domingo, 23 de agosto de 2009

ALBUFEIRA em 1950

José Carlos Vilhena Mesquita

No passado dia 27 de Abril de 2008 tive a honra e o privilégio de apresentar ao público a mais recente obra do Dr. Manuel dos Santos Serra, intitulada Albufeira 1950. Perante a ilustre e muito numerosa assistência, que encheu por completo o auditório da moderna Biblioteca Municipal de Albufeira, enobrecida pela presença do presidente da autarquia, pronunciei algumas palavras de apreço pelo autor, médico e ilustre homem de letras, cuja prestigiada obra clínica e intelectual é por demais conhecida, dispensando por isso os nossos encómios. Porém, gostaria de deixar aqui exarados alguns dos considerandos, tecidos durante a apresentação dessa obra. No início da década cinquenta o, então jovem médico, Dr. Manuel dos Santos Serra, frequentou no Instituto Ricardo Jorge, em Lisboa, um curso de Medicina Sanitária ministrado pelos mais conceituados especialistas na matéria, de entre os quais se destacavam os Drs. Cabournac, Gonçalves Ferreira, Arnaldo Sampaio e, muito particularmente, o Dr. Fernando Correia, director daquele Instituto, reputado sanitarista de prestígio internacional. Para a conclusão desse curso os alunos teriam que escrever uma monografia sobre um concelho da sua preferência, acerca do qual teriam que investigar não só as potencialidades socioeconómicas da região como muito especialmente as condições sanitárias e as práticas de higiene dos seus habitantes, procurando inventariar a existência de doenças do foro infecto-contagioso e degenerativo, para cuja erradicação médica deveriam mencionar e alvejar as causas mais evidentes. A todos foi distribuído idêntico modelo de trabalho acrescido de um inquérito sanitário, o qual, depois de preenchido, constituiria o móbil primacial do curso e, ao fim e ao cabo, de todo o projecto que lhe estava adjacente, ou seja, a identificação, prevenção e combate das doenças endémicas e dos surtos epidémicos que daí pudessem resultar. Como o Dr. Santos Serra vivia desde os sete anos de idade em Albufeira, não admira que tivesse escolhido aquela paradisíaca vila, da então quase ignorada orla costeira algarvia, para enfoque da sua investigação sanitária. O trabalho conclui-o no ano seguinte, em 1953, enviando-o depois para o Dr. Fernando Correia, director do Instituto, que orientava as monografias com pulso de autoridade e conselhos de mestre. De tal forma assim era que não permitia aos jovens médicos que dissertassem sobre questões de saúde pública, alegando que desse modo correriam o risco de confundir a ciência com a especulação, de baralhar o saber com a imaginação, ou, pior ainda, de misturar o conhecimento com o ideal. A metodologia era compreensível: na ciência não existe o cientista, mas apenas o conhecimento. Por isso, o discurso científico deve ser frio, árido e impessoal. Esta concepção está hoje um pouco aligeirada, ainda que, na sua essência, continue a ser paradigmática. Todavia, neste caso, foi contraproducente, pois que um dos principais objectivos desta monografia consistia no preenchimento de um inquérito de Higiene Rural, repartido por mais de 120 questões relativas à sanidade pública, ao asseio doméstico, à limpeza das ruas, aos equipamentos sanitários, ao abastecimento de águas e ao escoamento de esgotos; questões essas a que o Dr. Santos Serra teve que responder de forma peremptória (sim ou não) e demasiado sintética. Para os promotores do curso e para o Instituto Ricardo Jorge o que interessava era a informação amorfa e insensível, para ser depois tratada numa espécie de diagnóstico global da saúde pública, tendente à formulação de medidas apropriadas ao estabelecimento de um plano nacional de higiene sanitária. Tentando fugir à frieza do inquérito, o Dr. Santos Serra contornou de forma inteligente os objectivos propostos, escrevendo uma monografia no sentido mais lato do termo, analisando, discernindo e criticando diversos aspectos da vida económica, social e cultural daquela vila. Para isso deu-se ao trabalho de esquadrinhar-lhe as origens históricas, de