sábado, 4 de julho de 2009

A Poesia de Maria Rocha de Oliveira

J. C. Vilhena Mesquita

António Gedeão, que foi poeta e pseudónimo de cientista, afirmou um dia que “todo o Tempo é poesia, desde a arrumação do Caos à confusão da Harmonia”. Ora, na verdade, a poesia é uma espécie de harmoniosa síntese entre a forma e o conceito, entre a sensação e o sentido, a emoção e a racionalidade. Mas, acima de tudo, a poesia é arte. Indubitavelmente uma forma de expressão artística, própria de um espírito superior que exprime os seus estados de alma de uma maneira sublime e inimitável. Na sua mais intrínseca concepção o poeta é um esteta. Repare-se que o artista concebe a sua obra através do ordenamento da cor e da incidência da luz sobre as formas e os volumes que preenchem os diversos planos do quadro. O poeta faz o mesmo só que não usa as cores nem o subterfúgio da luz para realçar o seu poema. Serve-se apenas da palavra, do fulgor dos conceitos e da duplicidade do significante, que transforma e confunde a razão analítica. O grande Sá de Miranda dizia que os poetas tudo punham em flores e dos frutos nada havia que esperar.
O poeta é um artista, mas também é um artífice da palavra. Os versos com que estrutura o poema obedecem, por vezes, a um esquema rítmico de fonemas, que lhe dão uma inebriante musicalidade e uma indescritível sensação de prazer, mesclada de dor e felicidade. A força do poema reside numa mística singular, que mais não é do que a arte de saber transmitir a dor através da palavra. Numa linguagem elevada e numa parcimoniosa distribuição das palavras, o poeta concebe um esquema imagético e interpretativo da vida, fazendo desfilar pelas escadas do poema uma sucessão de ideias, emoções e sensações. O poema embriaga os sentidos no sublime narcótico da metáfora. José Craveirinha, que a esta terra mantém uma ligação umbilical, caracteriza a sua poesia pela “fraternidade das palavras”, traduzindo esse conceito nestes simples versos: “as palavras só precisam de quem as toque / ao mesmo ritmo para serem / todas irmãs”.
Não há dúvida que na arte como na poética, é a vontade da criação, o prazer da comunicação e a força do génio que dá vida à obra. No fundo, o que lhe está subjacente é o instinto de materialização do espírito, como acto de transmutação ou legado da razão sobre a impermanência da vida. Consiste naquilo a que Camões chamou a “libertação da morte”, por força dos actos e, sobretudo, das “obras valorosas”, que fazem com que os homens permaneçam para além dos limites naturais da vida, na memória do tempo e na consideração dos vindouros. E o livro é sempre um legado da razão, uma forma de comunicação a posteriori, uma libertação do espírito e uma permanência que extravasa as dimensões do tempo.
O génio sente-se no acto da criação. A expressão é que difere. A luz e a cor são do pintor, a forma do escultor, a palavra do escritor. Mas a emoção é do poeta. No jogo das sensações, no choque das impressões, nasce a poesia, pura, nua e crua. Um místico mundo de fantasia e realidade desfila pela escadaria do poema. São as metáforas que desaguam no remate de um soneto ou nas rimas cruzadas de uma simples quadra popular. A nostalgia da saudade, as comoções do amor, as vicissitudes da alma invadem o poema como uma enxurrada de sentimentos. Isso é poesia. E só o poeta sabe verdadeiramente sentir a poesia. Mesmo quando finge sentir na alma a tortura do imaterializável, o poeta consegue transluzir em diamantinas metáforas a sincera nostalgia de um ideal por construir. Como disse Fernando Pessoa “o Poeta é um fingidor, finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”.
Creio sinceramente que a Prof.ª Maria Rocha de Oliveira, neste livro que tenho a honra de apresentar, reúne todas as premissas acima enunciadas, com a grande diferença de que tudo quanto escreveu nada tem de fingimento poético, mas tão só um sincero testemunho de uma vida, marcada pela precoce viuvez e pelo sacrifício de uma profissão exigente e desgastante, inteiramente dedicado ao ensino e às crianças, que foram sempre o lenitivo da sua existência.
