domingo, 9 de agosto de 2009

A Cultura do Medo


José Carlos Vilhena Mesquita

O longo período da Guerra-Fria que durante quase meio século atormentou as nações do mundo ocidental, parece estar hoje completamente debelado. Porém, durante esse período o mundo temeu que o futuro se transformasse numa regressão civilizacional, num retrocesso às cavernas. Instituiu-se uma espécie de Cultura do Medo, uma vivência político-militar assombrada pelo tenebroso espectro do holocausto nuclear. Foi um período marcado pelo arsenalismo bélico e pela invenção de movimentos pacifistas, sob o lema “make love not war”. Ao mesmo tempo foi um dos períodos de maior progresso tecnológico neste milénio, proliferando em simultâneo as artes, as letras e sobretudo as ciências, bastando para o efeito analisar as áreas em que foram atribuídos os Prémios Nobel. Nunca o conceito da Paz teve tanto significado…
A questão que se coloca agora é a de sabermos se efectivamente vivemos em paz, em segurança e sem receio do futuro.
A política de abertura e transparência, “Glasnost”, associada ao imprescindível processo de reconstrução e reestruturação, “Perestroika”, implementado por Mikhail Gorbachev e aprovada em 1986 no 27.º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, marcou o início de uma nova era – o fim do imperialismo soviético. O desastre da guerra do Afeganistão, o depauperamento das finanças públicas e o crescente aumento da dívida externa, obrigaram a antiga URSS a enveredar por políticas de aproximação ocidental. Os resultados foram quase imediatos – aumentou a contestação pública e tudo se desmoronou. Em 1989 derrubou-se o muro de Berlim, caiu o governo da RDA e a unificação alemã ocorreu dois anos depois. No verão de 1991, dissolveu-se o PC soviético. Na Roménia fuzilaram o ditador Ceausescu e os restantes países da “cortina de ferro” (Bulgária, Hungria, Países Bálticos, etc.) libertam-se do jugo soviético. Acabou o Pacto de Varsóvia e a URSS deu lugar a uma incipiente CEI (Comunidade dos Estados Independentes), composto por onze países, sob a protecção do poder militar da Rússia, que é ao fim e ao cabo a única potência do Leste europeu.
O resultado prático do desmantelamento do socialismo soviético e do abatimento da “cortina de ferro” consistiu na emigração em massa de trabalhadores (qualificados ou não), uma espécie de invasão pacífica de mão-de-obra barata, que durante décadas se viu impedida de fugir para o ocidente capitalista à procura de melhores oportunidades de vida. As remessas financeiras desses milhões de emigrantes, oriundos das antigas nações soviéticas, tornaram-se no balão-de-oxigénio das respectivas economias nacionais. Por estranho que pareça foram os países do ocidente capitalista, anteriormente demonizados pela propaganda soviética, os herdeiros involuntários da falência do modelo socialista.
Nos finais da década de noventa, já depois da Guerra do Golfo e das Nações Unidas terem-se declarado hostis às tiranias, às purgas étnicas nos Balcãs, à marginalização das minorias, ao racismo e à desterritorialização de nações ancestrais, como a Palestina ou o Curdistão, o mundo encaminhou-se para uma nova e incontornável realidade, baseada na supressão das fronteiras políticas e socioculturais. Nascera o mundo da Internet, a Era da Informática ou da instantânea comunicação a longa distância, que transformou as nossas vidas de uma forma radical. A este fenómeno sociocultural (que mais não é do que o refinamento do moderno imperialismo capitalista) chamaram-lhe Globalização. A vida quotidiana informatizou-se, isto é, passou a depender da instantaneidade dos meios de comunicação, do desenvolvimento e rapidez dos transportes de pessoas e bens, dando lugar a um neocolonialismo não só dos países mais desenvolvidos, como sobretudo das empresas transnacionais que pressionam as nações mais desfavorecidas a abdicarem das políticas pautistas de protecção económica, e apregoam nos areópagos internacionais os miríficos benefícios do livre-cambismo ou da liberalização das trocas. O regime político mais comum ao fenómeno da globalização é o demo-liberalismo, e o sistema económico que lhe anda vulgarmente adstrito é o Capitalismo.
