sábado, 4 de julho de 2009

Os Mártires da Liberdade na República da Arguidolândia



J. C. Vilhena Mesquita

A nova ordem social, implantada com a Revolução de Abril, outorgou aos cidadãos não somente a consciência das liberdades individuais, mas também a posse plena e inalienável dos seus direitos cívicos. Nos últimos trinta anos, digamos que o espírito de Abril e as amplas conquistas que lhe estavam adstritas tinham-se globalmente mantido numa espécie de praxis da substancialidade essencial. À parte uma ou outra alteração pontual, aliás visível nas sucessivas revisões da Constituição, digamos que o paradigma de Abril foi resistindo às constantes arremetidas dos inimigos da Liberdade e da Democracia. Todavia, com a entronização da política (infra)socrática instalou-se no país um clima de medo, baseado na delação, na perseguição e no saneamento político-partidário.
Este clima de medo é muito pior do que aquele que se viveu no passado salazarista, porque não existindo hoje (pelo menos de forma legal, clara e inequívoca) nem Censura nem PIDE, os cidadãos foram-se habituando a conviver com os valores e liberdades consignados em «25 de Abril», os quais estão hoje absolutamente em causa. Dizer abertamente a verdade, sem recear as consequentes perseguições políticas, é um acto de heroísmo a que nem todos se poderão aventurar, mormente os jornalistas. Não admira, pois, que os trabalhadores, particularmente os funcionários públicos, sintam na alma uma infame e ignóbil mordaça, que os obriga a refugiarem-se num silêncio aterrador, suspeitando que os colegas e camaradas de trabalho os empurram à traição para o abismo do desemprego, como se vivessem numa espécie de Cabo do Medo.
Mas se nos sectores primário e secundário, isto é, nas fábricas, no comércio e até nos campos se engendram todo o tipo de ameaças para docilizar o trabalhador, e, por arrastamento, fragilizar e submeter os sindicatos – por sua vez a situação no sector terciário dos serviços, onde se concentra a classe média e a pequena burguesia, é mais grave, assistindo-se a um outro tipo de perseguição: a da suspeita de corrupção. Foi sempre essa a estratégia dos fascistas para denegrirem o actual sistema político e derrancarem a honra do mais impoluto cidadão. Nessa estrumeira é melhor não voltar a mexer.
Em boa verdade, a corrupção é um fenómeno transversal à Democracia, e muito comum no nosso país, onde o pequeno favor, a nossa peculiar “cunha”, pode ser entendida como indício de corrupção. A maledicência pública, a latina “má-língua”, acobertada pelo baixo nível de alguns órgãos de informação, encarrega-se geralmente do resto, empolando as suspeitas num lamaçal de pútridas acusações. Rapidamente às suspeitas sucedem as acusações e, num ápice, está criado o Arguido, que segundo parece é uma nova espécie de homo sapiens gerado pelo escutista aparelho judicial.
Nestas circunstâncias, e no quadro de défice moral em que se inscreve actualmente o nosso país, surgiu também um novo conceito de cidadania, estribada na imagem jurídica do “arguido”. Antigamente havia o estatuto social de fidalguia, hoje há o de Arguido, que equivale quase ao mesmo. Boa gente, bem-nascida e bem-educada, tem de alcançar o supremo conceito de arguido. Sem esse pequeno “adorno moral”, parece que o cidadão, considerado de superior qualidade, perdeu todo o seu garbo, toda a sua prosápia, toda a panache de pertencer a uma elite.
Para ser respeitado e admirado na sociedade actual, não há nada melhor do que possuir o epíteto de “arguido”. Soa bem e até parece um cognome real. Bem sei que essa coisa dos cognomes é como um pau de dois bicos. Na verdade, houve reis que tiveram cognomes que soam hoje de uma forma muito depreciativa ou desfavorável, como é o caso de o “Gafo” (D. Sancho II), o “Gordo” (D. Afonso II), ou o “Cruel” (D. Pedro I); embora houvesse outros cognomes mais inconsequentes e até dúbios, como o “Bolonhês” (D. Afonso III), que parece coisa de culinária, o “Africano” (D. Afonso V), que sugere um racismo bacoco, ou, pior ainda, o “Esperançoso” (D. Pedro V), que se assemelha a uma utópica gravidez masculina... Enfim, o melhor é esquecer a ideia do cognome.
