar. Está enterrado na poeira da história. Agora há que olhar para o futuro. E o futuro está nos valores que possuímos e na massa crítica que temos, ainda que a muitos possa parecer insuficiente ou demasiado humilde para os altos voos a que todos nos desejaríamos alcandorar. Os homens valem pela honra dos princípios que defendem e pela forma digna e leal como se batem por eles. A poesia é uma das formas mais elevadas de propugnar pelos sublimes ideais da liberdade, da igualdade, da solidariedade, da paz, da fraternidade e do amor.
São esses valores que aqui vemos estampados na obra de Ernesto Silva. De uma forma simples mas elevada, sem falsas erudições nem balofos pretensiosismos intelectuais, o autor construiu ao longo de quarenta e cinco anos uma verdadeira girândola poética, versando as mais diversificadas temáticas em singelos poemas de um inebriante perfume naturalista e duma esfuziante musicalidade popular.
Este é o seu livro de estreia. É mais um filho a juntar à sua prole, já de si distinta e mui artística, alicerçada num talento que ninguém ousa contestar. Conhecido como um mágico do barro, criador de incomparáveis figuras místicas – quem não admira os seus Cristos na cruz de ascético enlevo divino ou a recriação da docilidade animalista em frágeis bonecos que deliciam as mais inocentes crianças – Ernesto Silva revela-se agora como um escultor de palavras, um barrista das metáforas, das emoções e sentimentos mais profundos, numa expressividade que desce até aos limites da compreensão popular. Os grandes apreciadores de arte, que viam nas obras de Ernesto Silva e na inseparável Zabel Moita, o expoente da popular tradição dos barristas portugueses, podem agora enriquecer as suas colecções com este belo livro de poemas a que deu o sugestivo título de A Minha Rua, essa espécie de cordão umbilical que nos prende ao lar e à terra que nos viu nascer. Não podia ser mais criativo nem mais sugestivo. A nossa rua nunca se esquece, porque foi através dela que se nos abriram as portas da vida e nos confrontamos com os outros, percebendo rapidamente que a existência humana se espraia pelas artérias da convivência e do mútuo entendimento.
O livro de Ernesto Silva é, nesse sentido, paradigmático, porque ao longo de pouco mais de centena e meia de poemas consegue transmitir, de forma simples e ao jeito popular, os valores mais sublimes sob os quais deveria alicerçar-se a sociedade moderna. Por vezes duvidamos que assim seja, tão desencantados estamos já desta competitiva e materializada sociedade, em que tudo é ambição e egoísmo. Mas para Ernesto Silva, nesta redoma de Aljezur, o mundo conserva ainda a pureza das cores deste imaculado património ambiental que o rodeia. As raízes da família e a coesão da prole são fulcrais na sua vida, como aliás se deixa transparecer nos poemas que dedica aos pais, aos avós, à esposa e aos filhos. A expressividade sentimental atinge neles um raro nível de transparência emocional. Também profundos e sentidos são os poemas que dedica à impermanência da vida, aos entes que partiram, à sufocante solidão dos que ficaram privados da saúde ou dos sentimentos fulcrais da vida, como é o caso do amor, da liberdade, da amizade, da solidariedade ou da fraternidade. Mais vivos e alegres são os que dedica aos amigos e figuras que marcaram a sua vivência social. Da mesma estirpe se podem considerar os poemas etno-antropológicos em que retracta a vindima, a pesca, a charrua agrícola, aos quais se juntam outros que versejam sobre os Santos Populares, a Páscoa, o Carnaval, o Presépio, as Marchas Populares etc. Na sua expressividade poética chega a ser algo sorumbático quando disserta sobre coisas mais filosóficas e mais aceradamente críticas, voltando a aproximar-se do nível prazenteiro e jovial que todos lhe conhecem nos poemas naturalistas que dedica às coisas da terra e sobretudo às aves marinhas. Porque acima de tudo Ernesto Silva é um homem que preza o convívio e o companheirismo, com aquela graça e espírito irónico que tanto caracteriza o povo algarvio.
Por fim merece um destaque especial os poemas de carácter localista, com um ênfase muito especial e compreensível na vila de Aljezur que canta e enaltece com as mais vivas cores e na musicalidade peculiar dos seus versos. A vila de Odeceixe, a praia da Arrifana e da Amoreira, são objecto da sua reflexão. Mas também o são as cidades de Loulé, de Lagos e Lagoa, ou as distantes localidades de Vila Nova de Cerveira, Foz do Côa, Mirandela, Vouzela, Lanhelas, Gondomar, Idanha a Nova, Alter do Chão, Rio Maior, Santarém, Açores, etc. Terras essas que visitou como prémio do seu talento, ao dedicar-lhes belos e graciosos poemas, que poderiam ser aproveitados como retratos poéticos em folhetos de divulgação turística. E que belas são essas localidades, pelas quais passeei a minha juventude e aonde ainda volto com a família, como é o caso de Vila Nova de Cerveira, cuja autarquia soube de uma forma estrategicamente turística alcandorar-se a capital da arte moderna portuguesa.
