sábado, 4 de julho de 2009

Quarenta anos de Poesia em Vieira Calado


José Carlos Vilhena Mesquita*

Não são muitos os poetas e escritores que no nosso país se podem orgulhar de uma longa e vasta obra literária. Felizmente, no Algarve, há dois ou três exemplos que contradizem a regra geral de se iniciar uma carreira literária quando embranquecem as cãs e se consolidam as estruturas familiares para dar lugar às segundas gerações. Entre as figuras de maior proeminência e longevidade cultural no Algarve destacam-se Elviro da Rocha Gomes e Tito Olívio Henriques, que fazem no conjunto das suas obras uma simbiose entre a prosa e a poesia. Mas, em exclusiva dedicação ao género poética, apenas se terá mantido José Vieira Calado, que acaba de completar quarenta anos de vida literária. E para um poeta de intervenção, que usa a palavra para acicatar a letargia e espicaçar as mentes, não é difícil de imaginar que terão sido décadas de resistência contra a censura, que por vezes identificava o inocente alinhamento dum poema com a velada divulgação de mensagens subversivas e desafectas ao regime.
Muitas foram as vítimas, desde Eugénio de Andrade a Ramos Rosa, que nos anos subsequentes souberam capitalizar a vitimização da perseguição política a seu favor, reivindicando prestígios, privilégios e prémios. O mesmo não aconteceu com Vieira Calado que, na sua humildade natural e no seu genuíno talento, continuou a fazer da poesia a sua voz, num ténue lamento de nostálgica indignação e num surdo grito de revolta contra a ignorância, o nepotismo e a presunção dos instalados no poder. Talvez por se manter fiel a si próprio, sem se ajoujar a qualquer bandeira partidária, daquelas que flutuam nos mastros do poder, é que o nome de Vieira Calado nunca será gravado a ouro na frontaria de uma qualquer biblioteca pública.
Também pouco lhe importa a vã glória dos talentos postiços, da incongruência dos louvores ou dos prémios com o sabor mafioso das clientelas políticas. O que importa é a coerência dos valores, a preservação dos princípios éticos, a incessante procura de novos caminhos para encontrar a essência das coisas simples e a alma dos últimos mistérios. É na descoberta das coisas primeiras, no abismo dos conceitos e na bruma das metáforas que emerge a poesia de Vieira Calado.
Para quem não conheça a sua obra aconselhamos vivamente a leitura de um dos seus últimos livros intitulado Transparências, que consideramos um sublime bouquet do mais inspirado e criativo lirismo produzido no Algarve dos últimos cinquenta anos. Aliás, sempre dissemos que Vieira Calado era um dos melhores poetas do modernismo algarvio, e um dos mais autênticos, reflectidos e intelectualizados. Nada fica a dever aos seus mais célebres antecessores, porque não lhes imita os temas, não lhes copia os passos, não procura a luz onde existe a sombra, nem pinta de azul o negro da noite. Limita-se simplesmente a envolver as palavras no manto diáfano do mistério, escondendo por detrás da leitura e da sugestão dos sentidos uma imagem de perpétua insatisfação, um trago de amargura, uma envolvente dúvida na imbricada desconstrução metafórica do poema.
Por isso é que a sua poesia é tão sugestiva, num misto de atracção e repulsa, tecida entre a verdade, a traição e a fuga, enredada em conceitos de fino recorte filosófico e exigindo do leitor não só uma leitura integrada como também uma razoável preparação intelectual. Em boa verdade, a sua poesia está longe de poder agradar às camadas populares, embora ao poeta certamente agradasse espicaçar a letargia em que se acha mergulhado o nosso povo, cada vez mais submisso e anestesiado pelos média, “acorrentado” às telenovelas e concursos bestializantes da dignidade humana. As mensagens que nos impingem os meios de comunicação, sobretudo a “caixa mágica” que domina os nossos lares, é cada vez menos poética e cada vez mais descrente dos valores que devem nortear a humanidade. Talvez seja por isso que a poesia não se vende. Talvez seja por causa da nossa ignorância, do nosso crescente materialismo e assustador egoísmo, que a poesia tem vindo a desaparecer das nossas atitudes diárias, a perder terreno nos nossos hábitos de consumo e nos cada vez mais escassos prazeres da leitura.