Talvez se deva conferir ao epíteto de “arguido” a noção de um grau de nobreza ou de um título académico. Esqueçamos, porém, o grau de nobreza que é coisa de fadistas. É melhor pensarmos num título académico. Em breve veremos que no cartão-de-visita de certas figuras nacionais deixará de constar a profissão ou a actividade social. A moda virou de rumo. Agora, logo depois dos apelidos de família, que, no passado, significavam as vergônteas da História, vem o epíteto de “Arguido”, talvez muito mais honorável do que ser-se simplesmente mais um Fonseca, mais um Melo, ou um Meireles qualquer. Perdeu hoje todo o sentido apresentar-se alguém perante a melhor sociedade como um simples médico, advogado, arquitecto ou professor. Não dá estatuto, é uma banalidade.
Bem sei que o epíteto de “Arguido” é um conceito jurídico comummente pouco abonatório, diria até que assustadoramente sinistro, devido ao juízo de suspeição e de descrédito que lhe está adstrito. Digamos que, levado à letra, arguido é sinónimo de acusado, censurado, inculpado, exprobrado. Enfim, significantes muito desagradáveis. Curiosamente vocábulos que rimam com Berardo... mas isso são apenas dicas para os poetas.
Apesar de tudo isso, é verdade que quem não for arguido num processo qualquer, perde todo o conceito. Cidadão que se preze tem de ser arguido em qualquer coisa. No fundo, Faz parte do curriculum abonatório da sua elevação moral. Repare-se que ainda há pouco tempo alguém que alternava na vida, confundindo a noite com o dia, o azul do céu com a luz da viela, tornou-se numa insonsa santinha, instrumento privilegiado para inculpar vários cidadãos, acusando-os de exercerem associativismo entre si. Bastou essa conduta para que logo fossem considerados como mafiosos. Não estou a falar de políticos, cuidado com as suposições. Os partidos são associações de interesses, mas não são organizações mafiosas. A verdade é que a tal insonsa santinha disparou acusações malévolas com a mesma traiçoeira ferocidade com que os caçadores disparam chumbo sobre tudo o que mexe na charneca alentejana. A tal ponto que um dos indiciados pela vituperina língua da santinha perguntou, com a inocência de quem se julga na posse dos seus direitos cívicos, se era suspeito de algum crime. A resposta foi-lhe dada de forma seca e abrupta: suspeitos são os que andam na rua, porque ainda não os pudemos acusar de nada.
É assim que vivemos hoje. Trinta anos depois da libertação de Abril, voltamos ao pesadelo da suspeição, da delação e da traiçoeira acusação dos invejosos, dos incompetentes, dos peões de brega e outros apoderados da nossa tauromáquica partidocracia. A vida, laboral e social, para milhões de portugueses transformou-se num terrível letargo, obrigando-nos a colocar uma mordaça para não dizer-mos a verdade, porque se a dissermos ficamos desempregados ou seremos perseguidos até à barra do tribunal. Foi o que aconteceu com um professor que contou uma anedota política, com um médico que afixou um cartaz comentando as declarações do Ministro da Saúde e com o autor de um blogue que na Internet fazia da licenciatura de Sócrates uma blague nacional.
Por causa deste inusitado autoritarismo (infra)socrático, desta democracia totalitária – que se diz socialista, mas que, na verdade, não passa de um regime musculado que a todos ameaça e aterroriza – é que receio pelo futuro da liberdade e da salvaguarda dos direitos cívicos. A presente democracia está cada vez mais parecida com a praxis política do passado fascista. O país dá indícios de voltar a sofrer da doença que ceifou a I República, isto é, da partidarite aguda – uma perigosa maleita psicossocial que provocou uma incontrolável torrente de desunião moral e de ódio político, mercê da qual se desacreditou a democracia e se aplaudiu a ditadura salazarista.
Incompreensivelmente parece que voltamos a esses odiosos tempos.

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