Não quero roubar mais tempo aos que estoicamente ainda me escutam, sem concluir que o lirismo de Ernesto Silva, inspiradamente popular, revela uma enorme grandeza de carácter, uma humildade e uma simplicidade que emociona o mais incauto leitor, por vezes caldeada nalguma nostalgia, logo quebrada pela fina ironia que povoa os seus versos, num estilo que sem se despegar da alma popular atinge por vezes uma inusitada elevação filosófica.
Resta-me, mais uma vez, congratular a autarquia por saber revelar à posteridade os valores literários e culturais que engrandecem sobremaneira esta bela e encantadora vila de Aljezur.
Em tempos afirmei que o livro é uma espécie de elixir contra a impermanência da vida. Sustento ainda essa convicção. Creio que o livro, verdadeira fonte de vida, mágico objecto de culto e pedra angular da civilização humana, constitui a única forma de perpetuar a existência e de combater o esquecimento, a que inexoravelmente nos parece condenar o insondável devir do tempo.
Todas as culturas, filosofias e credos, legaram à posteridade a sua mensagem materializada sob a forma de livro, ainda que esse livro se pudesse revestir de diferentes configurações, diversos sentidos e distintas designações. Desde o papiro hierático da antiguidade clássica, passando pelo pergaminho medieval até à ocidentalização do papel, o objectivo do livro foi sempre o mesmo: comunicar o pensamento, transmitir o conhecimento e legar aos vindouros a herança da História. A transformação do saber e a comunhão dos mundos operou-se através da divulgação do livro, como objecto transmissor da memória e do conhecimento. Devemos a Gutemberg a passagem do saber regional para a mundialização da ciência.
Podemos hoje afirmar sem rebuço que não há culturas superiores nem civilizações desenvolvidas sem a popularização do livro. Entendamo-nos de uma vez por todas, o livro é o melhor e mais rentável investimento das sociedades modernas, pois que é o garante da conservação dos alicerces da História de um povo e da manutenção dos seus genuínos padrões culturais.
Por isso, saudamos vivamente a iniciativa da Câmara Municipal de Aljezur pelas edições que tem vindo a patrocinar, quer sejam de promoção e divulgação das suas potencialidades turísticas, do seu património arquitectónico e da sua notabilíssima herança histórico-cultural, quer sejam do intrínseco talento literário de alguns dos seus munícipes, que são naturalmente os obreiros e os veiculadores da autenticidade cultural do povo aljezurense. São já várias as obras que poderíamos trazer à colação. De entre todas merecem destaque as obras de Mestre Emmanuel Correia, os livros de poemas de Arselino Correia e os magníficos álbuns de João Mariano, que sendo de entre todos o mais jovem, é sem sombra para dúvidas, uma das mais prestigiadas figuras artísticas de Aljezur.
A razão que justifica a minha presença na lindíssima vila de Aljezur, é mais uma vez a publicação de uma obra literária, que merecendo a chancela do município reúne em si a responsabilidade de o representar no contexto da requintada, exigente e mui nobre poesia algarvia. A terra que une este povo foi berço de grandes vates da cultura árabe e da civilização cristã, permanecendo na memória de todos as notabilíssimas obras de João de Deus, Bernardo de Passos, João Lúcio, Cândido Guerreiro, Júlio Dantas, António Aleixo, António Pereira, Emiliano da Costa, João Brás, Vicente Campinas, e tantos outros.
Não é Aljezur um alfobre de poetas eruditos que se tenham celebrizado na literatura algarvia. Logicamente a isso não o permitiu a sua dimensão económica e o escasso aparelho educacional a que tiveram acesso os seus laboriosos habitantes. São os condicionalismos da interioridade e a factura não saldada de um passado que não vale a pena dissecar. Está enterrado na poeira da história. Agora há que olhar para o futuro. E o futuro está nos valores que possuímos e na massa crítica que temos, ainda que a muitos possa parecer insuficiente ou demasiado humilde para os altos voos a que todos nos desejaríamos alcandorar. Os homens valem pela honra dos princípios que defendem e pela forma digna e leal como se batem por eles. A poesia é uma das formas mais elevadas de propugnar pelos sublimes ideais da liberdade, da igualdade, da solidariedade, da paz, da fraternidade e do amor.
São esses valores que aqui vemos estampados na obra de Ernesto Silva. De uma forma simples mas elevada, sem falsas erudições nem balofos pretensiosismos intelectuais, o autor construiu ao longo de quarenta e cinco anos uma verdadeira girândola poética, versando as mais diversificadas temáticas em singelos poemas de um inebriante perfume naturalista e duma esfuziante musicalidade popular.