A “Guerra-Fria” desapareceu com a implosão do bloco socialista, precisamente por este ser antagónico às liberdades individuais, aos direitos humanos e à economia de mercado. Portanto, tudo indica que a Democracia e o Capitalismo são os sistemas socioeconómicos mais equilibrados e humanistas. Com esta asserção parecia antever-se uma nova aurora na Civilização Moderna. Mas o diálogo Norte-Sul e a segmentação económica do desenvolvimento industrial, criaram mundos diferentes e barreiras mentais difíceis de superar, impossíveis de homogeneizar, sobretudo quando lhes estão subjacentes culturas e religiões ancestrais. A ilusão de um mundo mais humanizado – estribado na defesa dos Direitos Humanos, pacificador e desanuviador do espectro duma guerra nuclear – durou escasso tempo, porque os interesses do Capitalismo Financeiro (obscuro, apátrida e imperialista), entrechocaram-se com os valores ancestrais do Sagrado e do Profano.
Faltou ao primeiro-mundo, inspirado nos modelos da civilização ocidental, a coragem necessária para (debelado o espectro da Guerra-Fria) enveredar por uma opção política mais solidária e mais enérgica na supressão dos flagelos da Humanidade: o racismo, o analfabetismo, a pobreza, a fome e a doença. Estes são, desde há séculos, os martírios da civilização, suscitados pelo desenvolvimento desigual, em larga medida provenientes do colonialismo e do imperialismo, as duas faces da mesma execrável moeda. Ao invés duma “cruzada” contra a fome e a doença no terceiro-mundo, optou-se por um cúmplice alheamento das verdadeiras causas da pobreza-estrutural. Em parte, podemos afirmar que os grandes flagelos da Humanidade são resultantes do processo evolutivo daquilo a que chamamos Globalização. Lamento dizê-lo desta forma. Na verdade, assistiu-se à criação dum mercado financeiro mundial (capital volátil) a partir da união de mercados e da quebra de fronteiras físicas e políticas entre esses mercados, cujos benefícios quase nunca redundam positivos para as fontes produtivas ou para os mercados regionais. Vive-se hoje numa integração cada vez maior das empresas transnacionais (apátridas e imperialistas) inseridas, e prevalecentes, no contexto mundial do livre-comércio, operando em diferentes países (sobretudo em regiões subdesenvolvidas), explorando em seu único benefício as condições proporcionadas pelos baixos custos de produção. A vida social e cultural em regiões muito distantes da Europa foi claramente afectada pelas influências internacionais, suscitadas pela injunção político-económica dos países desenvolvidos. Esta situação criou nos países árabes um ódio crescente à globalização e sobretudo ao imperialismo económico anglo-americano.
A cultura ocidental, materialista, individualista e próspera, submetida à divinização do Dinheiro, entrou em colisão com a cultura oriental, espiritualista, pobre e submissa, cuja vivência socioeconómica reflecte as premissas corânicas do islamismo. O resultado da interferência ocidental, sobretudo do imperialismo americano, tem sido pernicioso. A Guerra do Golfo e a recente invasão do Iraque tem suscitado uma alta de preços do petróleo e o descalabro das economias dependentes, de que é exemplo o nosso país.
Pior do que o processo inflacionário tem sido a onda de insegurança urbana, suscitada pelo terrorismo islâmico, que é a suprema expressão da Cultura do Medo. Terminada a Guerra-Fria eis que desperta a guerra surda, o terror branco, a sombra do anjo da morte inserida no corpo franzino de um jovem kamikaze. Os ataques do 11 de Setembro são a ponta do icebergue, que teve a sua continuidade na gare ferroviária de Madrid ou no Metro de Londres. O mundo acordou da guerra-fria para a guerra-santa, com a diferença de antes ser mais difícil morrer em nome de um ideal, do que agora em nome de um Deus redentor. A cultura ocidental cristã, nunca imaginou o suicídio religioso, que à luz do nosso raciocínio é simplesmente um acto criminoso e cobarde em nome de um Deus maior. Voltaram as Cruzadas, a Ghiade islâmica da era global, ergueu-se o Eixo do Mal e instaurou-se a Cultura do Medo.

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