Com o decurso dos anos foi-se-lhe escasseando a saúde, encontrando no refúgio das musas um espaço de íntima reflexão, para espiar na musicalidade das palavras o sofrimento da solidão, as saudades da juventude, a paixão pelo marido que cedo viu partir, o encanto pela natureza e pela pureza do ambiente, de que é paradigma a sua terra-natal, enfim espalhou por tudo o que a rodeava um olhar atento e perscrutante como quem sorve cada momento da vida no ansioso temor de poder ser esse o último. Não satisfeita acrescentaria ao seu buliçoso temperamento o culto das belas-artes para materializar na cor os sentimentos e no brilho as emoções. Recolheu-se ao silêncio das coisas materiais, a que só o talento sabe dar vida. Pintou muito e no sentido naife da forma, sem escola nem mestre, na mais pura simplicidade de quem materializa na tela apenas aquilo que vê, ainda que sem o rigor das proporções ou a perfeição do traço. Uma artista sem as pretensões estéticas de que se nutrem e valorizam aqueles que atiram para cima das telas umas pinceladas ou uns riscos disformes, que os seus compadres aplaudem e a que nós, os ignaros provincianos, costumamos corroborar.
Maria Rocha fez da poesia uma amiga e uma confidente. Revelou a sua vida em verso. Com extrema simplicidade e despretensioso alcance estético compôs à luz do seu estro. Foi nesse exercício de reflexão sobre a vida, nessa espécie de expiação da solidão que nasceu a sua poesia. Senhora de provecta idade e de uma pureza de sentimentos notável, é o exemplo acabado da bondosíssima figura de ser humano, algo raro nos tempos que correm, e que todos gostaríamos de possuir na família.
As suas modestas origens sociais proporcionaram-lhe uma vida difícil, estribada nas diferenças sociais e num certo elitismo, legitimado pela instrução especializada. Apesar de discordar desse ordenamento social, nada podia fazer para o contrariar até porque a sua parca instrução, não lhe permitia um maior entrosamento cultural, nem um convívio integrado. Numa sociedade conduzida por homens cujos parâmetros de diferenciação social se estabeleciam em factores de riqueza ou no prestígio familiar acumulado, é lógico que a sua condição de mulher, esposa e mãe, inibia senão mesmo impedia quaisquer possibilidades de progressão intelectual. Essa era aliás a realidade dos mais desfavorecidos. Em todo o caso nunca descurou a leitura, mercê da qual complementou aquilo a que se poderia chamar a “escola da vida”.
As influências populares na sua poesia são por demais evidentes, quer no ordenamento rítmico, quer no temático. Por outro lado, a sua parca instrução lírica e o seu desconhecimento dos rigores métricos, não lhe permitiam compor um poema conforme os cânones da mais elaborada poesia clássica. A imitação de modelos nunca fez parte nos seus horizontes. E ainda bem. Diremos, hoje, que tal desfavorecimento apenas contribuiu para a conservação da sua inocência literária e da sua singeleza temática. Pela análise dos poemas verificamos que existe uma consciente gestão do adjectivismo em favor do substantivismo simbolista, procurando criar uma estrutura sintagmática acessível, por vezes até demasiado evidente. Daí que as imagens poéticas ou o recurso às figuras de estilo, que os poetas letrados usam como um dédalo conotativo para construir pensamentos elevados, sejam na poesia de Maria Rocha de Oliveira bastante escassas. Aliás, os seus poemas são tão simples e cristalinos que parecem de inferior qualidade, pois que raramente deparamos com belas metáforas, mirabolantes conotações, impossíveis antíteses ou irreais comparações. Apenas nos surgem algumas anáforas e várias personificações, mas ainda assim algo incipientes e demasiado simplistas. Inclusivamente essas personificações surgem-nos amiudadas vezes como emergências de um espírito infantil resguardado num corpo de avózinha.