esboçar o seu enquadramento geográfico, orográfico e hidrográfico; de analisar a flora e a fauna, sobretudo marítima, cujo aproveitamento industrial constituía a base económica de toda a região algarvia. Curiosa e muito importante é também a descrição da arquitectura rural e urbana, dos hábitos de higiene e das diferenças de habitabilidade entre o campo e a cidade; a insuficiência das vias de comunicação, a falta de iluminação pública, a estrutura demográfica e sua distribuição concelhia; a alimentação, vestuário, usos e costumes, etnografia e religiosidade, carácter e índole do albufeirense, lugares de reunião social, indústrias locais e, por fim, patologia e higiene municipal. Extravasando os propósitos primordiais desta monografia, merecem uma particular referência as cheias de 1949, de que resultaram graves prejuízos materiais a que o Dr. Santos Serra deu o devido destaque, clamando pelo urgente auxílio do governo. Facto aliás relevantíssimo para os estudos mais recentes da evolução climática, que apontam hoje para visões catastróficas. Alguns pertinentes contrastes com a actualidade A leitura da monografia, Albufeira 1950, permite-nos constatar que são muitas as diferenças com a actualidade, evidenciando-se assim um caminho de progresso suscitado pelo incremento turístico do Algarve. À distância de meio século são gritantes e quase incomparáveis as alterações operadas no casco urbano da actual cidade de Albufeira, e até mesmo no ordenamento das freguesias concelhias. As razões do progresso justificam-se através do investimento no sector terciário, sobretudo no turismo, sendo igualmente de acentuar que após o «25 de Abril» a autonomia do poder local tornar-se-ia no motor do desenvolvimento nacional. Acresce que ao financiamento dos projectos autárquicos se sucedeu a introdução em larga escala de capitais da União Europeia, que suscitaram não só a abertura de novas vias de comunicação como ainda a modernização das estruturas produtivas. As diferenças suscitadas pela leitura desta monografia saltam à vista, desde logo na superfície do concelho, que diminuiu de 209,4 km2 para os actuais 140, 7 km2, mantendo-se porém as mesmas três freguesias, Guia, Paderne e Albufeira. Na fauna, refira-se que ainda haviam raposas nas furnas da Gralheira, e erradamente se pescavam Toninhas para uma fábrica de óleos em Portimão. Os materiais de construção da habitação, sobretudo no meio rural, eram de origem natural, com paredes de taipa, ladrilhos de barro cozido e rebocos de cal, parecendo evidenciar uma ancestral influência árabe. A casa rural algarvia apresentava dependências para animais, palheiros, pocilgas, e terraços para secagem dos frutos, sobretudo do figo nos “almeixares” de cana. Quanto ao abastecimento de água, fazia-se apenas na vila ao domicílio, abastecendo-se a maioria das habitações nas cisternas, poços e fontanários públicos. O saneamento fazia-se directamente para o mar e para as lixeiras, sendo certo que se produzia muito menos lixo poluente do que actualmente. As estradas eram macdamizadas, sendo apenas alcatroada a que ligava às Ferreiras, o resto eram caminhos e veredas. A gare do comboio situava-se a 6 km de distância da vila, cuja ligação se fazia em carros de mula ou na típica “carrinha algarvia”, sendo que apenas existiam 3 táxis em Albufeira e 1 em Paderne. A luz eléctrica, inaugurada em 1926, existia somente na vila, produzida numa central a gasóleo; acendia-se ao anoitecer e apagava-se às 2 horas da madrugada. A população, conforme refere o livro, repartia-se entre agricultores e pescadores, totalizando 14.765 hab.; repare-se que em 2001 ascendeu a 31.543 hab, crescendo à média de 1000 hab/ano; a densidade populacional, em 1950, era de 70,5 hab/km2 e no censo de 2001 era de 224,2 hab/ km2. Note-se que em 2001 o concelho de Albufeira era o segundo mais populoso do Algarve, sendo Loulé o primeiro com 59.158. Preocupante é referir que nos últimos censos (1991 e 2001) decresceu a população em três concelhos: Alcoutim, Monchique e Vila do Bispo. A população total do Algarve é hoje