Este é o seu livro de estreia. É mais um filho a juntar à sua prole, já de si distinta e mui artística, alicerçada num talento que ninguém ousa contestar. Conhecido como um mágico do barro, criador de incomparáveis figuras místicas – quem não admira os seus Cristos na cruz de ascético enlevo divino ou a recriação da docilidade animalista em frágeis bonecos que deliciam as mais inocentes crianças – Ernesto Silva revela-se agora como um escultor de palavras, um barrista das metáforas, das emoções e sentimentos mais profundos, numa expressividade que desce até aos limites da compreensão popular. Os grandes apreciadores de arte, que viam nas obras de Ernesto Silva e na inseparável Zabel Moita, o expoente da popular tradição dos barristas portugueses, podem agora enriquecer as suas colecções com este belo livro de poemas a que deu o sugestivo título de A Minha Rua, essa espécie de cordão umbilical que nos prende ao lar e à terra que nos viu nascer. Não podia ser mais criativo nem mais sugestivo. A nossa rua nunca se esquece, porque foi através dela que se nos abriram as portas da vida e nos confrontamos com os outros, percebendo rapidamente que a existência humana se espraia pelas artérias da convivência e do mútuo entendimento.
O livro de Ernesto Silva é, nesse sentido, paradigmático, porque ao longo de pouco mais de centena e meia de poemas consegue transmitir, de forma simples e ao jeito popular, os valores mais sublimes sob os quais deveria alicerçar-se a sociedade moderna. Por vezes duvidamos que assim seja, tão desencantados estamos já desta competitiva e materializada sociedade, em que tudo é ambição e egoísmo. Mas para Ernesto Silva, nesta redoma de Aljezur, o mundo conserva ainda a pureza das cores deste imaculado património ambiental que o rodeia. As raízes da família e a coesão da prole são fulcrais na sua vida, como aliás se deixa transparecer nos poemas que dedica aos pais, aos avós, à esposa e aos filhos. A expressividade sentimental atinge neles um raro nível de transparência emocional. Também profundos e sentidos são os poemas que dedica à impermanência da vida, aos entes que partiram, à sufocante solidão dos que ficaram privados da saúde ou dos sentimentos fulcrais da vida, como é o caso do amor, da liberdade, da amizade, da solidariedade ou da fraternidade. Mais vivos e alegres são os que dedica aos amigos e figuras que marcaram a sua vivência social. Da mesma estirpe se podem considerar os poemas etno-antropológicos em que retracta a vindima, a pesca, a charrua agrícola, aos quais se juntam outros que versejam sobre os Santos Populares, a Páscoa, o Carnaval, o Presépio, as Marchas Populares etc. Na sua expressividade poética chega a ser algo sorumbático quando disserta sobre coisas mais filosóficas e mais aceradamente críticas, voltando a aproximar-se do nível prazenteiro e jovial que todos lhe conhecem nos poemas naturalistas que dedica às coisas da terra e sobretudo às aves marinhas. Porque acima de tudo Ernesto Silva é um homem que preza o convívio e o companheirismo, com aquela graça e espírito irónico que tanto caracteriza o povo algarvio.
Por fim merece um destaque especial os poemas de carácter localista, com um ênfase muito especial e compreensível na vila de Aljezur que canta e enaltece com as mais vivas cores e na musicalidade peculiar dos seus versos. A vila de Odeceixe, a praia da Arrifana e da Amoreira, são objecto da sua reflexão. Mas também o são as cidades de Loulé, de Lagos e Lagoa, ou as distantes localidades de Vila Nova de Cerveira, Foz do Côa, Mirandela, Vouzela, Lanhelas, Gondomar, Idanha a Nova, Alter do Chão, Rio Maior, Santarém, Açores, etc. Terras essas que visitou como prémio do seu talento, ao dedicar-lhes belos e graciosos poemas, que poderiam ser aproveitados como retratos poéticos em folhetos de divulgação turística. E que belas são essas localidades, pelas quais passeei a minha juventude e aonde ainda volto com a família, como é o caso de Vila Nova de Cerveira, cuja autarquia soube de uma forma estrategicamente turística alcandorar-se a capital da arte moderna portuguesa.
Não quero roubar mais tempo aos que estoicamente ainda me escutam, sem concluir que o lirismo de Ernesto Silva, inspiradamente popular, revela uma enorme grandeza de carácter, uma humildade e uma simplicidade que emociona o mais incauto leitor, por vezes caldeada nalguma nostalgia, logo quebrada pela fina ironia que povoa os seus versos, num estilo que sem se despegar da alma popular atinge por vezes uma inusitada elevação filosófica.
Resta-me, mais uma vez, congratular a autarquia por saber revelar à posteridade os valores literários e culturais que engrandecem sobremaneira esta bela e encantadora vila de Aljezur.
Sem comentários:
Enviar um comentário