Os subterfúgios estilísticos exigem do poeta uma sólida cultura e boa preparação intelectual, ensimesmada na leitura dos mais consagrados vates da literatura europeia. Não se podia esperar que uma mulher simples produzisse uma poesia rebuscada e prenhe de esoterismos conceptuais, que ninguém entende e muito menos servem a arte. Bem pelo contrário, Maria Rocha soube usar as palavras com simplicidade, sem os pretensiosismos balofos ou falsos intelectualismos, que ultimamente campeiam na poesia portuguesa. Repare-se que nos seus poemas abundam os diminutivos, tão ao gosto das gentes algarvias, o que não só evidencia a sua inspiração popular como também demonstra o seu profundo carinho pelas coisas simples da vida. Por outro lado, a sua respeitável idade e a condição de professora primária, proporcionou-lhe uma despretensiosa inclinação para poetar sobre as coisas sérias e profundas do nosso quotidiano, tratando-as de uma forma ligeira, como um passatempo, uma brincadeira ou mero entretenimento. Por vezes parece estar a brincar aos poetas, distraindo-se a compor os versos num encadeamento lúdico, quase jocoso. Sem depreciar a sublime lira nem desestimar os poetas, Maria Rocha diverte-se a gozar os prazeres da sua poesia sem olhar a modelos, conceitos ou estilos.
Não existe neste livro uma seriação lógica, uma linha temática, que nos permita dizer que os poemas foram pensados, gizados e organizados com vista à sua compilação em livro. Vê-se que a autora não tinha essa preocupação. Escreveu-os para dialogar com a alma, espantar a solidão e afrontar a morte, com o respeito que é devido ao mistério da Fé. Encara essa incontornável realidade da vida como uma passagem para outra dimensão do espírito. Aliás, a solidão, a velhice e a morte são uma recorrência constante nos seus poemas. Mas assume com naturalidade essa tríade, que pressionou e logicamente atemorizou a sua existência. A coragem com enfrentou a perda dos entes queridos e a decrepitude da vida, parece estribar-se na crença em Deus. Amor, bondade, tolerância, justiça e perdão, são sinónimos de Deus, essa força criadora e misteriosa que Maria Rocha reverencia na sua obra com uma fé inabalável.
Os seus poemas, são apenas seus e de quem os quiser ler. Mas qualificá-los, compará-los ou classificá-los é uma tarefa injusta e rasteira. A poesia é arte e o poeta um artista. Existe boa e menos boa arte. Não existe a má arte. Respeitam-se todos, os letrados, os classicistas, os inspirados, os abstractos, os esotéricos e os populares. E quem se arvorar em juiz, em avaliador ou avalista da “boa” poesia estará a cometer o erro de ver o mundo pelo gargalo de um poço. A subjectividade tolda a razão dos ajuizadores, que medem a arte pela vara do próprio estro, beneficiando os que se aproximam dos seus modelos e desprezando os que, em nome da sua própria liberdade, deles se desviam. Ordenar os poetas numa espécie de tabela dos melhores é sempre um exercício injusto, tendencioso e elitista. Para esses tudo lhes parece pequeno e estreito, sobretudo quando se trata de apreciar a poesia daqueles que não vivem ou não têm amigos em Lisboa.
Sem imerecidos encómios, cuja modéstia dispensa e reprime, podemos afirmar que Maria Rocha de Oliveira sempre se deixou enlear na humildade dos que preferem a sombra dos bastidores à luz da ribalta. E nesse aspecto presto-lhe a minha reverência. A humildade, simplicidade e modéstia foram atributos que definiram a sua superioridade de carácter. O seu bom coração, a compaixão pelos desfavorecidos, o carinho pelas crianças e a lhaneza de trato, constituíram a sua forma de vida. E a sua poesia, nos débeis atributos literários que possuía, demonstra-se claramente defensora dos valores que ornam os seres superiores: a honra, a lealdade, a gratidão e a humildade.
É um pouco de tudo isto que importa aprender nos singelos poemas deste livro.

Presidente da Associação dos Jornalistas e Escritores do Algarve

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