de 395.208. Mas a taxa de crescimento natural no Algarve é de -062% enquanto a taxa nacional é de 1,43%. Significa isto que a população algarvia está em queda acentuada. Como curiosidade, mas sem comentários, refira-se que o índice dos divorciados em 1950 era de 0,05%, hoje é de 2,81% e a nível nacional é 1,87%; em contrapartida os filhos ilegítimos eram 15% da população total e hoje é praticamente 0; o agregado familiar médio era de 4 pessoas, semelhante ao de hoje; a taxa de religiosos não católicos era de 0,3% subindo hoje para mais de 20%. Mas a maior mudança processou-se ao nível dos usos e costumes, da alimentação e do vestuário, alterando-se profundamente com a melhoria do nível de vida das populações e com o cosmopolitismo suscitado pelo turismo. Acerca do carácter e índole do povo não resistimos à tentação de transcrever as palavras do Dr. Santos Serra: «... é de certa maneira religioso e apaixonado pela música, por desportos náuticos e por tudo que se liga com a vida no mar. É uma população pacata, de certo modo respeitadora, sem grande método e iniciativa, mas corajosa como o demonstra a predilecção pelo mar. Como o algarvio em geral, o albufeirense é expansivo, acolhedor e, contrariamente ao que se diz do homem do sul, é humano, caridoso, sossegado e valente». A economia local baseava no comércio, na agricultura e na pesca, resumindo-se a indústria a uma fábrica de xarope de alfarroba e artesanato do figo e da amêndoa, além de pequenas moagens de cereais em Paderne e Guia. Em Paderne existiam progressivas cerâmicas de tijolos e telhas. Os habitantes reuniam-se nos cafés, tabernas, sociedades recreativas (2 na vil e 1 em Paderne), nas farmácias (2 na vila 1 em Paderne) e sobretudo no moderno Cinema Pax, que à época constituía um oásis na cultura local. A Patologia do concelho, aponta como causas de morte as diarreias e enterites nas crianças, com 17,2%; nos idosos as hemorragias cerebrais, embolias, tromboses, 8,7%; senilidade 3,8%; não especificadas 5,5%; os restantes 60% deveriam distribuir-se pelas doenças derivadas da tuberculose, sífilis, ataques cardíacos e tumores malignos, que estavam em crescimento. As doenças sazonais, tifóides e epidémicas eram pouco significativas, o que atesta a salubridade da vila. Inquérito de Higiene Rural Os dados do Inquérito revelam, entre milhentas outras coisas, que apenas existiam 5 médicos para todo o concelho (2 facultativos municipais, 1 da Casa dos Pescadores e 2 de clínica livre). A média era de 1 méd/3000 hab.; hoje é de 2,3 méd/1000 hab. Havia duas Farmácias em Albufeira e uma em Paderne, hoje há 2,7 farmácias por 10.000 hab., estranhando-se que este índice não tenha melhorado, decorridos mais de cinquenta anos. O serviço de Hospital, com 16 camas, dedicava-se a partos, à pequena cirurgia e ao asilo de idosos. Curiosamente ainda havia casos de lepra, e um crescente índice de tuberculosos; não havia prostituição e as doenças venéreas eram muito raras. Para além de muitos outros informes, retemos que o valor da jornal rural nos homens era de 20$00 e 10$00 nas mulheres, isto é, 600$00 e 300$00 mensais, a contrastar com os 440 € auferidos pelos actuais trabalhadores rurais. Curioso é também referir que o Orçamento camarário era de 1.575 contos; cuja receita ordinária era de 700 contos, isto é 40% do total e a extraordinária era de 768 contos, ou seja 60% do total. Lamentavelmente os gastos camarários com a Higiene e Limpeza eram apenas de 2%; cabendo às Águas e Saneamento uns irrisórios 3,75%. Em comparação com os elevados gastos actuais é situação sanitária das populações é bem mais positiva e incomparavelmente mais confortável. Uma das principais utilidades desta monografia está precisamente na comparação dos dados, na avaliação das diferenças entretanto operadas, e, sobretudo, na pesquisa das justificações para todo o processo de evolução e modernização da vida socioeconómica, assistencial, higiénica e sanitária do concelho de Albufeira. É um desafio que deixamos aos mais abalizados

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