domingo, 23 de agosto de 2009

O Deserto Habitado, de Júlio Conrado


O escritor Júlio Conrado, um algarvio que não renega as suas origens olhanenses, é quanto a mim um dos mais talentosos romancistas da actualidade. Ao contrário desta nova vaga de literatos, polidos ou empoleirados nas elites universitárias e quase sempre aurificados pelos favores dos críticos estipendiados pelas editoras, Júlio Conrado tem-se afirmado pela inquestionável qualidade dos seus livros. A sua ascensão, na íngreme e fragosa colina do sucesso, tem-na feito a pulso, de forma progressiva, de livro em livro, numa segura e crescente caminhada para o lugar de relevo a que tem direito na nossa literatura.
Contudo, muito injustamente não tem incidido sobre o seu nome as luzes da ribalta que iluminam e prestigiam os seus comprovincianos Lídia Jorge, Nuno Júdice ou Ramos Rosa. Digo injustamente porque, com o devido respeito pelos autores citados, Júlio Conrado não lhes fica muito distante em talento e criatividade literária. Provam-no os dezoito livros já publicados, de entre os quais selecciono para a galeria do que melhor tenho lido as obras Gente do Metro, De Mãos no Fogo e Desaparecido no Salon du Livre, este último devidamente sancionado pela crítica estrangeira, o qual aliás considero como o seu melhor romance.
Não obstante, surge agora à luz da estampa uma nova versão do seu terceiro livro de ficção, que surgiu a público nas vésperas do «25 de Abril» e que por isso deve ter passado despercebidamente e quase ignorado no calor desses festivos dias de reaprendizagem da liberdade e da democracia.
Foi um pecado a crítica não se ter debruçado mais atentamente sobre este livro, sugestivamente intitulado O Deserto Habitado, que é sem sombra de dúvida um romance de grande qualidade. Lê-se sem despegar a atenção da narrativa que discorre num cadenciado ritmo entre o presente e o passado, um labirinto do tempo ou uma espécie de jogo entre a vida e a memória. O recurso ao flash-back tão comum nos guionistas do cinema moderno, surge neste livro como reflexão intimista do tempo que nostalgicamente se esfumou na dimensão social de outras galáxias, novos mundos prenhes de sonhos e quimeras, de incomensuráveis idealismos que saciaram a nossa juventude e frustraram os trajectos de vida até desembocarmos em desertos habitados. Este livro é um ponto de partida para o cais da alma, erigido nos recônditos duma consciência plasmada na dor, na saudade e na frustração, que o tempo fez aportar à memória de Olegário Crispim, pseudónimo de um crítico de televisão que num vespertino da capital e em plena ditadura teve a ousadia de criticar com acerada violência o canal estatal. As suas ideias revolucionárias vinham na esteira do Maio de 68, que no nosso país se fez sentir durante a chamada “Primavera Marcelista”. É nesse contexto político que emerge a acção deste romance, por cujas páginas desfilam os pungentes rebates de consciência do pobre jornalista, que suspenso das suas funções de crítico inicia uma “via crucis” por caminhos que não deveriam ter sido trilhados.

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