domingo, 12 de julho de 2009

O poeta Ary dos Santos ganhou os Jogos Florais da Praia da Rocha


Existe hoje a mania de amesquinhar a importância cultural do Jogos Florais, tendo-se mesmo a ousadia de apoucar os seus concorrentes. Creio que esta ideia, infeliz e injusta, foi divulgada após o “25 de Abril” pelos poetas dos novos movimentos literários que, na esteira do surrealismo, se perfilavam por toda a Europa, sob a invocação da libertação da poesia, fazendo tábua rasa de todas as regras e modelos estilísticos herdados dos clássicos.
Aceitamos plenamente que se enverede por novos caminhos para a criação duma poesia mais livre, mais conceptual e menos ortodoxa. Nos tempos que correm - cada vez menos ilustrados e mais materalistas -, a poesia livre e sem regras estilísticas tornou-se numa opção natural. Concordamos inteiramente. Agora o que discordamos é que se depreciem e amofinem os Jogos Florias como concursos literários de divulgação e fomento da poesia. Na verdade, esses certames poéticos dividem-se em modalidades sujeitas ou não às regras clássicas, não havendo por isso razão para que não haja lugar para todos poderem concorrer, os mais conservadores e os mais progressistas. Por outro lado, convém lembrar que os Jogos Florais são competições submetidas a confronto e à apreciação de um júri, longe portanto dos prémios literários actuais avaliados por mero auto-criticismo de admissão mais ou menos favorável.
A prova disso é que nos Jogos Florais, que se realizavam por todo o país, se revelaram vários talentos que viriam a consagrar-se na lira de Orfeu. Um desses exemplos foi o de José Carlos Ary dos Santos, cujo 20.º aniversário da sua morte estamos actualmente a comemorar. Para que nos associemos a essas comemorações nacionais aqui fica o poema com que em 1951 ganhou o 1.º prémio de soneto nos Jogos Florais da Praia da Rocha. Nessa altura, concorreram 400 composições poéticas, tendo cabido a José Morais Lopes o 2.º e 3.º prémios na modalidade do soneto. Aliás, esse nosso amigo e associado da AJEA, recebeu prémios em todas as modalidades à excepção da prosa, da fotografia e da pintura. Ao tempo o poeta Ary dos Santos, era ainda um ilustre desconhecido que residia em S. Martinho do Porto, não tendo qualquer pejo em concorrer aos Jogos Florais e até em apoiar esses certames, mesmo depois de se haver revelado no programa Zip-Zip e nos Festivais da Canção como um dos melhores poetas do nosso tempo.
Os júris estiveram reunidos em 20 e 21 de Setembro de 1951, para avaliar os trabalhos apresentados a concurso, sendo o de poesia constituído pelos poetas Cândido Guerreiro e Emiliano da Costa e pelo jornalista Mário Lyster Franco; o da prosa era composto pelos Drs. José Fernandes Lopes e Justino Bivar; na pintura era o Mestre José Campas quem avaliava os trabalhos e na fotografia eram os ateliers Matos de Faro e Oliveira de Portimão. Como se vê a composição dos júris era bastante credível, emprestando a melhor reputação não só aos Jogos como sobretudo aos seus vencedores. A cerimónia de entrega dos prémios decorreu no casino da Praia da Rocha, nas noites de 22 e 23 de Setembro, tendo a participação de artistas de Lisboa, como a actriz Maria Dulce e a cantora lírica Manuela Laborde consagrada artista de S. Carlos.
Resta-me acrescentar que desconheço se este belo soneto foi ou não recolhido nas suas obras completas do saudoso José Carlos Ary dos Santos:

Plenitude

Encontrei afinal o meu caminho!
Ando louco de azul, ébrio de terra!
Como as aves que vão de ninho em ninho
Sem saber se no mundo há paz ou guerra.

A minha alma mais rubra do que o vinho
- Beijo de fogo que a verdade encerra -
Tem a doçura cândida do linho
E a resistência heróica duma serra.

Adoro o sol em êxtases pagãos,
Abençoando o dom da claridade
Que faz vibrar de luz todo o universo.

Trago o luar escondido em minhas mãos
E esta onda suprema que me invade
É o sangue da minha alma feito verso!

O mais interessante de tudo isto é que da participação nesses Jogos Florais da Praia da Rocha nasceu uma sólida e fraterna amizade entre Ary do Santos e Cândido Guerreiro, ao fim e ao cabo dois grandes poetas, o primeiro já consagrado pelos anos e pela obra publicada, o segundo a dar os primeiros passos na senda de Orfeu. Sei que Ary dos Santos manifestou por várias vezes nos jornais e no convívio de amigos, a sua admiração pelo grande poeta Cândido Guerreiro, considerando-o como um dos melhores sonetistas do seu tempo. E a prova está no soneto que enviou ao «Correio do Sul» para ser publicado em sua homenagem:

Viagem

ao Dr. Cândido Guerreiro

Vai!
Segue o teu rumo sem parar
Que te importa o mundo?
Bastam-te o Céu
E o mar
Vai!
Porque depois de tanto caminhar
Ainda podes cingir o Infinito
Na expansão do seu grito.
Vai!
Despe o teu manto de magestade
E de poder
Sê pobre como as cigarras
E alegre como as papoilas.
Vai!
Sem chorar nem sofrer
Vai!
Que te importa a cadência dos instantes
E o tempo que passou
Vai!
Pelos caminhos que seguias dantes
E que a vida apagou.
Vai!
Segura em tuas mãos
Os teus cantos dispersos.
Vai!
E chama ao Sol, ao mar e à terra teus irmãos
Pois são da mesma carne dos teus versos.



J. C. Vilhena Mesquita (publicado no «Jornal Escrito»)

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