sábado, 4 de julho de 2009

A Situação actual de Sagres


J. C. Vilhena Mesquita

Nos finais da década de oitenta, voltou à ribalta da comunicação social a possibilidade de se erguer em Sagres um monumento aos Descobrimentos, como se aquele lugar talhado pela força da natureza e prenhe de um secular misticismo não fosse já suficientemente monumental para dispensar a intervenção humana.
Não tardou que o governo abrisse um concurso público para o reordenamento do espaço envolvente, dotando a Fortaleza de Sagres de equipamentos turísticos que perpetuassem a epopeia dos Descobrimentos Portugueses e tornasse rendível o investimento público. No fundo o que se ouvia dizer não era tido em linha de conta porque soava à repetição de um inacreditável absurdo executado, felizmente sem repercussões de maior, pelo Estado Novo cujo chefe, Oliveira Salazar, teve o bom senso de nunca mandar materializar. Com efeito, nos dois concursos públicos, realizados por ocasião das Comemorações Centenárias, houve efectivamente vencedores que receberam os seus prémios pecuniários e distinções honoríficas. Mas não se concretizou nenhum monumento aos Descobrimentos, porque alguém, suficientemente inteligente, impediu que se cometesse a atrocidade de alterar o equilíbrio paisagístico de um notabilíssimo promontório, talhado pela força da natureza e carregado de míticas forças, que deram àquele espaço a ambiência temerosa e aventureira da diáspora lusitana.
A ânsia pequeno-burguesa de deixar marcas na História tem-se manifestado de forma premente no seio dos nossos governantes, a ponto de edificarem obras megalómanas de duvidosa utilidade e nímio interesse nacional. Por outro lado são obras duma inquietante similitude com o Estado Novo, que nos trazem à memória o estigma do centralismo político e da superioridade da “capital do império” face ao subdesenvolvimento e assimetrismo económico da chamada “província” ou do “Portugal profundo”.
Mas pior do que tudo isso é aceitar que em nome dos Descobrimentos e da cultura portuguesa se tivesse realizado um concurso público para dotar a Fortaleza de Sagres de equipamentos turísticos, fazendo tábua rasa dos princípios que nortearam a intervenção de 1960, a qual se limitou a reconstituir os elementos arquitectónicos contidas na carta desenhada por Francis Drake. Os anteriores governantes entenderam que não se devia construir um monumento em Sagres aos Descobrimentos, mas tão só recuperar os edifícios que ali teriam indubitavelmente existido no séc. XVI. Mas ignorando os exemplos do passado decidiu-se efectuar uma nova intervenção em Sagres, que serviu apenas para construir um inestético edifício a que o vulto chama o “armazém do bacalhau”. O que ali se fez foi simplesmente um atentado de lesa património, ainda por cima contra a vontade dos algarvios. Notou-se então claramente que o Algarve não possui uma forte consciência regional capaz de garantir a sua integridade cultural e de reivindicar a sua ancestral personalidade histórica. E quando em 1991 se embargaram as obras, o mal já estava feito e ninguém teve a inteligência suficiente nem o mínimo bom senso para pedir desculpa aos algarvios e mandar demolir o mamarracho a que chamam o “armazém do bacalhau”. Bem pelo contrário, acabaram-se as obras sob a desculpa de que a reposição da situação anterior implicaria a devolução à CEE de meio milhão de contos. Por isso hoje a Fortaleza está “nova e bonita”, como diria qualquer bimbo novo-rico. Muralhas rebocadas de cimento, imaculadamente caiadas de branco, a condizerem com a alvura dos novos edifícios turísticos. O que antes era um respeitável monumento militar do século XVI, ensimesmado num imenso monumento talhado pela natureza, é hoje um moderno equipamento turístico para receber estrangeiros vestidos de calções e soquetes brancas, a condizer com os edifícios e o slogan: «o Algarve é branco».

Nota: este artigo foi publicado na imprensa regional em 2001

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