Apesar do panorama não ser motivador a voz dos poetas continua a ecoar no templo de Orfeu, com a mesma vivacidade e esperança de quem acredita na salvação da humanidade através da propagação da verdade, da honra e do amor. Vieira Calado tem-no feito ao longo de quarenta anos. Por isso resolveu reunir numa breve antologia que designou por Poemas Primeiros, algumas das composições lançadas à luz do prelo entre 1961 e 1962. Foram extraídos dos livros 37 Poemas e Os Sinais da Terra, que são os títulos que abrem a sua apreciável lista de obras. Por mais que lhes procurássemos o vagido da inocência imberbe, da inexperiência ou da incongruência intelectual, nada encontrámos que se pudesse classificar de incipiente, inarmónico, desconexo ou desproporcionado. O poeta já estava feito quando lançou à terra as primeiras sementes da sua futura seara. Creio mesmo que, em certo sentido, os seus primeiros poemas eram mais atractivos – mas não menos profundos - do que agora, visto que em poucas palavras, em meias dúzia de versos, conseguia aprisionar o mundo, nas suas injustiças, desafectos, atrocidades e violências. Mesmo quando usa o naturalismo nos conceitos procura deixar a dúvida entranhada na escadaria do poema: “Este Sol incrivelmente verde / apesar de mudo, / este céu incrivelmente nítido / apesar da distância / e este chão inevitavelmente pesado, / apesar dos pés e dos músculos dos pés / crescerem do verde e do nítido.”
A voz oraculina do poeta está subjacente à maioria dos seus poemas, recorrendo ao trocadilho dos significantes para enredar o leitor na dualidade dos significados. O tecido que envolve os conceitos e entretece as palavras é supostamente translúcido, mas não resolve nunca a dúvida da interpretação na duplicidade das sensações: “O tempo é como o vento. / As nuvens / sou eu, és tu e são os outros; / não há vento que as não leve. / Já alguma viste / a mesma nuvem duas vezes? / Já alguma vez sentiste / o mesmo vento duas vezes?”. E mais adiante acrescentará com a feroz simplicidade das coisas aparentemente simples: “Todo o rio tem mar / toda a cidade tem cemitério / toda a verdade crua tem adultério.” Este último verso é um tratado de psicologia social que poderemos desmontar das mais variadas formas para obter sempre o mesmo resultado: por detrás da verdade está o fosso da traição. Parece querer dizer que entre a perfídia e a ignomínia se ergueram os alicerces da nossa civilização, mas que, apesar disso, existe o caminho da verdade e da honra, cuja escolha depende só da largura da nossa alma: “Na estrada dos caminhos cruzados / não há frestas nem arestas paralelas / não há clareiras nem sombras dos escombros / não há geometria pré-concebida / de réguas nem de esquadros. / Na estrada dos caminhos cruzados / há apenas a largura / dos ombros de cada um.”
Para concluir, repetimos o acostumado cliché: “O Algarve é um rincão de poetas”. Ninguém duvida disso. Mas em boa verdade não há muitos poetas de qualidade. O que existe é quantidade. Falta instrução, leitura e convivência aos poetas algarvios, que na sua maioria subsistem fechados sobre si próprios, entretidos com Jogos Florais e alheados de novos horizontes culturais. Não é o caso de Vieira Calado, homem viajado, docente do ensino secundário, licenciado em Letras e muito atento o intercâmbio cultural com outras regiões europeias. A sua dimensão intelectual, e o seu interesse por novas experiências culturais, tem-lhe permitido evoluir na senda do aperfeiçoamento e da qualidade poética. O facto de se ter mantido sempre actualizado permitiu-lhe ser cada vez mais exigente, no apuramento do estilo, na intervenção dos conceitos e no esgrimir das palavras. Sem nunca rejeitar a intervenção momentânea das musas, e de reconhecer que sem inspiração não existe poesia, o certo é que em Vieira Calado também se vislumbra a transpiração do artista, que incessantemente busca alcançar a perfeição.
No remanso da cidade de Lagos, vive um dos melhores poetas do Algarve, longe da ribalta da capital do Império, alheado da glorificação dos média, em feliz comunhão com a sua musa inspiradora. Os seus quarenta anos de vida literária materializaram-se numa dezena de livros publicados. Serão, talvez, um parco legado de quem possui talento e qualidades para muito mais. Agora que está reformado das lides do ensino, talvez despertem em Vieira Calado os encantos do prelo, contribuindo com novos títulos para o engrandecimento da poesia algarvia.

* presidente da AJEA

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